A 929 km de distância, duas irmãs trocaram a costura de vestidos e bonecas pela confecção de máscaras. O sentimento de ajudar as une sob o mesmo propósito

Benice estava ocupada. A confecção de máscaras levou a tarde inteira. “Dei uma parada agora, por volta das 19h30. É quando realmente tenho tempo para descansar”. O tempo foi reinventado na vida da idosa. Tempo de solidariedade. Para proteger a vida de trabalhadores que estão na linha de frente do coronavírus, ela doa o próprio tempo, normalmente no período da tarde, produzindo máscaras, passando a fazer dos dias uma máquina que não para. A 929 km dali, Berenice tem outra máquina que move as engrenagens com a mesma finalidade. No meio de tecidos, linhas e agulhas, máscaras atrás de máscaras são produzidas e enfileiradas, parando apenas quando o pôr do sol anuncia o fim de mais um dia. Benice, em Brasília, e Berenice, em Guaraí (TO). Mesmo distantes, compartilham muitos interesses em comum: a paixão pelo artesanato, a dedicação com o trabalho e o mesmo sobrenome Aguiar. São irmãs gêmeas, de 62 anos, mas essa história vai muito além do mesmo sangue e muito antes dos tempos da pandemia.
São muitas as semelhanças, no tom de voz e nas risadas. Benice até apareceu no casamento da irmã em 1981, usando a mesma roupa que a noiva, um conjuntinho de blazer e saia bege pérola com uma blusa vermelha. A cor pode parecer uma escolha não muito usual para uma noiva, algo que nem mesmo a própria Berenice esperava pois pretendia fazer uma surpresa com o modelito e acabou sendo surpreendida pela irmã. Além de serem muito parecidas fisicamente, elas têm costumes semelhantes. Mesmo em uma conversa por telefone, é possível reparar nas similaridades.
“Tudo parece! Éramos confundidas com frequência na rua e na faculdade. Até roupa, calçado, bolsa…. Já aconteceu, algumas vezes, de nos vestirmos iguais, sem uma saber da roupa da outra”, lembra Berenice. “Na festa de formatura da minha filha, estávamos com o vestido da mesma cor por coincidência!”, recorda Benice.
“Em essência, são pessoas muito acolhedoras e divertidas, além das muitas coincidências. Elas sempre acabam se vestindo igual por acaso”, diz Bárbara Aguiar, 31, filha de Benice. “As duas são muito queridas, muito animadas, gostam de receber as pessoas, de estar sempre junto de amigos e da família, de cozinhar nesses eventos, de tomar cerveja“, descreve.
Nasceram em 27 de julho de 1958, em Tupirama, cidade que na época fazia parte de Goiás, mas atualmente pertence ao Tocantins. São as mais velhas de 9 irmãos, e para espanto da mãe, Aureci Aguiar, logo no primeiro parto teve a surpresa de serem trigêmeas. Para a tristeza da família, uma acabou não sobrevivendo. “Foi um milagre na época, pois minha mãe não sabia nem que eram gêmeas e o parto foi feito com parteira na própria casa e de sete meses”, relembra Benice, que hoje mora em Brasília. Berenice, porém, foi criada pela madrinha, Isaura Milhomen, indo morar em Guaraí (TO) quando tinha 1 ano e meio, enquanto Benice e os outros irmãos se mudaram para Gurupi (TO), quando ela tinha doze anos, onde viveu até os 17 anos.
Berenice e Benice sempre se visitavam em época de férias e ocasiões especiais, mas vieram morar juntas apenas aos 17 anos, quando ambas foram morar com um tio em Brasília a fim de completarem o ensino médio e se formarem na faculdade.
Entre vestidos e bonecas
O artesanato é presente na vida das irmãs há anos. “Sempre gostei de artesanato e de costurar. Nunca fiquei sem uma máquina. Desde criança não podia ver alguém fazendo alguma coisa que queria aprender”, relembra Benice. Aos sete anos aprendeu crochê e aos doze fez seu primeiro vestido, durante uma temporada em que morou com sua madrinha. Quando voltou para sua cidade, ajudava no ateliê de sua vizinha, uma costureira muito requisitada na cidade. “Fazia um acabamento, pregava botões. Como ela viu que eu tinha jeito pra coisa, me ensinou a cortar tecido, tirar medidas e fazer molde.”
Relembra que veio de uma família humilde e, naquele tempo, comprar roupas prontas era difícil. “Meu vestido de 15 anos, eu mesma fiz, pois sou de uma família bem humilde. Minha mãe era professora e éramos 9 filhos. Quando queríamos uma roupa, tínhamos que nos virar. Eu que tinha que fazer.”
Berenice também começou a se interessar por trabalhos manuais ainda na infância. “Desde criança sempre gostei de fazer roupa de boneca. Minha mãe costurava e eu aproveitava os retalhos que sobravam para fazer roupas das minhas bonecas, mas naquela época era tudo na linha e na agulha. Quando tinha 12 anos, fui morar com minha avó por uns tempos e ela fazia crochê e a minha tia costurava. Aprendi a fazer crochê com minha avó. Quando ia para a fazenda, naquele tempo, os moradores tinham muitos filhos e minha mãe dava os retalhos dos tecidos e a gente fazia boneca de pano, até de sabugo de milho a gente fazia boneco“, relembra Berenice.
Não pararam com a arte. Assim, foram costurando e fazendo artesanato para vizinhos, amigos e colegas de trabalho. Benice ainda conta que ela mesma fez o enxoval de seu primeiro filho. Gostam muito de fazer as decorações e lembrancinhas de festas, os quais são motivos para unirem tanto o amor pelo artesanato quanto pela família. “O pessoal diz que somos muito festeiras, mas na verdade gostamos mesmo é de fazer a decoração da festa e depois aproveitar. Queremos sempre que tenha uma festa pra gente ajudar na decoração”, compartilha Berenice.
Berenice se formou em matemática e Benice em administração. Ambas passaram em concursos públicos em Brasília, Berenice na Caixa Econômica e Benice no Ministério da Justiça. Berenice trabalhou na Caixa até se aposentar em 2012 e Benice ainda trabalhou na presidência da República e se aposentou na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Depois de aposentarem, Benice, e Berenice se dedicaram ainda mais ao artesanato. Benice foi morar sozinha em 2015, depois de se divorciar, e sentia a necessidade de fazer algum trabalho de arte para doação. Criou o projeto “Um vestido por semana”, a fim de doar vestidos infantis para instituições de proteção à criança. Com a iniciativa da irmã, Berenice viu a oportunidade de ajudar com aquilo que sempre gostou de fazer, bonecas, com os tecidos que sobravam dos vestidos. O projeto já tem dois anos e é relatado em uma página no Instagram com sua marca “Artes Gêmeas”, onde o trabalho de ambas é publicado, porém, a produção dos vestidos e as bonecas sofreu uma pausa, pois a prioridade das irmãs agora são a confecção de máscaras de proteção. “Mas o projeto não parou. Na hora que eu tiver uma folga, vai continuar, nem que eu costure todos os dias, mas vai ter os 52 vestidinhos no final do ano”, diz Benice.

Crédito: Benice Aguiar
De Brasília a Guaraí
Mãe de três filhos, avó de dois netos, agora com 62 anos, Benice Aguiar divide seu tempo entre a máquina de costura, cuidados com a casa e o gatinho de estimação Leon, já que em tempos de quarentena sair já não é mais uma opção. É assim que segue sua rotina diariamente, uma realidade de milhões de brasileiros que estão atendendo ao isolamento social durante a pandemia do coronavírus. Mora na Asa Sul em Brasília, um dos locais do DF que teve maior incidência do vírus no início da quarentena. O Plano Piloto também é uma das regiões com maior concentração de idosos do Distrito Federal, segundo a última pesquisa feita pela Codeplan, em 2018, sobre população idosa na capital do país. Os idosos estão no grupo de risco da Covid-19 segundo a OMS.
O início da quarentena não foi nada fácil para Benice, pois se sentia muito assustada e preocupada com todas as notícias sobre o vírus e a pandemia. Ela recorda que foi difícil passar esse tempo de isolamento, já que estava sozinha. “Fiquei durante uns 15 a 20 dias aterrorizada. Preocupada com a família, queria trazer minha mãe que mora longe, mas não deu certo. Então foi difícil passar essa fase sozinha. Depois que foi passando, fui lendo mais e fui me tranquilizando. Aí passava uns dias bem, mas aí voltava a preocupação”. O tempo costurou os medos. O trabalho de fazer máscaras foi o que a ajudou a superar os temores que surgiam nas notícias da TV. “Meu Deus, eu tenho que fazer alguma coisa! Tinha muito retalho das sobras de tecidos que usava para fazer vestidos, comecei a pesquisar como fazer. Depois que passou a fase do medo, não consegui dormir, tinha pesadelos, aí que eu melhorei minha qualidade de vida, com esse trabalho”, relembra Benice.
Mas o primeiro lote de máscaras que fez, foi para ajudar os vizinhos no prédio em que mora na quadra 215, da Asa Sul. Mas teve alguns empecilhos na sua primeira tentativa. “Depois que estava com 50 máscaras prontas para doar para o condomínio, levei um banho de água fria porque o síndico não aceitou. Ele alegou que não estava comprovada a eficácia do uso e que ia trazer pânico aos moradores do prédio”. Mas foi isso o que motivou Benice a buscar outros meios de ajudar e fazer doações.
Buscou grupos que realizavam doações de máscaras em Brasília e continuou seu trabalho. “O artesanato sempre teve uma relação central na vida da minha mãe, sempre notei desde criança”, diz Bárbara, filha de Benice. “Ela sempre fez roupas pra mim, e demorou muito para ela comprar um vestido em uma loja. Mas a imagem que tenho da minha mãe é com uma agulha na mão, sempre se movimentando.“
Em 2018, Berenice se mudou para Guaraí, já aposentada. Para ficar mais próxima de sua mãe Isaura, atualmente com 91 anos, que vinha desenvolvendo um quadro de Alzheimer. Berenice dedica seu tempo entre a casa e a fazenda da família administrada pelo mais novo de seus três filhos. Ela ocupa o tempo com as máscaras que doa para vizinhos, amigos e demais pessoas que a procuram. “Muita gente está reclamando de que não tem nada pra fazer, mas pra mim está faltando tempo, já que estou sempre preocupada, fazendo alguma coisa”, conta Berenice.
E a pandemia assustou mais ainda quando as mortes começaram a chegar na cidade de Guaraí. Diante da situação, Berenice tenta tirar o máximo de proveito dentro do dia, já que não pode sair de casa. Começou a fazer as máscaras com o objetivo de incentivar as pessoas a usarem. Na parte da manhã, assim que põe a panela no fogo já faz o molde no papelão para depois riscar, cortar e passar o ferro nos tecidos que logo vão ganhando forma. À tarde volta para a segunda etapa da produção em série, que é costurar e finalizar com o ferro para desamassar. “Não faço para vender, faço para doar”, ressalta Berenice.
Cuidados
A doação faz parte da vida das irmãs, antes doando vestidos e bonecas, agora se dedicam quase exclusivamente às máscaras. Produzir o equipamento de proteção é um gesto de amor, pois além de se ocuparem, estão auxiliando outras pessoas. Especialista no atendimento a idosos a psicóloga Márcia Yunes entende que auxiliar o próximo faz bem à saúde mental, pois traz sentimentos de gratidão, utilidade e sentido de vida. Isso poderia explicar o porquê de Benice e Berenice realizarem doações durante o período de pandemia. “É o cuidado que elas estão tendo com outras pessoas, usando de suas habilidades e contribuindo com o combate ao vírus, para aqueles que não pode ficar em casa e se proteger”, complementa a profissional que também ressalta a importância de respeitar o próprio ritmo. “Cansou, pare! Interrompa o que está fazendo, descanse, faça algo relaxante se isso lhe sobrecarregar. O tempo limite de trabalho dependerá da disposição de cada uma, sempre respeitando a individualidade”.
“A interação do indivíduo com o ambiente molda todo o cérebro”, diz a psicóloga que é coordenadora do Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Ciências Cognitivas. O geriatra Carlos Frattini diz que idosos são um grupo muito heterogêneo, portanto as medidas para passar o tempo variam de um para outro. “O que se pode afirmar como medidas importantes para todos é evitar o contato com os outros e continuar fazendo as coisas que o seu corpo necessita, como tomar sol e manter a saúde mental.”
Berenice chega a fazer de 10 a 15 máscaras por dia e Benice 300 por mês, mas pretende chegar a meta das 30 mil máscaras junto aos grupos de doação. E com a alta demanda, começou a vendê-las sob encomenda. Mesmo ocupadas diariamente com a intensa quantidade de trabalho, há momentos em que as irmãs sentem saudades dos pais, dos filhos e dos netos que não podem visitar. Benice sente falta também da sua seresta, pois adora dançar, e Berenice, dos amigos que ficaram em Brasília. As duas são saudosas das reuniões familiares, em que cada reencontro era motivo de festa para a celebração da vida.
Mas toda a saudade e o distanciamento são por uma boa causa: a esperança para que, no futuro, todo o esforço seja recompensado; Benice volte a sair para dançar e Berenice volte a ver os amigos, e que juntas organizem a próxima festa em família. O artesanato e a confecção de máscaras tem sido uma terapia na vida das irmãs, que agora irá ajudar na vida de muitas pessoas. “Não recebo mais doação de tecidos, agora sou eu que estou doando”, relata Benice. Em Brasília e Tocantins, trabalho é o que não falta, e a quarentena não as paralisou, continuam ativas com seus propósitos.
Benice e Berenice estão ocupadas. Não param. Distantes sob o som das máquinas de costura, nem o tempo, nem o lugar as separam. Estão cada dia mais juntas por meio das linhas, agulhas, pela solidariedade e pelo sentimento de ajuda ao próximo.
Por Paula Caldeira