Expectativa não é uma palavra que faz parte do dicionário do atleta brasiliense Caio Sena, da marcha atlética. Ele disputa na madrugada desta quinta (4h30, horário de Brasília) a prova de 20 km. Ao falar sobre os preparativos para os Jogos Olímpicos de Tóquio, ele prefere utilizar ‘’esperança’’e lembra-se do momento em que atravessou a linha de chegada no Rio de Janeiro. Ali, indagava-se: ‘’Cheguei muito perto de uma medalha, mas e agora, será que terei mais uma oportunidade de disputar o ouro? Será que conseguirei manter o alto nível’’.
Antes da viagem, ele divagou: “Tenho um temperamento de atleta. Sem o esporte, eu não sei como seria a minha vida’’. Se alguém falasse ele se tornaria o principal marchador brasileiro – e um dos mais reconhecidos mundialmente – da atualidade, poucos acreditariam. Os problemas de saúde que levaram ao entortamento de suas pernas atormentaram a vida do garoto nos primeiros anos de sua vida. O garoto teve de usar um gesso que imobilizava-o das pernas até a cintura. Ele brinca que, neste momento, já estava treinando para ser marchador.
Desde pequeno, Caio demonstrava aptidão para o esporte. Ele e Gianetti confirmam: o garoto era extremamente enérgico, até mesmo quando estava engessado após a cirurgia feita para correção em suas pernas. Na igreja evangélica que frequentava então… o garoto era conhecido pela sua energia, não ficava quieto um momento se quer e deixava todos ao seu redor de cabelos em pé.
Era clara a predestinação dele para o esporte. Quando pequeno, Gianetti e João matricularam-no para praticar diversos esportes: futebol de campo, futsal e natação. Daquele momento até os seus 16 anos de idade, sua única paixão eram os gramados, igual grande parte dos jovens deste país – afinal, o futebol é o esporte mais venerado em terras brasileiras e pode proporcionar uma virada de vida para famílias carentes.
Tudo mudou quando uma viagem com a família mudaria sua vida. João e Gianetti perceberam no momento em que o garoto se juntou a mãe para treinar em areias sergipanas que ele tinha um preparo físico diferenciado e poderia se tornar um grande marchador. Inclusive, segundo Caio, o condicionamento sempre foi o atributo destaque que levava-o a se moldar como um grande jogador de futebol e que foi fundamental para que se tornasse um fenômeno no atletismo. ‘’Meu pai sempre levou eu e meu irmão para corrermos com ele. Com seis anos, fazia em torno de oito quilômetros. Me diz, que criança corre essa quantia?’’, completou. Ele ainda comentou que, durante suas férias escolares, era levado pelo pai para o CASO, o que auxiliou no despertar desta paixão pelo atletismo.
A partir do que viu durante a viagem, João pediu para que o filho desse uma chance para a marcha atlética. E assim fez. Após uma série de bons resultados em competições mirins regionais, Caio, em março de 2007, começou a alavancar ainda mais a sua carreira, mas agora, em categorias maiores. Em sua primeira competição, em março, disputou a Copa Brasil de Marcha, em Santa Catarina, nas categorias ‘’menor’’ e ‘’juvenil’’. Na primeira prova, alcançou a terceira colocação e na segunda, conseguiu a vice-colocação e a classificação para a Copa Panamericana de Atletismo, que seria realizada no mês seguinte. ‘’E foi ali que consegui o meu primeiro índice e a chance de disputar o Campeonato Mundial de Atletismo, na República Tcheca. Meus pais ficaram loucos’’, comentou em meio a risadas.
E não parou por aí. Em maio, ficou com o segundo lugar no Campeonato Brasileiro de Atletismo juvenil e em junho, venceu o Campeonato Brasileiro de Atletismo Menor. No mês seguinte, alcançou o quarto lugar no Campeonato Sul-americano e o quinto lugar no Campeonato Pan-Americano de Atletismo juvenil, além de disputar o tão esperado mundial.
‘’Em março e abril, fiz minhas primeiras participações. Em julho, eu já era o 12º melhor do mundo. Ali, percebi que não era jogador e sim um marchador. Foi tudo muito rápido. Tinha muita paixão pelo futebol, era muito dedicado, mas diversas coisas me jogavam para trás e isso me frustrava. Por isso, dei a chance a marcha atlética e gostei demais’’
Neste mesmo ano, Caio recebeu a oportunidade de vestir a camisa da seleção brasileira. Para todos os atletas, de qualquer esporte, este é um momento único. Com tão pouca idade, o garoto realizou um sonho, além de viajar o mundo representando o seu país. ‘’Eu vi que gostava disso. Todos os atributos que me faziam um grande jogador, foram potencializados na marcha atlética. E foi nesse momento que aumentou o sentimento por um e diminuiu por outro. Ali decidi que queria ser o melhor atleta possível na categoria’’, completou.
