Abandono afetivo: jovens expõem histórias e traumas passados

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“Eu me senti sem opções, como um produto das circunstâncias, e descartável. Eu não conseguia acreditar que minha mãe ia mudar de país e me deixar para trás”. A terapeuta, Natalie Freire tinha apenas 11 anos de idade. Hoje, aos 20, o trauma ainda está vivo.

Ela teve que lidar com a ida da mãe para os Estados Unidos.

“Eu não queria ir. Meu pais já eram divorciados naquela época e minha mãe tinha a minha custódia. Numa das noites que antecederam a viagem, ela mandou eu pegar todas as minhas coisas e colocar numa mala, pois ela ia me levar para casa do meu pai uma vez que eu não queria me mudar para os EUA” recorda a jovem.

De acordo com o portal da transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), o Distrito Federal atingiu mais de 150 mil nascimentos de 2020 até 2023. Dentro desse número, mais de oito mil crianças sofreram de abandono. A cidade que mais houve abandono foi a Ceilândia.

Dez anos depois, ainda abalada, Natalie diz que foi um momento bastante traumatizante. “Eu não concordo como a decisão espontânea de me tirar de casa foi feita. Eu acredito que para uma criança de 11 anos, ainda na fase de desenvolvimento, tudo aquilo deixou marcas que não são fáceis de ser apagadas”. A mãe da jovem foi consultada, mas não quis comentar sobre o depoimento da filha. Hoje elas moram juntas.

Natalie antes do ocorrido

“Eu até hoje, aos 20anos de idade, considero um dos piores dias da minha vida. As principais emoções que eu senti foram incredulidade, desamparo, e desespero. Depois desse acontecimento, eu me fechei a confiar nas pessoas e eu passei a acreditar e viver como se ninguém na minha vida fosse ficar comigo a longo prazo”.

Ela diz que também passou a ter uma maior preocupação em estar incomodando alguém, e fazer de tudo para que as pessoas estejam satisfeitas. “Eu aceitei essa crença como uma realidade e tentava não me apegar às pessoas, muitas vezes à beira de sabotar ótimos relacionamentos.”

Diante do que ocorreu, ela aconselha a buscar ajuda profissional de um psicólogo o quanto antes. “Um trauma não resolvido pode ter sérias consequências físicas, psicológicas e emocionais, incluindo depressão, ansiedade e até complicações de saúde física.

De padrinhos, a pais

O abandono também afetou o analista de sistemas, Matheus Teixeira. O jovem de 26 anos conta que ainda cedo foi deixado pelo pai, durante um processo de mudança que sua mãe realizou.

“Eu era muito novinho, minha mãe veio pra Brasília trabalhar como empregada doméstica procurando uma vida boa. Ela morava em Poços do Goiás (GO). Então foi o momento que ela veio pra cá, meu pai não se importou muito, então nem tacou foda-se. Naquele momento específico eu não senti nada, mas assim ao longo do tempo eu acho que causou uma falta sabe”.

Na voz do rapaz, há amargura.

“Eu encarei como abandono. No momento que você não se importa com a pessoa e não faz o mínimo caso nem de uma data especial, isso é 100% abandono”

Matheus e seus pais adotivos

“Eu não quero ser igual ao meu pai, uma pessoa que faz isso é desumano. É você deixar uma pessoa que poderia estar feliz, não estando feliz. Vacilo. É uma pessoa que não tem um mínimo de empatia com o próximo.”

Ainda pequeno, a mãe de Matheus, Valdei Camandaroba, começou a trabalhar na casa de Eny e Wilson, em Brasília. Devido ao convívio diário, eles foram escolhidos para serem padrinhos do garoto.

Valdei precisou mudar de trabalho, mas questionou o menino se ele gostaria de continuar na casa. Matheus respondeu que sim, e com isso cresceu tendo Eny e Wilson como pais.

Matheus disse que chegou a buscar ajuda, em sessões psicológicas, quando o assunto surgiu durante a conversa com o profissional, nada além disso.

Fator psicológico

O psicólogo Jayme Pinheiro afirma que o abandono afetivo pode afetar o desenvolvimento emocional. ”Só viver em uma condição de abandono afetivo ela já vai gerar um indivíduo por regra dois sentimentos, ansiedade e angústia”.

Ele explica que a ansiedade tem um contexto de intermitência. Ninguém quer ser abandonado. Assim, o paciente pode fazer infinitas manutenções pra que esse abandono, novamente, seja só hipotético. “Isso deixa o indivíduo muito ansioso”, explica Jayme.

O psicólogo cita estratégias e técnicas para lidar com o abandono, que variam de abordagem para abordagem, mas destaca uma, que compreende todas as técnicas. Ele relata que em teoria parece ser fácil, mas na prática você vê a dificuldade, que é a necessidade de desenvolver novos repertórios.

“Vai precisar de elevar a qualidade e o nível das relações que determinada pessoa já tem, pra que ela consiga rivalizar com as que foram ruim e não criar uma regra dentro dele, entender que essa relação foi ruim, talvez uma outra relação pode ter sido horrível a nível de abandono mas isso é daquelas pessoas. Elas decidiram me abandonar. Existem todos esses outros indivíduos e essas outras relações que eu vivo que não são iguais àquela.”

O que a lei diz sobre o abandono afetivo?

Segunda a lei, negligenciar afetivamente os filhos, não prestar assistência psíquica, moral e social ou omitir cuidados referentes à criação e educação são práticas configuradas como abandono afetivo.

Ainda que não seja crime, a prática  pode levar o(a) genitor(a) ausente a pagar uma indenização, com base no Artigo 227 da Constituição Federal, que prevê como dever da família proteger crianças e adolescentes de toda negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de acordo com a lei número 8.069, de 13 de julho de 1990.

O artigo de número 4 atribui aos pais e responsáveis o dever geral de cuidado, criação e convivência familiar de seus filhos, bem como de preservá-los de negligencias, discriminação, violência, entre outros. 

Essa reportagem foi inspirada na música “Mockingbird” do Eminem.

Por Pedro Souza

Fotos: arquivo pessoal

Supervisão Luiz Claudio Ferreira

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