Sétima Arte: memórias de antigos cinemas de rua do DF

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Cine Teatro Brasília – Núcleo Bandeirante/1960. FOTO: Arquivo Público do DF

 

Uma foto grudada na parede mostra um prédio antigo,duas pessoas a escolherem o filme que iriam assistir. A próxima sessão é de “Oklahoma!”, um faroeste de 1956 dirigido por Fred Zinemann. As instalações também lembram o Velho Oeste. Na administração do Núcleo Bandeirante, ninguém sabia do que se tratava a imagem quando a equipe de reportagem visitou o lugar. Na verdade, a foto não é americana, mas do Cine Teatro Brasília uma das salas de cinema mais antigas do Distrito Federal, e que ficaram apenas na memória.

A estrutura, diferentemente das construções urbanas, era de madeira, parecendo um grande barracão. Na administração do Núcleo Bandeirante, pelo menos quatro funcionários estão confusos sobre o que se trata a imagem. Mas há um consenso (equivocado): “nunca houve cinema no núcleo”. A repórter contraria e é encaminhada para o setor responsável pela cultura. No local, também nada sabiam. O próximo passo foi chegar a uma saleta da biblioteca do lugar. As informações são desencontradas. Há quem tenha ouvido falar, mas ninguém sabia onde ficava o cinema. Depois de ouvir pelo menos cinco relatos na região, uma certeza: em frente ao que é hoje o banco BRB na Avenida Central no Núcleo Bandeirante. O desconhecimento em relação aos antigos cinemas apaga a luz da projeção do passado.

Projetadas nos momentos que antecediam o iniciar dos filmes, múltiplas luzes coloridas rabiscavam os olhos dos espectadores. Era possível ouvir música, que deixava sempre com mais expectativa os indivíduos acomodados em poltronas, estivessem bem ou mal aconchegados. Há quem se lembre das enormes cortinas, uma tradição romântica, emprestada da tradição do teatro. Há quem tirasse dos guarda-roupas, como se pode verificar nas fotos antigas, um terno ou um vestido bonito para sair de casa. Cinema era lugar de ver, mas era sabido que também era lugar de ser visto, contam antigos frequentadores. O estabelecimento tinha tudo, se podia comer um doce antes de instalarem a cultura da pipoca, que aos montes preencheu os chãos das salas enquanto subiam os créditos. O cinema de rua foi assim, um lugar guardado em um universo de memórias, como lembrou o documentarista Marco Orsini.

Segundo pesquisa realizada por Samita Pinheiro, nas ruas brasilienses, o cinema surgiu quase como um irmão da própria cidade, ainda na década de sua inauguração, nos anos 60. Em sua maioria, eram construídos próximos aos centros comerciais. Em todo o Distrito Federal, existiram pelo menos 15 salas de cinema, sem contas as improvisadas. Hoje restam lembranças e indícios desses centros culturais, que figuraram como “estrelinhas” na capital, agora removidos das ruas.

Marcaram a história da cidade o Cine Amazonas, o Cine Rex, o Cine Teatro Taguatinga, o Cine Miguel Nabut, o Cine Márcia, o Cine Karin, o Cine Dois Candangos, o Cine Espacial, o Cine Teatro Brasília, o Cine Alvorada, o Cine São Francisco, o Cine Lara, o Cine Paranoá, o Cine Teatro Cultura, o Cine Atlântida, o Cine Itapuã, Cine Astor, Cine Bandeirante, também com algumas salas paralelas dentro de prédios donos de outras funções além do cinema, como por exemplo, os espaços na Academia de Tênis José Farani.

A aposentada Zenaide de Farias, 64, vive no Núcleo Bandeirante desde 1961, quando o Núcleo ainda era conhecido como “Cidade Livre”, ela se recorda do cinema existente na frente do BRB, na Avenida Central, chamado Cine Bandeirante, também do chamado Cine Brasília (nome do cinema de rua ainda existente no Plano Piloto) localizado na Avenida Central. Outros aposentados, Francisco Silveira e a esposa Maria Gomes da Silveira, lembram-se do Cine Bandeirante, onde tiveram um de seus primeiros encontros, quando ainda namoravam.

 

Cine Venâncio Junior – Conic/1972. FOTO: Adauto Cruz/DApress multimídia

Mais de mil assentos

O segundo maior cinema de Brasília, à época em que surgiu, em 1962, o Centro Cultural Itapuã no Gama, antigo Cine Itapuã. Desativado em 2004, contava com mais de mil assentos. Querido pelos comerciantes que trabalhavam nos arredores, o cinema foi comprado por eles e doado ao governo do Distrito Federal para não ser vendido e transformado em uma igreja. O cinema ainda existe, mas está fechado à espera de reformas, em uma praça desértica. A administração do Gama afirmou que o começo das melhorias está previsto para o ano que vem. Outras informações a respeito são bastante escassas, a administração possui algumas raras fotos e forneceu para a reportagem um documentário produzido por um artista da cidade.