E um dos grandes fatores que contribuíram para que ele se apaixonasse pelo esporte e obtivesse cada vez mais progresso, foi a parceria com os seus pais. Gianetti é a treinadora técnica dele, enquanto João é o treinador físico. Caio conta que o esporte proporcionou uma relação diferente com seus pais. Segundo ele, é um sonho ser treinado por seus pais e ainda mais prazeroso ter se tornado ainda mais amigo de ambos.
Gianetti e João ainda foram fundamentais em outro ponto: ambos insistiram para que Caio realizasse uma formação acadêmica. Assim, teve a oportunidade de concluir o curso de bacharelado em educação física e licenciatura. Todas, divididas com a rotina de treinamentos e de competições.
‘’É muito gostoso o abraço na vitória e também na derrota. Isso vai fortalecendo a nossa amizade e é muito bom saber que tem pessoas que te amam, que pode-se confiar plenamente e que darão o melhor por você em qualquer decisão. Confio muito no meu pai e sei que ele toma as decisões com o maior amor possível, já a minha mãe é a minha treinadora de vida. Ela não se tornou minha treinadora apenas pela sua qualificação na marcha, mas a nossa relação sempre foi de atleta e treinador, até mesmo nos estudos. Então quando ela realmente se oficializou, continuou tudo normal (risos)’’
‘’O médico disse que tinha feito a cirurgia em mim para ser no máximo um jogador de dominó. Quem diria que eu viraria um atleta olímpico que usa uma sobrecarga absurda no joelho. Quando visitei-o, 18 anos depois em reportagem feita pelo Globo Esporte DF, ele ficou desacreditado’’
‘’Cheguei a jogar nas categorias de base do Brasiliense, bem naquela época onde o time estava badalado e disputava a Série A. É claro que eu não era um grande jogador como sou marchador, mas ali me abriu portas para compreender o esporte como um todo, seja no coletivo, como no individual’’
Pouco investimento e preconceito
Ao optar por seguir carreira no esporte, Caio sabia quais seriam as barreiras e dificuldades que viriam. Pouco investimento, preconceito, falta de apoio moral e necessidade de uma determinação sobre humana para ter a possibilidade de viver da marcha atlética. E devido ao apoio e a base que seus pais lhe proporcionaram, ele se sentiu pronto para encarar essa caminhada.
Caio comentou que o esporte ainda é muito cru em nosso país e faltam recursos. Segundo ele, é claramente muito mais evoluído do que na época em que Gianetti era uma atleta ativa, mas que ainda não chama tanto a atenção dos brasileiros e também de investidores. Durante a entrevista, ainda brincou que o brasileiro clama por resultados e que o futebol é sempre a primeira atenção e que logo depois, vem o esporte que está em uma fase vitoriosa.
‘’Existem diversas bolsas de salário que cada atleta recebe, variando de acordo com o nível das competições e com sua colocação. Hoje, não tenho um patrocínio de iniciativa privada que me renda financeiramente. Faço apenas parte do CASO, até mesmo para angariar mais recursos para lá’’
Inclusive, uma das evoluções do esporte ao longo dos anos foi em relação ao preconceito. Não sofreu apenas nas competições internacionais, onde estrangeiros duvidavam da capacidade e qualidade dos brasileiros, mas também em diversos momentos que treinava pelas ruas de Sobradinho. Ouviu muitos insultos homofóbicos devido a forma que a categoria exige que o atleta marche. Sua mãe Gianetti também sofreu com preconceitos em meio aos seus treinamentos nas ruas de Sobradinho, já que diversas vezes foi assustada por motoristas que buzinavam e fingiam jogar o carro em sua direção.
