Cidade Estrutural: crianças traduzem sentimentos de medo da violência

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As 15 crianças estão em roda na sala de aula. Elas me olham surpresas, faço a apresentação, mas já têm ideia do que uma repórter faz: “É uma pessoa que entrevista os outros”, disse uma delas. Ansiosas por esse momento, as crianças se organizam e olham atentas. Entrego as folhas de papel e peço um desenho. Lanço a seguinte pergunta: “Para vocês, o que é violência?”. A primeira resposta que escuto é “estupro”. Do olhar da repórter para o olhar delas. Aqui é o que elas pensam que interessa. O menino sorri com a ideia de que acertou a resposta. As crianças arriscam outras alternativas para a questão: “ladrão”, “roubo”, “facada”. As definições ecoam pela sala. Começam a apontar os lápis e a desenhar. No papel, elas esboçam algumas impressões de mundo. O que as palavras significam? E os desenhos? O que as carinhas alegres ou confusas podem representar? É difícil dizer, afinal, essas crianças têm apenas seis anos.

Os alunos estão há exatos 13,3 quilômetros do centro do poder, no Centro de Ensino Fundamental 2 da Estrutural, um dos bairros mais vulneráveis do Distrito Federal. A reportagem aplicou um questionário em sala com 27 crianças de 8 a 14 anos, além de conversar e recolher desenhos sobre a temática com outro grupo entre 6 e 7 anos.  As famílias concordaram com a conversa com resguardo das identidades deles. Apesar das estatísticas que serão mostradas a seguir, há o olhar confuso, os relatos e as brigas na hora do recreio.

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“Criança não pode trabalhar”

Em sala, a ideia é uníssona: todos dizem que criança não pode trabalhar. Ao final da pesquisa, sete jovens do grupo entre 8 e 9 anos colocaram que crianças menores de 14 anos trabalhando seria errado apenas às vezes. No mesmo grupo, a maioria também afirmou que ajudar nas tarefas domésticas enquanto os pais trabalham é errado só às vezes ou nunca. “Eu sempre ajudo e tomo conta do meu irmão, acho que é certo”, diz uma delas. O menino ao lado discorda. “Eu não gosto de ajudar em casa”, afirma. As meninas ainda se identificam muito mais com a obrigação de tomar conta dos afazeres domésticos.

A psicóloga Tânia Nascimento explica que o lugar da criança na sociedade, enquanto indivíduo em formação, deve ser preservado. “O papel social da criança consiste principalmente no brincar saudável e livre, além do estudo, a fim de que esta se torne um adulto pleno e ativo na sociedade. Essa visão não deve ser deturpada, pois pode levar a diversas consequências futuras, quando o infante estiver psicologicamente maduro”, afirma.

Marcas

Menos sutis do que se imaginaria, as marcas se apresentam. A exposição a um ambiente conflituoso e por vezes violento influenciou a menina de seis anos na hora de desenhar o que a violência significa. Segundo ela, o desenho de um frasco representava uma bebida alcóolica.

“Sempre que tem cachaça acontece uma coisa ruim”, relata.

A hora do recreio é o momento de descanso tanto para os professores, que realizam um lanchinho coletivo, como para as crianças, que são direcionadas às áreas comuns e de lazer. Assim como em toda escola, alguns ficam na porta da sala, ansiosos para ouvir o sinal tocar e sair para brincar. Logo que escutam o barulho do sino, correm para a área externa e já começam a dividir os times ou planejar as brincadeiras. Os bedéis zelam as grades para que as crianças não ultrapassem os limites da escola. Mas nem todos gostam da hora do recreio. A violência também acontece entre eles, durante o intervalo, e nem tudo é brincadeira de criança. Pelo menos 10 crianças expressaram que se sentem incomodadas com as ameaças, brigas e xingamentos que recebem de outros alunos, exceto o adolescente de 14 anos que disse livremente: “Ninguém chega em mim, sou o mais velho da escola. Ninguém tem coragem”, conta.

Tudo parece normal e tranquilo… até o momento em que dois meninos trocam tapas e socos. O bedel, professores e amigos não separam imediatamente. Todos estão ocupados demais. Os colegas em volta dizem que é sempre assim. Na pesquisa, todas as crianças entrevistadas assinalaram que sempre há brigas na escola. A psicóloga explica que presenciar situações de violência frequentes pode deixar diferentes marcas.

“As crianças que convivem em ambiente familiar agressivo podem repetir esse comportamento no futuro por terem tido tais atitudes como corretas durante o desenvolvimento de seus pensamentos, ideias e senso crítico”, explica.

A profissional ainda destaca que a violência é um fator determinante para o surgimento desse comportamento hostil. “A violência infantil, principalmente em ambiente familiar, pode ser um grande fator de risco e ter diversas consequências no desenvolvimento psicossocial da criança. Alguns desses efeitos são isolamento, ansiedade, agressividade, depressão, baixo desempenho escolar e medo, podendo até desenvolver transtornos psiquiátricos. Se a criança está presa ao trauma e não consegue progredir, deve procurar ajuda de psicólogo infantil ou outro profissional de saúde mental”, completa.

 

Desproteção

O cotidiano desses meninos se assemelha ao de muitos outros pelo Brasil, onde 28 crianças e adolescentes morrem por dia. A maioria são meninos, negros, pobres e moradores de periferias e áreas metropolitanas de grandes cidades. Negligência dos pais, insegurança na escola, o medo de brincar na rua e as marcas de um ambiente violento transparecem nos depoimentos.