No Gama existiu também o cine Amazonas, a administração não tem qualquer registro sobre ele, mas Francisco Neto, 58, mais conhecido como “Punk” conta o que viveu do cinema, antes do incêndio na década de 80. O Cine Amazonas ficava no Gama Oeste, no período uma cidade de madeira, Punk brinca, dizendo que, quando crianças, os amigos e ele, chamavam o cinema de “Cine Duaratex” e “Cine Ratazana”, pois era de madeira e se viam ratos passeando sobre as telas. Hoje o cinema dá lugar a uma igreja evangélica, localizada próximo a uma igreja católica, a Nossa Senhora Aparecida. Punk também falou do Cine Itapuã, onde costumava se reunir com a sua “turma”, no período em que o cinema e a discoteca Shine eram as únicas diversões até os anos 80, fala das paqueras na praça e de ir ao cinema depois de sair da boate. No Cine Itapuã assistiu a filmes de karatê e Rin-Tin-Tin.

De ET a pornô

Situadas no Setor de Diversões Sul (Conic), houve oito salas de cinema, que ajudaram a construir a memória da cidade. No Conic, os nomes importantes eram: Cine Atlântida, Cine Venâncio Jr, também as salas Miguel Nabut e Badya Helou, além do Cine Ritz, cinema pornô inaugurado em 1989 e fechado em 2009. O Cine Atlântida é considerado ainda hoje, o maior cinema já existente no DF, com capacidade para 1.200 lugares, tinha bombonieres, meninas baleiras e lanterninhas. Estreou filmes internacionais como Grease, E.T, Guerra nas Estrelas, etc. com sua tela enorme, palco e carpete, mas toda a suntuosidade deu lugar na década de 90 à Igreja Universal do Reino de Deus. A igreja, que ainda mantém as grades antigas, parece ter apagado a memória da existência do cinema, alguns dos que frequentam e trabalham no Conic tem conhecimento sobre o que havia no lugar da igreja e muitos não faziam ideia.

Na Avenida W3 Sul, figurou o Cine Teatro Cultura, que vez ou outra, além da programação cinematográfica, oferecia eventos temáticos, como no período natalino. A pedagoga Zilta Marinho, 60, disse que a mãe foi uma das frequentadoras do cinema e participou de um desses eventos de natal. Inaugurado em 1961, o Cine Teatro foi fechado na década de 70. Também na Asa Sul, o Cine Karim deixou lembranças. Atualmente no local funciona uma academia, mas que no passado fora ponto de encontro entre os jovens candangos. O Cine Karim foi uma das iniciativas do empresário goiano Abdala Carim Nabut, responsável por algumas salas de cinema no Conic e também no Shopping Conjunto Nacional, o famoso Cine Márcia, que virou uma loja de roupas.

Nas cidades satélites, hoje chamadas de Regiões Administrativas, havia o Cine Paranoá e Cine Lara. Os cinemas ficavam no centro de Taguatinga, próximos um do outro. Como afirma o livro-reportagem da jornalista Nathalia Novais Chagas “Libertinagem Projetada”, o Cine Paranoá foi inaugurado na década de 1960 e serviu como cinema convencional até meados de 1980. Em 1983, o cinema deixou de ser convencional para se tornar um cinema pornô, agora o último existente no DF. Antes desse período, CULTURA 4 Brasília, dezembro de 2017 costumava passar filmes comerciais, mas também trazia na programação os chamados filmes cult. O Cine Lara, inaugurado em 1978 era o mais frequentado. Embora fosse menor que o Paranoá, tinha “salas pequenas”, mas foi o primeiro de alvenaria.

A Administração Regional de Taguatinga, que tem um setor de cultura separado do de comunicação, não possui registros de nenhum dos quatro cinemas. Fotos também não foram encontradas. Dois únicos funcionários pareciam ter informações sobre os cinemas, mas um deles, quando questionado, não sabia qualquer informação. Assim como ocorreu com os funcionários no Núcleo Bandeirante, dizia não saber de nada por ser novo e indicou uma moradora antiga da cidade.

O artista brasiliense Chico Simões, de 57 anos, conhecido por trabalhos com mamulengos (fantoches tipicamente nordestinos), viveu sempre em Taguatinga e se lembra mais do Cine que levava o nome da cidade, localizado onde hoje existe o Taguacenter. O Taguatinga era um cinema de madeira, com o teto de zinco, o que tornava impossível assistir a um filme nos dias de chuva. Quando era garoto e tinha por volta de seus 6 e 7 anos, trabalhou como engraxate na porta do cinema “Antes de conseguirmos entrar, a gente assistia a alguns pedaços de filme olhando por alguns buracos da madeira”. Ele recorda ainda na cidade do Cine Lara e do Cine Paranoá.

No cinema, ele lembra que era proibido entrar de sandálias. Do lado de fora existia uma projeção clandestina, Chico conta que existiam caixinhas de plástico, com manivelas que serviam como mini-telas que projetavam os filmes passados do lado de dentro do cinema, custava uma moeda, “Como se fossem uns slides em movimento, que a pessoa vendia como se fosse um cineminha para quem não conseguia entrar no cinema. O primeiro filme que Chico Simões conseguiu assistir dentro do Cine Taguatinga, foi A Marca do Zorro, antes desse tinha visto pedaços de outros filmes pelos buracos.

O lanterninha do cinema não dava descanso aos entusiastas curiosos, carregava uma pequena vareta, que enfiava nos buracos para cegar os seus espectadores clandestinos. “A gente tinha que olhar, mas com a mão assim, na frente do olho, porque a qualquer momento podia vir uma varetada”, lembra Chico Simões. A porta do cinema era repleta de comerciantes, engraxates e pessoas. Em si já era um acontecimento, um evento social. Ele lembra da adolescência no Cine Paranoá, quando frequentou a sala para assistir às pornochanchada. Ele se lembra especificamente de uma com teor político, que achou um pouco esquisita, chamada E agora, José?. O que era erótico no filme fazia relação com a tortura, algo bem característico dos anos de ditadura, cenário político dos anos 70, quando Chico ia ao Paranoá.

O antigo prédio do cinema deu lugar ao edifício Paranoá Center e hoje se restringe a um espaço no subsolo, onde só funciona como pornô. “A gente tinha que olhar, mas com a mão assim, na frente do olho, porque a qualquer momento podia vir uma varetada”, lembra Chico Simões. A porta do cinema era repleta de comerciantes, engraxates e pessoas. Em si já era um acontecimento, um evento social. Ele lembra da adolescência no Cine Paranoá, quando frequentou a sala para assistir às pornochanchada. Ele se lembra especificamente de uma com teor político, que achou um pouco esquisita, chamada E agora, José?. O que era erótico no filme fazia relação com a tortura, algo bem característico dos anos de ditadura, cenário político dos anos 70, quando Chico ia ao Paranoá. O antigo prédio do cinema deu lugar ao edifício Paranoá Center e hoje se restringe a um espaço no subsolo, onde só funciona como pornô.

Ele foi poucas vezes ao Cine Lara, o primeiro cinema de alvenaria de Taguatinga, os outros, Cine Paranoá, Cine Taguatinga e Cine Rex, eram todos de madeira. Também foi ao chamado Cine-clube Caixa D’água, em Taguatinga, que era na CMF (Clube de Rock) ou na própria administração da cidade. Uma militante da cidade, Terezinha Alcântara, a “Tetê”, lembra-se mais do Cine Paranoá, que era uma coisa marginal no período em que frequentou os arredores Em 1979, o ambiente era cercado por prostitutas e aventureiros, conta. Já o comerciante Justo Magalhães, 58, recorda-se da infância, quando frequentou o Cine Taguatinga entre 1960 e 1962. A memória mais nítida é da estrutura de madeira.

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Cinema de Outro Planeta, em Brasília

Houve também um cinema pitoresco na cidade, o Cinespacial do Gilberto Salomão, fechado em 1978, apenas oito anos após a inauguração em 1970. O Cinespacial, segundo o Gilberto Salomão, fundador do centro comercial Gilberto Salomão, foi o primeiro no mundo com este formato. Tinha três telas em uma sala, todas curvadas, acima das cadeiras, que eram inclinadas e as fileiras viradas de frente para cada telão, uma de costa para a outra. No Cinespacial cabiam 800 pessoas e apesar de possuir três telas, havia um único projetor responsável pela transmissão. Foi inaugurado pelo presidente da época, o general Emílio Garrastazu Médici. O cinema ocupava dois andares do prédio e era decorado com imitações de estalactites de gelo para dar uma ideia de espaço. Recebia visitantes estrangeiros empolgados com a ideia do ambiente.

Gilberto recorda dos imprevistos na inauguração, quando a assessoria do presidente o fez trocar o filme que seria exibido, porque continha um trecho de nudez de uma atriz famosa na época. Em respeito as crenças do general Médici e sua esposa, Gilberto fez de tudo para que um filme passando pela censura em São Paulo fosse transportado de avião até Brasília. A cerimônia foi prolongada com discursos e falas sobre a arquitetura do cinema, deixando os espectadores impacientes, enquanto o filme ainda estava a caminho de avião e depois de carro.

Com a chegada das televisões, acompanhadas dos cinemas nos shoppings, o Cinespacial perdeu espaço. O cinema já não dava o mesmo lucro de antes, uma lanchonete de um cinema de shopping fazia mais público. Foi fechado em 1978, quando Gilberto conheceu outros tipos de entretenimento para o seu espaço e o transformou em uma boate, a Zoom.

Confira mini-documentário sobre Cine Itapuã: 

(Documentário cedido pela Assessoria de Comunicação da Prefeitura do Gama)

Por Yoneila Santos

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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