‘’Quando acabou a minha prova no Rio de Janeiro, estava com o microfone na mão e tive a oportunidade de falar: nesses nove anos de carreira, não teve nenhum dia em que sai na rua e não fui xingado. Quando se tem família e a oportunidade de sair de Sobradinho para ser o quarto melhor do mundo, precisava aproveitar o momento, levar para esse lado e falar sobre o assunto’’
Essa questão foi uma mágoa para Caio por um certo período de sua vida. Após ser medalhista de bronze nos Jogos Pan-Americanos de Toronto, em 2017, foi convidado para desfilar em carro de som por Sobradinho, mas acabou recusando. ‘’Eu não quis porque não me sentia bem. O pessoal ainda poderia falar que estava me achando, já que era ali que mais fui xingado’’, disse. Porém, depois de muitos anos de batalha e da medalha conquista da medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, as buzinadas em seu ouvido – seguidas de xingamentos – mudaram.
‘’Agora, já me sinto abraçado pela cidade. Brinco que o som da buzina mudou, já que agora ela vem seguida de elogios e incentivos como ‘Vai campeão!’ e ‘Leva essa medalha para a gente’. É muito bom quando isso acontece em meio a um treino debaixo de um forte sol. A maior medalha que ganhei nas Olimpíadas foi poder mudar a cultura de uma sociedade’’
Amizade e rivalidade
Ao longo de sua carreira, Caio passou a ser querido e admirado por muitos. Lucas Mazzo, também marchador da Seleção Brasileira de Atletismo, trata o brasiliense como uma inspiração. Ambos se conheceram em uma viagem para a Guatemala em 2012, momento que marcou a primeira participação de Mazzo na categoria juvenil da seleção canarinha – enquanto Caio era da categoria adulta. Ali, foi dado o início a uma aproximação que, no ano seguinte, quando Mazzo foi promovido para a seleção principal, se tornou uma grande amizade e que vai muito além dos circuitos de atletismo. Os dois atletas mantêm um nível de competitividade muito grande entre si, disputando tudo que podem, seja na marcha atlética, pebolim, tênis de mesa ou até mesmo em jogos de videogame.
‘’Nós ficamos próximos após isso, mas conforme fomos competindo, começamos a conviver um pouco mais e quando atingi a categoria adulta, viramos grandes amigos. Ele é o meu melhor amigo e posso dizer isso com tranquilidade. Sempre treinamos quando possível e dá muito certo, apesar dele ser um nível muito acima de mim, né? (risos)’’
Ao falar do amigo, Caio reforça a importância do laço tanto no âmbito pessoal quanto no profissional, já que mesmo sendo adversários, se ajudam a qualquer custo e até dividem o quarto durante as concentrações da seleção brasileira. ‘’Nos apoiamos sempre, até porque temos objetivos diferentes neste momento. Então, ele é um irmão que o esporte me deu, nos falamos por telefone, desabafamos e nem sempre pra falar de marcha, né?’’, enfatizou.
E falando em inspiração e incentivo, Caio cita sua esposa Juliana Bonfim, mãe de seu filho Miguel, de um ano; e que está grávida no momento. Eles estão juntos desde 2011, época em que o jovem ainda nem havia disputado a sua primeira Olimpíada. ‘’Não tem como dizer que ela não é quem mais me dá apoio. Sempre me entendeu e apoiou muito. Afinal, fico fora por muito tempo devido aos treinamentos e ela nunca teve problema com isso’’, completou. Inclusive, devido a esse tempo fora, quase perdeu o nascimento de seu primeiro filho, mas devido a sua vinda prematura, acabou tendo a felicidade de presenciar.
Além disso, também pontuou outros dois nomes que definitivamente são relevantes para a forma como molda sua carreira: Drew Brees, ex-atleta de futebol americano da National Football League (NFL) e Michael Jordan, considerado o maior jogador da história do basquete americano e também mundial.
Porém, o esporte não é feito apenas de amizades e inspirações, já que a competitividade e a rivalidade andam lado a lado. O brasiliense aponta o marchador colombiano Éider Arévalo como o maior algoz de sua carreira, sempre sendo um dos atletas presentes nos momentos de disputa pelos lugares mais cobiçados das provas.
‘’Eu não gosto de perder e ele é muito qualificado. Então assim, ganho dele em algumas, perco em outras. Mas nossa rivalidade fica apenas nas pistas, a gente até troca uma certa ideia, mas não tem uma relação íntima. Não tem jeito, não queremos perder um para o outro, aliás, para ninguém, né?’’.
Grande momento
Ao falar do ápice de sua carreira, Caio aponta o Mundial de Atletismo em Londres, em 2017, com um gostinho especial e como um ponto de alavancagem em sua carreira. Segundo ele, a competição tem um peso diferenciado para o atleta na questão do resultado, sendo até mais competitiva do que nas Olimpíadas.
