Caso Cuca e as repercussões mostram que temática feminista ainda não chegou ao futebol, diz especialista

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Foto: Pedro Souza/ Atlético MG

A contratação e saída do técnico Cuca pelo Corinthians, o silêncio de três décadas sobre a condenação dele pelo crime de estupro na Suíça e até as repercussões do episódio trouxeram à tona o machismo estrutural que toma conta do futebol brasileiro.

Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM), Tânia de Almeida afirma que a causa feminina ainda não atingiu as quatro linhas. “Eu acredito que é uma luta que ainda não chegou aos gramados. O futebol foi, por muito tempo, um espaço criado e dominado pelos homens. É normal que haja uma resistência à discussão”, disse.

Foi a primeira vez que Cuca enfrentou cobranças frente a condenação pelo estupro da menina de 13 anos, à época relativizada pela imprensa e torcida.

O processo de retaliação e questionamento intenso foi tratado diretamente pela assessoria do treinador, que emitiu nota escrita pelos advogados de Cuca em sua defesa: “A defesa de Cuca reputa ser lamentável o irresponsável linchamento por situações ocorridas há 34 anos (…)”.

Estagnação

Apesar de frisar a importância da causa, a especialista Tânia de Almeida afirma que a discussão está longe de ter fim. “O Corinthians possui uma relação intensa com a história da democracia e da luta social do nosso país, não fosse o histórico do clube talvez o caso Cuca se quer teria estourado. A verdade é que nós evoluímos enquanto sociedade, mas o futebol continua estagnado por conveniência, quando a impunidade sempre foi lei, por via de regra, é difícil fazer com que o homem enxergue que este local não cabe mais a ele”, avisou Tânia.

Para ela, o futebol proporciona um ambiente hostil às mulheres. “A faísca precisava surgir e acredito que a partir de agora não vai ser tão simples quanto era antigamente. Não ouviremos mais apenas o lado condenado, a imprensa tem um papel importante nisso, a vítima deve ser a primeira a ser escutada”, garantiu a pesquisadora que também é ativista da causa.

“Se o Corinthians, pioneiro no futebol feminino, foi capaz de cometer tamanha injustiça, imagina quantas denúncias não foram jogadas para escanteio ou se quer foram feitas no meio futebolístico. Espero que tenha sido o estopim para que paremos de aceitar figuras como Cuca, Robinho e Pedrinho no nosso futebol, não é normal”. Tânia reitera a importância da virada de chave no caso Cuca. “Talvez o futebol finalmente tenha encontrado o caminho a seguir na tentativa de atingir a igualdade, é preciso ouvir, compreender e, sobretudo, se aliar”.

Quando as regras não se aplicam mais

Condenado sob o artigo 187 do Código Penal da Suíça, Cuca e os outros três colegas de elenco foram enquadrados por “atos sexuais com pessoas dependentes”. Em entrevista à Agência Ceub, a advogada Déborah Toni, especialista em questões de gênero no direito, esclareceu as entrelinhas jurídicas do processo.

“Na realidade nós sabemos muito pouco do que foi analisado pelo Tribunal de Berna, uma vez que o sigilo de 110 anos foi decretado para manter a integridade da vítima. A informação que, de fato, conhecemos, é de que Cuca foi condenado a 15 meses de encarceramento e mais uma multa de 8 mil reais pelos danos cometidos à vítima”, afirmou a advogada acerca da condenação.

Apesar de ter sido condenado, o ex-técnico alvinegro nunca cumpriu a pena estabelecida pelo processo. “Acontece que, de acordo com o Código Criminal da Suíça, crimes com penas entre um e cinco anos de prisão prescrevem após 15 anos da sentença dada. Sendo assim, não há mais possibilidade de cumprimento da pena por parte de nenhum dos envolvidos no caso”, explicou a entrevistada.

Questionada sobre como cobrar respostas com respaldo legal sobre o caso, Déborah vê dificuldade em encontrar uma saída.

“Não é fácil navegar esse assunto, tanto socialmente quanto no âmbito jurídico. Existe um crime que prescreveu, portanto não há possibilidade de se ‘pagar’ pelo crime cometido, mas a sociedade necessita dessa quitação de uma dívida moral e humana que acontece quando alguém é condenado. Cuca será para sempre um culpado em caso de estupro, é algo que não dá para tirar do currículo”.

A dívida moral, no entanto, não pode ser eterna, afirmou a advogada. “Por mais duro que seja, parte do processo penal é a reintegração, Cuca não pode ser excluído do convívio social para sempre, mas precisa assumir sua culpa. A sociedade não é ingênua e o processo legal o reconheceu como culpado, precisa haver um processo de complacência de ambas as partes. Cuca precisa assumir sua culpa e pedir, no mínimo, desculpas pela barbaridade cometida, e nós precisaremos encontrar um equilíbrio para aceitá-lo de volta aos meios sociais comuns”.

Há vida após

Com ou sem retaliação, o mundo do futebol permanece permissivo. Poucas semanas após a revolta que seguiu a contratação de Cuca pelo time alvinegro, o então presidente do Atlético Goianiense, Adson Batista, afirmou que Cuca teria espaço no dragão e condenou o “feminismo abusivo” que tripudiou do treinador enquanto esteve no comando do clube paulista.

Após a vitória da equipe rubro-negra frente ao Londrina, pelo Campeonato Brasileiro da Série B, o presidente do Dragão declarou apoio à Cuca durante a coletiva de imprensa:

“Ele (Cuca) é um dos maiores treinadores do Brasil. Porque hoje a lacração tem em qualquer coisa, você tem que matar o cara e o cara morrer de fome, porque ele não merece trabalhar. O ser humano merece sim, sempre ter uma segunda chance”.

Por Ana Beatriz Martins
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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