Artesão cego produz esculturas e restaura móveis no Jardim Botânico

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“Eu agradeço por ter visto as estrelas no céu. Eu quando criança lembro que cheguei a ver muitas coisas, tive o prazer de enxergar. Eu tinha mais ou menos 13 anos quando soube que um dia viria a perder a visão por completo”.

No mundo do artesão Zulmar Antônio Silva, de 61 anos, uma luz foi apagada, mas uma outra mais forte dentro dele acendeu para iluminar o caminho em Brasília. Ele perdeu a visão, mas o breu à sua frente não o fez desistir de viver uma vida em meio à arte.  Zulmar, que tem retinose pigmentar, passou a enxergar através da brisa que passa perto das suas mãos.

Confira vídeo sobre o artesão

O artesão deixou para trás, ainda quando criança, as memórias vividas nas ruas de Patos de Minas (MG), a 441 km da capital federal. Aos oito anos, trouxe na mala a cultura de onde nasceu, o olhar ainda nítido para o futuro, a mãe grávida e sete irmãos. Diferente das crianças da mesma idade, Zulmar deixou os brinquedos de lado e começou a trabalhar desde cedo.

Foto: Beatriz Castilho
Foto: Beatriz Castilho

Para o pai de Zulmar, Vicente Júlio da Silva, nos anos 1960, o filho homem tinha que trabalhar e ajudar em casa. “Comecei a trabalhar em Minas Gerais aos seis anos, eu lembro de já estar enchendo e esvaziando caminhão de lenha, lembro de trabalhar com cerâmicas e em padarias”, relatou Zulmar. Ao chegar em Brasília, a rotina do menino do interior não foi diferente. Deixou de ir à escola, de brincar nas ruas, de viver a vida como uma criança deveria viver. Sua história na capital brasileira apenas deu continuidade à vida trabalhista iniciada em Patos de Minas. Foi de perto que Zulmar acompanhou o desenvolvimento das obras do Planalto Central. Nas proximidades do eixo monumental, a criança que naquele tempo ainda enxergava, melhor que ninguém, viu de perto o corpo do avião se formar.

“Eu cheguei aqui e comecei a trabalhar carregando comida para as obras que estavam em fase. Umas terminando e outras começando. Trabalhei com marmitas de Taguatinga para o Plano, um porto perto da rodoviária.”

Entre obras, gravatas e a secura do cerrado, Zulmar engraxou sapatos, vendeu picolés, vendia jornal e garrafas, foi servente e pedreiro, fez de tudo que um menino tinha que fazer para ajudar os pais.

Artesanato  

Desde criança, Zulmar já adquiria habilidade para o artesanato. De família humilde, Zulmar montava bonecos e carrinhos para irmãos e irmãs. “Se eu via uma criança que ganhava um carrinho, eu ia fazer um igual aquele pra mim. Se alguém ganhava uma boneca, uma menina, eu ia fazer uma boneca de pano para as minhas irmãs”. Este foi apenas o início das obras de arte. Zulmar começou a fazer esculturas com 12 anos. “Uma vez eu estava jogando futebol e os meninos encontraram uma escultura. Quem ganhasse levaria para casa como troféu, o jogador que fizesse mais gol ficava com a taça. Aconteceu que fui eu, eu não sabia o que era, era de madeira. Levei para casa e, com canivete e um pedaço de madeira, tentei fazer um igual”, relatou Zulmar sobre seu primeiro contato com esculturas. O artesão começou a fabricar móveis com madeiras recicladas. Pegava carroceria de caminhão e fazia delas mesas e armários. Na época, Zulmar chegou a comprar um caminhão, onde fabricava os móveis.

Foto: Beatriz Castilho
Foto: Beatriz Castilho

Mesmo com a lenta perda da visão, Zulmar dirigiu até os 50 anos, por muito mais tempo que o esperado. “Nunca esbarrei em ninguém, nunca bati em nenhum carro, eu andei bastante esse Brasil. Eu pegava o caminhão e ia pra minas, para SP, para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul para mostrar o meu trabalho”. Mas um dia o artesão percebeu que não tinha mais condições de dirigir pelo Brasil. Hoje, Zulmar faz mesas, armários e bancos. Faz de tudo dentro dos seus limites. Na maioria dos produtos, Zulmar utiliza ferramentas manuais. “São ferramentas que os mais velhos me ensinaram, eram os recursos que tinham lá na roça”, relata. O artesão trabalha com restauração de móveis. Ele dá vida às cadeiras que chegam quebradas.

