Na cidade que ficou famosa por ter o maior lixão a céu aberto, brasilienses reclamam da falta de regularização das casas e da falta de direitos sociais. Ruas repletas de poeira, sem asfalto, cheia de barracos. Este é o cenário mais comum na Estrutural, de 45 mil habitantes. A chegada pela via expressa (DF-095) até engana, com ruas asfaltadas, casas, praças com jardins bem cuidados, mas é só adentrar as estreitas vias para verificar a situação do local, que não pode ser medida do ponto de vista da estrada. Na região administrativa da Estrutural, o problema não são apenas as condições viárias, mas principalmente os reflexos diários de não ter um endereço formal.
O lixão onde em volta surgiram as primeiras “casas” da Estrutural foi destituído em 20 de janeiro. O governador Rodrigo Rollemberg havia anunciado o fechamento em outubro de 2017, mas o mesmo só ocorreu em 20 de janeiro de 2018.
De acordo com Melquisedeque Portela, o fechamento do lixão era algo necessário, trazendo avanço e melhoria na qualidade de vida, já que muitos adoeciam por causa do gás tóxico no local. “É uma situação complicada, desumana, trabalhar nesse lixão a céu aberto, que é um dos maiores da América Latina. Já que existe a possibilidade de equipar os galpões fechados, conforme proposta do governador, eu creio que trará uma melhora para a vida dos catadores”. O governo, juntamente com o Serviço de Limpeza Urbana (SLU), prometeu estruturar galpões com maquinário para receber os catadores.
Agora todo o material reciclável coletado pelo SLU é entregue às cooperativas instaladas nos galpões. Para não prejudicar os catadores que necessitam dessa renda, está sendo feita uma campanha para conscientizar a população a melhorar a separação do material reciclável em casa. Com os encerramento das atividades do lixão, o local passa a receber apenas resíduos de construção civil.
““Eu só queria que as autoridades olhassem pra gente, que regularizassem nossas terras, que fôssemos reconhecidos como cidadãos”
Josélio faz parte da maioria de uma população que não nasceu no Distrito Federal. Nada menos do que 52,45% dos habitantes do lugar vieram de fora. Ele veio para Brasília, como tantos outros, em busca de emprego. Saiu do Maranhão (como 8,53% da população do lugar) buscando uma melhor qualidade de vida, e viu na Estrutural um novo recomeço. Hoje trabalha como motorista para a Associação Viver, uma organização que atende 300 crianças com apoio educacional e psicológico, localizada ao lado da entrada do lixão, e sonha com a regularização de sua casa. “Já estou nessa busca há dois anos, mas até agora, só recebo promessas. Água, luz e esgoto a gente até tem, mas é tudo gato, passa rede por lá e nós puxamos, damos um jeito”. Josélio conta ainda que, além das dificuldades com a casa, também tem problemas com a educação dos filhos. “Não tem escola pra todo mundo, tenho dois filhos e só um conseguiu vaga pra estudar aqui, o outro tá estudando no Cruzeiro – que fica a cerca de 10km”.
Josélio dos Santos aguarda a regularização de sua casa para finalmente ter um endereço
A regularização é necessária não apenas para acabar com o medo de ter sua casa derrubada, mas também para ter um endereço, credibilidade. “Quando preciso comprar alguma coisa grande, que necessita de entrega, o pessoal não quer me vender, porque a gente não tem um endereço regular, né, então eles não confiam”, alega Josélio. Outro problema causado pela não regularização é o atendimento nos postos de saúde. “Os médicos não querem nos atender, quem mora em área irregular não consegue fazer uma ficha direito, em qualquer lugar que a gente chega, somos discriminados por não ter um endereço”, reclama Josélio, que acrescenta: “Eu só queria que as autoridades olhassem pra gente, que regularizassem nossas terras, que fossemos reconhecidos como cidadãos”.
Não ter um CEP – Código de Endereçamento Postal – gera uma série de inconvenientes para os moradores, como por exemplo não receber as correspondências, entregas e contas em casa, e até mesmo não conseguir se cadastrar em órgãos governamentais como a Receita Federal. Não havendo código de endereço postal previamente designado pela empresa exploradora do serviço postal, o usuário poderá, mediante a apresentação de documentação comprovando a posse ou propriedade de imóvel, requerer a criação do respectivo código endereçamento postal, desde que tenha documentos comprovando a propriedade do imóvel. Logo, enquanto não conseguir a regularização de suas casas, os moradores da Estrutural continuarão sem ter um endereço.
A cidade
A Estrutural surgiu com a invasão de catadores de lixo, que, buscando meios de sobrevivência, foram criando seus barracos perto do aterro sanitário. No início, eram menos de 100 famílias morando no local, mas a partir dos anos 90, o conjunto de barracos em volta do lixão foi aumentando. Foi quando a família de Moisés de Jesus, 28 anos, chegou à cidade. “Aqui antes era só mato, não tinha nada. Meu pai veio pra cá em busca de emprego e fez uma chácara, eu e meus irmãos costumávamos brincar no lixão quando crianças, foi em volta dele que a cidade começou a crescer”.
A busca de quase toda a população – só não é de quem já conseguiu – é pela regularização da casa, para não correr o risco de tê-la derrubada, como aconteceu com Moisés em 2005. “O governo passou na nossa rua e derrubou a minha casa e mais 14. Passamos dois anos morando eu, minha esposa, meus cunhados e as crianças, todo mundo junto em um barraco grandão. Depois de um tempo, construímos nossa casa novamente e conseguimos uma liminar, uma carta da Codhab – Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal – assinada, que impede que a derrubem. Estamos lá até hoje, damos nosso jeito, já temos água, luz e até esgoto”.
Essa carta, no entanto, não é o documento de regularização. Segundo o professor de urbanismo Benny Schavarsberg, quando acontece o processo de regularização na Estrutural, os moradores recebem um documento, como aconteceu com Moisés, que se chama concessão de direito de uso, que garante às pessoas o direito à posse da propriedade de forma segura. Este documento tem o valor semelhante ao de uma escritura, pois garante a posse, que dá à pessoa segurança jurídica.
Estar mais perto do trabalho e ter um local para chamar de lar foram os motivos que fizeram João Bento, segurança no Conselho Tutelar, mudar-se para a Estrutural.
João Bento veio para a cidade para ficar mais próximo do trabalho, pagou bem mais caro para conseguir uma casa regularizada. “Eu tenho o documento da minha casa, mas os meus vizinhos da frente e do lado não têm. Como eu vim pra cá há pouco tempo, tive a escolha de conseguir algo regularizado. A maioria está aqui há anos e nunca teve opção, senão deixar as suas casas, mas ninguém quer isso, né, deixar o lar. Eu não queria ter problemas, não queria dar um tiro no escuro e correr o risco de perder minha casa. Eu tenho água e esgoto, mas a cidade não tem estrutura nenhuma, estamos cercados de lixo”. O segurança lembra também que para muitos, a regularização não é importante. “A gente vê que as pessoas não correm atrás disso, para elas não faz muita diferença ter o documento, mas o documento é a prova de que aquilo te pertence!”.
Algumas casas da cidade já estão regularizadas; em sua maioria, as que estão mais no centro da cidade. O resto da Estrutural, chamada pelo administrador da cidade, Melquisedeque Portela, de polígono, espera ansiosamente pelo documento. Até o momento, segundo a Codhab, já foram entregues mais de quatro mil escrituras, mas, por conta da ocupação desordenada, a emissão dos títulos acaba prejudicada e o processo fica mais lento.
A cidade conta ainda com uma favela gigantesca, de cerca de 10 mil famílias, localizada na região nordeste do mapa, que se estende até a fronteira com o Parque Nacional de Brasília.
Santa Luzia
A 13 quilômetros da Câmara Legislativa do Distrito Federal, cresce descontroladamente uma ocupação na Cidade Estrutural. A Chácara Santa Luzia, que existe desde o início dos anos 80 e nunca recebeu muita atenção, hoje abriga cerca de 20 mil moradores, e conseguiu sua primeira parada de ônibus em março de 2017.
Em abril do ano passado, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) publicou sentença obrigando o Governo de Brasília a desocupar as Áreas de Relevante Interesse Ecológico (ARIEs), onde se situa Santa Luzia, em um prazo de seis meses. A Terracap recorreu da decisão, e o prazo só começará a valer depois de julgado.
A área de Santa Luzia está fora da poligonal da Estrutural, e se encontra em uma faixa de tamponamento, que foi criada para separar a invasão do Parque Nacional de Brasília. Essa faixa deveria ser de 300 metros, mas o que separa as casas das árvores do enorme parque é apenas uma rua.
Dermival Amador, auxiliar de porteiro da Associação Viver, é baiano, veio parar na Estrutural procurando emprego e hoje é morador do setor de chácaras Santa Luzia. “Eu não cheguei invadindo não, comprei o lote de um amigo meu por R$ 4 mil há quatro anos, até hoje ninguém invadiu minha casa, apesar de já ter tido alguns furtos na minha rua”.
A região, que hoje já conta com uma associação de moradores própria, sofre com a escassez de produtos básicos para a sobrevivência, como a água. “Água e luz lá em casa é escasso, infelizmente não tem e os moradores acabam improvisando. Agora eu to pegando água potável do serviço pra levar pra casa e conseguir fazer comida, e um vizinho me fornece água do poço para lavar roupa, louça e a casa, desse jeito a gente vai se virando”, explicou o morador.
“Neste ano consegui concluir o ensino médio, foi uma vitória enorme pra mim”.
Apesar das dificuldades, Dermival conseguiu realizar um sonho, que era se formar no ensino médio. “Eu tive a oportunidade de voltar a estudar aqui na Estrutural, porque no interior onde eu morava, meus pais se mudavam muito, e isso atrapalhou muito os meus estudos. Neste ano consegui concluir o ensino médio na escola de jovens e adultos, foi uma vitória enorme pra mim”.
Quanto à escolaridade, aproximadamente 44% dos habitantes têm o ensino fundamental incompleto (17.334). As estatísticas indicam ainda que a maioria da população não estuda — 25.723 habitantes ou 65,94% — e que 12.335 (31,61%) pessoas frequentam a escola pública.
Ao ser questionado sobre a regulamentação do local onde vive, o auxiliar de porteiro afirma que já foi em audiências públicas, que tem cadastro registrado na Codhab e agora resta esperar o governo. “Minha casa é barraco de madeirite, a situação financeira não nos permite melhorar, e a gente aguarda a situação do governo, se vai regularizar ou vai arrumar um lugar fixo pra remanejar esse povo. Claro que eu tenho medo que derrubem tudo né, a classe baixa não tem pra onde ir, não é que a gente queira morar neste setor, mas não temos pra onde ir”.
O administrador Melquisedeque Portela alegou que há um projeto do governo, ainda sem prazo definido, para que seja feita uma espécie de cinturão, que é um setor de prédios, para atender toda a comunidade. “Nós queremos tirar as pessoas dessa situação que elas estão vivendo, dar dignidade à essas famílias”.
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