 

O retrato da realidade de crianças que moram em regiões periféricas, como é o caso das crianças da Estrutural, parte de princípios muito básicos da sensação de insegurança. Dentre as 27 crianças entrevistadas, 24 responderam que nunca se sentem protegidas pela polícia. Em relação ao bairro em que moram, 61% das crianças afirmaram que às vezes ou nunca se sentem seguras. A ausência de algum responsável zelando pela segurança e acompanhamento nas atividades também é bastante frequente. Apenas seis crianças responderam que sempre estão acompanhados de algum responsável em casa.

Sozinhas em casa

A psicopedagoga da escola, Elaine Honorato, entende que a falta de acompanhamento dos pais e responsáveis é um dos principais fatores para que as crianças fiquem expostas a violência. “Aqui, nós temos um quadro de pais que passam a maior parte do tempo fora de casa, trabalhando. Muitos trabalham no Lixão, por isso, muitas vezes, não têm com quem deixar os filhos, então boa parte das crianças daqui passa a maior parte do dia sozinhas em casa. São crianças de 8, 9, 10 anos e vários fatores acabam levando essas famílias a ter uma negligência com as crianças”, explica.

Confira entrevista com a psicopedagoga

Para a Defensora Pública, Eufrásia Maria Souza, que atua como coordenadora da Defesa dos Direitos da criança e do adolescente no órgão, a proteção da criança deve ser assegurada pela família, sociedade e governo. “Qualquer violação pode ser comunicada ao Conselho Tutelar diretamente, órgão de proteção, incumbido pela sociedade de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, ou ligando para a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos através do número 100, assim como acessando o aplicativo chamado Proteja Brasil”, adverte.

Eufrásia Souza ainda ressalta que os casos mais evidentes de violência devem ser encaminhados para apuração através de delegacia comum ou delegacia especializada no atendimento à criança e adolescente. “A Defensoria Pública também se coloca à disposição para encaminhar adequadamente os casos para a proteção do direito de crianças e adolescentes, inclusive através de medidas judiciais que se fizerem necessária, por exemplo, para afastamento do agressor”, garante.

A escola visitada, o CEF 2, assim como outras escolas da secretaria de educação do DF, não dispõe de atendimento clínico para as crianças. A psicopedagoga explica que o trabalho do psicólogo na secretaria é de investigar e dar uma avaliação das crianças que apresentam algum problema de aprendizagem ou de inserção no meio escolar, além de elaborar projetos dentro da escola. A partir do diagnóstico, a família deve procurar um profissional.

Última pergunta

Agora, ainda na sala de aula, as crianças parecem cansadas de responder e debater tantas questões. O último questionamento dói. “Vocês acham que serão felizes quando crescer?”, indago. Diferente da primeira pergunta, dessa vez o burburinho diminui, eles abaixam as cabeças e encaram as fichas, pensativos. Todas as crianças que conseguiram terminar a pesquisa marcaram que só às vezes acreditam que podem ser felizes quando crescer. A falta de perspectiva de viver uma vida segura, saudável e feliz preocupa ainda mais do que a percepção precoce sobre a violência.

Violência infantil em números

Segundo a Unicef, crianças e jovens de até 18 anos são 31,1% da população do Brasil. Entre o número de adolescentes que morrem no país, 36,5% são assassinados. Na população total, esse percentual é de 4,8%. Esse cenário confirma a colocação do Brasil como o segundo país do mundo em número de assassinatos de adolescentes, atrás apenas da Nigéria, país que sofre com a presença de grupos extremistas, como o Boko Haram.

Em outra pesquisa, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, um organismo de cooperação internacional para pesquisa, o número de homicídio de crianças e adolescentes coloca o país em terceiro lugar em uma lista de 85 nações. O “Relatório de Violência Letal contra as Crianças e Adolescente do Brasil” faz relação ao número de vítimas de homicídio em 2013, e contabilizou 10.520 crianças mortas. O número equivale a 3,6 chacinas da Candelária por dia. A pesquisa ainda evidencia que as vítimas têm cor, renda e endereço, sendo que o número de vítimas negras é quase três vezes maior que o de brancas.

De acordo com estatísticas da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, são realizadas, em média, 5 denúncias por hora ao Disque 100 de violência contra crianças e adolescentes. Ao todo, foram realizadas 1.053 denúncias só no primeiro semestre de 2016. No Brasil, as situações de negligência, violência psicológica, física e sexual são os crimes mais comuns, segundo o balanço. As violações atingem principalmente as meninas, que são as vítimas em 45% dos casos. A faixa etária mais atingida é de 8 a 11 anos.

Medidas

No dia 5 de abril foi publicada no Diário Oficial uma lei que assegura garantias e direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. O projeto estabelece alguns diferenciais do que já se tem atualmente, como a criação de atendimento telefônico para denúncias de abuso e de exploração sexual e de serviços de referência multidisciplinar no Sistema Único de Saúde (SUS) para atenção a crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Este seria separado do Disque 100, gerenciado pela Secretaria de Direitos Humanos. A nova legislação versa ainda sobre como serão feitos os atendimentos e os encaminhamentos das denúncias, e detalha os procedimentos de escuta especializada e de depoimentos de crianças e adolescentes durante as investigações de casos envolvendo violência.

O Criança Feliz é um programa do Governo Federal que foi criado para dar assistência às famílias com crianças pequenas e que estão cadastradas no tradicional Bolsa Família. O programa promete acompanhar 4 milhões de crianças até o fim de 2018, porém, até agora, apenas 2.529 cidades aderiram, o que representa metade dos municípios do país.

Por Alice Leite

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