“Eu passo a mão, vejo onde tem imperfeição. Procuro restaurar ali. Quando as pessoas veem o trabalho pronto, a maioria não acredita que fui eu que fiz, por conta da minha deficiência.”

Significado  

O trabalho de Zulmar com o artesanato é inspirado nos tempos mais antigos, um trabalho de preservação da história. Um resgate de cultura que o artesão vê se afastando da sua realidade. De acordo com Zulmar, daqui a algum tempo será difícil encontrar o tipo de artesanato que aborda o passado. “O artesanato é alegria, eu acho que o artesanato é uma coisa muito rica e não pode acabar, deveria ter mais incentivo”. Por falta de apoio e pela dificuldade visual, Zulmar não faz anúncio de seu trabalho. Ele se considera um artesão escondido por não ter acesso à internet. Mas isso não o abala. “O artesanato é alegria”.

Superação

As dificuldades não são vistas por Zulmar, que as supera diariamente. Começou aos 13 anos, quando ficou sabendo que um dia viria a perder a visão, por conta de uma doença hereditária chamada retinose pigmentar. Mas nada o impediu em continuar a trabalhar com o artesanato. “Eu levo a mão e sinto o vento da serra, as pessoas que não me conhecem, às vezes chegam ali e voltam, porque eu sinto o vento da serra no meus dedos”. Zulmar passou a enxergar com as mãos.

Em uma mesa redonda, no galpão rodeado de móveis e esculturas, Zulmar com a voz trêmula e olhos cheios de lágrimas, relata um dos episódios mais tristes de sua vida. Há seis meses, Felipe Silva, filho de Zulmar, faleceu, num acidente, em frente ao galpão onde trabalha Zulmar. O artesão considerava o filho  seu braço e toda a força de sua vida. “Agora estou recomeçando, juntando os cacos que restaram da minha vida após perder o meu filho”, conta.

Mesmo com o retorno das filhas e esposa à terra natal, Zulmar não teve escolha e precisou continuar em Brasília, pois é aqui que seu trabalho gera a renda da família. “É muito difícil morar longe, mas nós não conseguimos nada por aqui, não conseguimos uma moradia aqui, que desse um sossego”. Zulmar vivia com a presença do filho, hoje vive cuidando do seu irmão mais novo. “É um irmão meu, que fica comigo até porque eu que tenho que ficar olhando ele”.

Aos seis anos, o irmão caçula de Zulmar sofreu um acidente ao cair de uma árvore e bater a cabeça no chão. Sua mentalidade foi afetada e desde então ele aprendeu muito pouco. A família fez de tudo para o irmão de Zulmar aprender a ler e escrever, mas não foi possível. Os dois dividem um pequeno espaço debaixo da escada do galpão em que Zulmar trabalha.

Pedido

 Um outro dia eu estava ali na cama pensando que eu vim para Brasília tão criança, que trabalhei tanto e até hoje eu não tenho uma garantia sequer de uma moradia aqui. Que esses governos regularizassem esses imóveis que trabalharam por aqui. Que me regularizasse, um lugar que eu construí e que nem está terminado ainda. Eu acho que isso é tudo que eu consegui fazer, toda essa história minha e eu ainda não tenho garantia se essa aqui será uma coisa que eu vou deixar para minha família.  

Eu tenho medo de uma hora acontecer igual quando eu tinha meus 12/13 anos, que o lugar que eu morava virou só tijolo, igual já vi tantas vezes. Eu não queria mais ver isso, não nessa altura da minha vida. Queria que tivessem carinho por histórias como a minha e de muito outros que ajudaram Brasília a nascer.

Confira abaixo a galeria de imagens:

Por Nabil Sami e Beatriz Castilho

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