E curiosamente, o jovem conseguiu mais uma grande marca, já que o Brasil nunca havia conseguido uma medalha nesta categoria em tal esfera. Inclusive, ao discorrer sobre a sua rivalidade com Arévalo, Caio citou esta competição já que, ao obter a medalha de bronze na prova dos 20km, acabou ficando doze segundos atrás do colombiano, que acabou alcançando o lugar mais alto no pódio.
‘’Estar entre os melhores é difícil, mas se manter é mais ainda, então ser medalhista em um mundial é algo muito forte. Fui a única e última medalha naquele mundial, bati mais um recorde brasileiro e ainda venci a barreira do quarto lugar. Aquele momento provou a todos que eu realmente sou capaz de estar entre os melhores e não fiquei bem colocado na prova do Rio de Janeiro apenas por ter sido disputada no Brasil. Foi um ganho enorme de confiança’’
O brasiliense se orgulha muito dos feitos alcançados em Londres e no Rio de Janeiro, porém sabe que ainda há muito mais por vir. A caminhada é árdua e ele sabe que deve manter a confiança e cabeça erguida em busca de mais honrarias e para conquistar ainda mais os corações brasileiros e também dos estrangeiros. Mas agora, o desafio será diferente em solo japonês.
Tóquio
Caio tentou sempre trata o adiamento de um ano – a competição estava prevista para ser realizada em julho do ano passado – da forma mais otimista possível, porém, o sentimento inicial foi sim de preocupação com o seguimento da rotina padrão de um atleta de alto desempenho. Demais provas foram seguidamente canceladas e o brasiliense se viu obrigado a realizar adaptações em seus treinamentos devido a nova realidade proporcionada pela pandemia da Covid-19 para manter o ritmo.
Durante a maior parte do 2020, teve de optar por manter-se em sua própria casa: corria em esteiras e, de vez em quando, seguia com seu pai para áreas rurais afastadas do movimento da cidade, além de ter aproveitado alguns aparelhos de musculação já existentes e montado uma academia. Em dezembro, teve a oportunidade de retornar aos circuitos e foi o vencedor – mais uma vez – do Troféu Brasil Caixa de Atletismo.
‘’Digo que ganhamos um ano. Estamos trabalhando para manter um ritmo competitivo e chegar com as partes técnicas e físicas aprimoradas, tendo muito cuidado para não acabar lesionando’’
Mas em 2021, pode retornar a uma rotina próxima da realidade padrão. Caio acorda por volta de 8h30, toma um café bem reforçado e se prepara para uma sessão forte de corrida – na parte da manhã – e de musculação e fisioterapia, com foco na prevenção de lesões e fortalecimento muscular – na parte da tarde. Nas segundas, quartas e sábados, realiza o que chama de ‘’rodagem’’, dedicando-se a correr longas distâncias, como 25 a 28 km. Nas terças e quintas, dedica-se aos ‘’tiros’’, percorrendo distâncias menores, porém em maiores quantidades, como por exemplo, 25 tiros de 500 metros ou 10 tiros de 1km. E nas competições deste ano, mostrou que o trabalho duro está sendo recompensado, conquistando o 10º título consecutivo da Copa Brasil de Marcha Atlética e a vice-colocação na Copa Pan-Americana de Marcha Atlética em Guayaquil, no Equador – ficando atrás apenas de Eider Arévalo.
E quem o acompanha de perto, pontua que Caio está preparado para ser competitivo. João e Gianetti afirmam que o filho conseguiu manter o desempenho em um patamar elevado, mesmo perante as dificuldades impostas pela pandemia, e está preparado para Tóquio. No mês final de preparação, o planejamento é de que os três sigam para Espanha e realizem um camping para assim, fortalecer de forma eficaz a reta final de um trabalho de cinco anos de muito suor, garra e dedicação.
Foram longos caminhos percorrido pela família Sena Bonfim, desde um início árduo em Sobradinho ao reconhecimento mundial. Perante todas as dificuldades e impasses enfrentados, Caio relembra com muito orgulho do momento único em que garantiu a sua classificação para os Jogos Olímpicos de Londres – conforme dito anteriormente, a sua primeira participação na festividade. ‘’Foi muita emoção, abracei minha mãe e falei, quem disse que você nunca foi para uma Olimpíada? E olha como as coisas são, agora, ela está indo para a terceira dela’’, completou.
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Por Lucas Junqueira
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira