Tatuadores explicam que escolha de imagens vai muito além da estética

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“As tatuagens funcionam como um meio de comunicação não verbal sobre ações de heroísmo, caçadas bem-sucedidas e perigosas, experiências, migrações, posses, talento, estado civil, coragem e força, inventividade e perseverança.”   O trecho é do livro “1000 Tattoos”, publicado em 2014, pelo tatuador holandês, Henk Schiffmacher.

Livros escritos pelo holandês Henk Schiffmacher | Crédito: Divulgação – Instagram @tattoomuseum

Schiffmacher explica, que as tatuagens podem ter diferentes finalidades, desde adoração a deuses, até declarações pessoais ou forma de deixar o corpo mais atraente.

“As tatuagens podem ajudar a adquirir certas características. Algumas tatuagens são declarações pessoais sobre amor e amizade, sobre patriotismo ou contra o encaixe na sociedade. Outro aspecto é a tatuagem como ornamento erótico, que torna o corpo mais interessante sexualmente”

Apesar de hoje em dia existirem diversas técnicas e materiais adequados para cada estilo de tatuagem, essa expressão artística vem de milhares de anos atrás.

Contexto Histórico

A tatuadora catarinense de 23 anos, Sarah Bernardes, também conta a respeito das primeiras aparições dessa forma de arte. “Sabemos que a tatuagem era uma prática muito comum desde épocas mais remotas como no Egito Antigo. Provas arqueológicas foram encontradas em múmias que tinham inscrições sobre pele, demonstrando que os egípcios tinham uma tradição em relação às marcações no corpo”

Sarah Bernardes explica que a origem da tatuagem tribal está ligada a crenças e superstições, religiosidade, representando valores de cada povo e de cada cultura.

“Essas tatuagens também podiam representar riqueza das pessoas, marcar posição social, serem utilizadas como ritos de passagem ou amuletos. Os desenhos podiam ser desde muito simples e minimalistas até muito elaborados, com formatos geométricos”.

O tatuador recifense de 30 anos, Felipe Colaço, atualmente residente da cidade de São Paulo, complementa e afirma que no início, o objetivo de se marcar ia muito além da estética.

“A marcação no corpo antigamente era muito ligada a religião e cultura dos povos, posições hierárquicas, políticas. As pessoas marcavam o corpo para se proteger, para mostrar qual era sua posição intelectual e também para identificar criminosos”.

Felipe Colaço em meio a uma sessão de tatuagem | Crédito: Arquivo Pessoal

Simbologias e Finalidades

Sarah Bernardes conta que desde que começou a trabalhar como tatuadora, estuda muito sobre desenhos e suas simbologias, e vive em constante processo de aprendizado, tanto do seu estilo de tatuagem, como também de diversos outros.

“A tattoo old school é uma forma de expressão que veio muito depois das primeiras tatuagens e depois que o homem conheceu tribos indígenas que as praticavam. Os primeiros que tiveram coragem de marcar o corpo dessa forma, foram os marinheiros, os fuzileiros navais e os piratas, e em razão das tatuagens, eram considerados marginais, fazendo com que as tatuagens fossem mal vistas pela sociedade da época”, explica a jovem.

Ela ressalta, ainda, que muitos marinheiros se tornaram grandes contadores de histórias e, durantes suas longas viagens, esse era o hobby para passar o tempo. Assim, esses contos serviam de inspiração para desenhistas e tatuadores da época.

“Os desenhos de águias, andorinhas voando, âncoras, mulheres, sereias, estrelas náuticas, rosas e muitas outras, que são vistas diariamente nas pessoas hoje em dia, eram marcas registradas dos marinheiros e do estilo old school”

A tatuadora ainda conta sobre o seu exemplo de tatuagem old school favorito, a andorinha. Apesar de tê-la em sua pele, não sabia seu real significado de acordo com a história.

Andorinha tatuada na mão esquerda de Sarah Bernardes, por @palomazvdo | Crédito: Arquivo Pessoal

Na cadeia

Tatuagens conhecidas como tattoos de cadeias, surgiram a muito tempo, como uma pratica bastante comum pelos prisioneiros e criminosos. A maioria desses desenhos, tinham uma simbologia única que com o tempo, os agentes da lei foram decifrando e identificando o significado de cada uma, conta a catarinense.

“Através das tatuagens podemos identificar se o presidiário é um foragido, se já esteve preso, qual o crime cometeu, grau de periculosidade, preferências, características ligadas ao crime, ou ainda, para determinar a que facções criminosas ele pertence”, alerta Sarah Bernardes.

Ela ainda exemplifica, citando a tatuagem de Palhaço ou Coringa, que significa que o portador é um ladrão ou faz parte de uma quadrilha.

Salvando Vidas

A jovem tatuadora ainda chama atenção para algo que vêm ganhando popularidade ultimamente e um fator de extrema importância, a tatuagem como função utilitária e de aviso.

“Podemos encontrar o tipo sanguíneo do tatuado, se aquela pessoa possui diabetes, epilepsia e também registrar nomes de medicamentos que se é alérgico”, cita Sarah Bernardes a respeito das informações que podem ser gravadas na pele

Assim, ela complementa que em casos de emergência, essas tattoos podem ser úteis para, inclusive, salvar a vida de alguém.

Esse é o caso, do estudante de psicologia Léo Alcides, que tem diabetes tipo 1 e decidiu gravar a informação em seu corpo, juntamente com seu tipo sanguíneo. O brasiliense de 21 anos, conta que a oito anos atrás fez a tatuagem, apenas dois anos após o diagnóstico.

Tatuagem de Léo Alcides em seu antebraço | Crédito: Arquivo Pessoal

Ele explica ainda, que a simbologia veio como forma de retratar a aceitação a diabetes.

A ideia principal veio da aceitação da doença, eu tenho a sensação que todo doente crônico tem dificuldade de lidar com a nova condição de vida. Quando eu “fiz as pazes” com a diabetes, me deu essa virada de chave na minha vida e eu quis representar isso na pele. A segunda ideia é que caso aconteça algum acidente ou algo do tipo, quem me socorrer, estará ciente que está lidando com um paciente diabético, para evitar erro de procedimento e outras coisas que possam acontecer”.

Ele ainda comenta que, sempre teve pessoas importantes em sua vida que tinham artes tatuadas. Segundo Leo, ele sempre gostou da ideia de fazer representações marcantes no próprio corpo, coisas que ele não desejava esquecer nunca.

“Acredito que deixar isso a mostra inspira outros pacientes diabéticos também”, ressalta o estudante.

Outro caso, é o da recifense Débora Vaz, administradora de 32 anos que convive com a doença. Ela também foi diagnosticada com a diabetes tipo 1 e, apesar de ter o desejo de fazer mais tatuagens, por enquanto há somente uma, a da doença, que sem dúvidas é a mais valiosa.

“Ela está em um local, que é o meu braço, onde rapidamente um socorro, um médico, um samu, vai identificar em um hospital que eu sou diabética e muda completamente o tratamento diante disso”, afirma a recifense

Débora Vaz exibindo sua tatuagem da diabetes tipo 1 | Crédito: Arquivo Pessoal

Importância da tattoo

Para Felipe Colaço, a arte sempre esteve presente em sua vida. Chegou a cursar alguns semestres de Arquitetura na universidade, mas não se encontrou na graduação. No entanto, se enxergou em outra forma de desenho.

A marcação na pele é sinônimo de personalidade, coragem e determinação, afirma o recifense. Ele que começou nesta área desde 2016, já teve diversas experiências com a tatuagem, e relata “A criação de memórias que a tatuagem possibilita, também é, sem dúvidas, super valiosa para mim”

“A tatuagem entrou na minha vida primeiramente, por uma questão de necessidade”, afirma Sarah Bernardes

Sarah Bernardes, tatuadora do estilo BlackWork | Crédito: Arquivo Pessoal

A tatuadora catarinense conta que havia acabado de concluir o ensino médio, trabalhava como professora de inglês e não tinha certeza se gostaria de cursar uma faculdade.

Ela afirma que a arte está presente em sua vida desde cedo, e então surgiu a proposta de se tornar aprendiz da tatuagem.

“Sempre desenhei, eu postava minhas artes no Instagram, até que um tatuador viu e lançou a proposta, perguntou se eu gostaria de ser aprendiz e eu pensei “Porque não tentar?” e daí eu virei aprendiz de um estúdio de tatuagem”.

No entanto, ela explica que apesar do primeiro contato ter sido mais pela necessidade, a tatuagem se tornou uma arte indispensável em sua vida. Além desse trabalho lhe sustentar, é algo que ela tem uma admiração muito grande.

“É algo que para mim, tem um significado muito além do financeiro, apesar da tatuagem me sustentar, ela é uma ferramenta que me ajuda a dar sentido para o que as pessoas querem eternizar em seus corpos”.

Mulheres na área

Atualmente, Sarah reside na cidade do Recife e tatua no Stúdio Hive, composto por mais uma tatuadora, e uma bodypiercer.

Ela afirma que desde o início de sua carreira, opta por trabalhar em locais compostos majoritariamente por mulheres e que percebe três fatores primordiais que fazem com que elas se destaquem cada dia mais nessa área.

Competência, criatividade e inovação, essas três qualidades fazem das mulheres, tatuadoras ainda mais experientes e inseridas no mercado da arte na pele, explica Sarah.

A artista ainda ressalta um fator bem interessante que é a preferência de mulheres em se tatuarem com mulheres, principalmente por ser um momento muito íntimo de cada uma.

“Hoje em dia muitas mulheres procuram se tatuar com mulheres, então acaba que a gente consegue ter uma boa clientela feminina, até porque acontecem muitos casos de assédio pelos tatuadores, durante as sessões. Acredito que esse apoio que a gente consegue dar às clientes e, a confiança que elas sentem em ter outra mulher ali fazendo esse trabalho que é tão íntimo e tão sensível, ajuda muito”.

Em busca do seu estilo

Dentro da tatuagem, podemos encontrar diferentes formas de desenho, técnicas e cores. Cada artista tem as suas preferências quando se trata de desenhar. Além disso, muitos optam por retratar em suas artes, suas personalidade, e colocar em seu trabalho, um pedacinho de si.

Isso é o que o recifense Felipe Colaço, tatuador do estilo Dark Abstract Art e BlackWork, acredita.

“A motivação de eu ter escolhido esse estilo para me especializar, é a de ser mais eu. Conseguir comunicar a minha visão de mundo através do meu estilo. A última motivação que tive na tatuagem foi sobre ganhar dinheiro ou não e, isso me ajudou a ter personalidade no meu trabalho”.

Tatuagens feitas por Felipe Colaço em clientes | Crédito: Arquivo Pessoal

Sarah Bernardes conta que uma das maiores inseguranças de quem começa nessa área é não entender o estilo que quer fazer dentro da tatuagem. Ela ainda afirma que não desenhava com tanta frequência, o que dificultava na busca do seu estilo. 

A tatuadora, relata que a única certeza que tinha, era que gostaria de tatuar com tintas pretas, mas o que gostaria de ilustrar era uma dúvida. No entanto, com muitos estudos e prática de desenho, conseguiu se encontrar.

“Eu sempre gostei da tatuagem preta, o colorido nunca me atraiu. Eu só tenho tatuagens pretas no meu corpo e sempre me identifiquei mais com esse estilo. Acho que ele é o que mais tem a ver com minha personalidade. Acredito que há muitas possibilidades dentro do BlackWork, tanto de aplicação, como de fazer efeitos de sombra e luz”.

Tabu?

De acordo com um estudo feito pelo Instituto Alemão Dalia, o Brasil ocupa a 9ª posição entre os países com mais pessoas tatuadas. Com quase 40% dos brasileiros marcados por alguma arte no corpo, o país fica abaixo apenas da Itália (48%), Suécia (47%), Estados Unidos (46%), Argentina (43%), Austrália (43%), Espanha (42%), Dinamarca (41%) e Reino Unido (40%). 

Gráfico dos países com mais pessoas tatuadas | Crédito: Instituto Alemão Dália

O tatuador Felipe Colaço, afirma que os dados condizem com a realidade, pois cada vez mais são vistas pessoas tatuadas e o cenário futuro é positivo. No entanto, ainda existe o tabu e a marginalização da arte.

“Ainda existe um grande preconceito, partindo, na maioria, de pessoas das gerações anteriores. Porém, mesmo existindo intolerância, o cenário futuro é bem positivo, porque já se foi comprovado que tatuagem não muda caráter”. 

Sarah Bernardes, tem uma visão bastante similar, pois acredita que nas regiões brasileiras onde há uma população mais jovem, há mais tatuados e menos preconceito.

“Eu acho que há regiões no Brasil onde a tatuagem é mais aceita e outras regiões onde ela é vista com maior preconceito. Naquelas que se tem contato com pessoas mais velhas e uma cultura mais conservadora, a princípio terá menos jovens, menos pessoas tatuadas e um tabu maior com quem tem esse tipo de arte na pele”.

Ela ainda compartilha duas situações, uma esse ano e a outra em 2021, respectivamente, na qual sofreu preconceito por ter desenhados em seu corpo:

“A primeira ocasião foi quando eu estava no estúdio de pilates, esperando a aula começar, e entrou uma senhora que olhou para mim e começou a falar que, se a filha dela se tatuasse, iria levar uma surra, sem eu ter perguntado absolutamente nada. Ela simplesmente olhou para mim e começou a soltar esse tipo de coisa. Ela falou que quem tinha tatuagem não pode mais doar sangue nunca, porque o sangue ficava sujo. Isso foi extremamente constrangedor, porque eu não sabia nem o que falar para ela, só fingi que não era comigo”, relata a tatuadora, explicando ainda que a questão de sujar o sangue é um mito, e que já há estudos a respeito do assunto e que após 6 meses da última marcação na pele, a doação é permitida.

“O segundo acontecimento, foi quando eu estava em uma barraquinha trocando a capinha do meu celular e chegou um senhor que percebeu que eu sou tatuada, e falou – Minha filha, olha, eu tenho certeza que você só se tatuou porque teve algum namorado que era tatuado né? E daí você começou a se tatuar para ficar que nem ele – Aí eu falei – Não senhor, eu comecei a me tatuar, porque eu gosto de tatuagem e inclusive meu namorado não tem nenhuma – Como se a arte que eu coloquei na minha pele tivesse sido feita para chamar a atenção de algum homem e não por ser algo que eu gosto, e isso foi muito machista da parte dele”, conta Sarah Bernardes

A recifense Débora, acredita que essa arte ainda é vista de modo preconceituoso e reforça que para a mulher, esse tabu se sustenta ainda mais.

“Na verdade, as tatuagens de identificação, que andam muito atreladas a saúde ou alguma condição metabólica de saúde, de doença, de alergia, tem várias causas. Elas andam atreladas a uma auto segurança, então é uma questão muito de tranquilidade e da pessoa se sentir bem com isso”, informa Débora Vaz.

Só jovem?

Apesar de ser comum se deparar com jovens tatuados, em comparação com pessoas de gerações anteriores, isso não é regra.

Jair João da Silva, catarinense de 70 anos, é a prova viva disso. Junto as suas duas netas tatuadoras, Sarah e Isabela Bernardes, ele resolveu marcar seu corpo. A primeira foi um sapo e a segunda foi um grilo, representando os dois apelidos que Jair João é chamado.

Ele relata que, ter a possibilidade de prestigiar e apoiar o trabalho de suas netas, lhe deixa feliz.

“Eu fiz porque queria saber como era o processo de uma tatuagem, porque eu não tinha nem ideia. Então como elas trabalham com isso eu quis fazer. Gostei muito e tiro o chapéu pras duas”, completa o catarinense.

Jair João da Silva e suas duas tatuagens feitas por suas duas netas, Sarah Bernardes e Isabela Bernardes | Crédito: Arquivo Pessoal

O que mudou?

Cada vez mais, o processo da tatuagem e do seu estudo vem se tornando mais acessível e prático para os iniciantes. O tatuador Felipe Colaço afirma ainda, que a educação sobre a arte também ajudou na valorização de todo o processo.

“A educação sobre a arte também ajudou a valorizar o trabalho autoral, onde a tatuagem é feito como uma forma de agregar na sua personalidade e não simplesmente copiar algo semelhante ao de outra pessoa”.

Além disso, ele compara o atual cenário com quando começou no mercado, e ressalta haver mudanças.

“Havia muita dificuldade em relação a compra de materiais e conteúdos para aprender. Muitos tatuadores, antigamente, aprenderam na raça e coragem, várias vezes tendo que passar meses somente limpando o estúdio para depois poder aprender”.

Mercado de trabalho

Felipe Colaço deixa um conselhos para àqueles que desejam investir nesse área e se profissionalizar.

“Nunca desista, sempre estude e desenhe. Não tatue por dinheiro, mas sim pelo prazer de fazer alguém ter a sua autoestima melhorada e ter uma arte original que fale mais sobre a personalidade dela”

A tatuadora catarinense, ressalta que para àqueles que estão começando agora nesse mercado ou que desejam iniciar esse processo de ser tatuador, deve se comprometer e investir.

Tatuagens feitas por Sarah Bernardes | Crédito: Divulgação – Instagram @sarahhbernardes

Por Luiza Freire

Supervisão de Gilberto Costa

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