No início dos anos 1960, o professor Paulo Freire foi para a cidade de Angicos (RN) testar um método de alfabetização diferente.
Ele defendia que, para ter sucesso no ensino, seria necessário valorizar os conhecimentos prévios dos novos estudantes.
Em apenas 45 dias, o Patrono da Educação do Brasil conseguiu alfabetizar cerca de 300 camponeses.
O método concentrava-se em conciliar o aprendizado com o cotidiano de seus alunos. A maioria deles eram adultos e trabalhadores braçais.
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Com o sucesso do método, Paulo Freire foi convidado por João Goulart para participar da criação do Plano Nacional de Educação no início dos anos 60, mas foi interrompido ainda em fase de treinamento e não chegou a ser implementado.
Cotidiano e palavras
Segundo o professor Erlando da Silva Rêses, da Faculdade de Educação da UnB, que também é alfabetizador, no método de Freire, o alfabeto iria se revelar com maior facilidade sendo introduzido em palavras e conceitos que estivessem envolvidos em seu cotidiano.
Por exemplo, um servente de pedreiro no estudo das palavras viga, tijolo, madeira; palavras e conceitos que faziam parte de suas vidas.
“Estes termos escolhidos dentro da realidade de seus alunos foram nomeados como palavras geradoras”, explicou.
O professor lamenta que o método de Paulo Freire foi substituído pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Ele entende que a ditadura tinha como principal objetivo ensinar as pessoas a assinarem seus nomes para que se tornassem eleitores.
Resistência
Paulo Reglus Neves Freire, reconhecido internacionalmente como um dos maiores educadores do século XX, é símbolo de resistência para aqueles que acreditam que a educação é a chave para a conscientização e libertação.
Através de seu legado, educadores do Distrito Federal lutam contra o analfabetismo, mudando a vida de seus educandos e dando continuidade à práxis freireana.
Ler o mundo
Nascido e criado em Recife (PE), vindo de uma infância pobre, Freire dedicou sua vida às causas sociais, buscando transformar vidas alfabetizando e abrindo as portas do mundo para essas pessoas.
Após pesquisa, propôs um método de alfabetização que tem como objetivo agilizar e facilitar o aprendizado de seus alunos de forma em que eles possam “ler o mundo”.
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Inspiração
Na cidade de São Sebastião, um professor da rede pública chamado Elias Silva, de 57 anos, inspirado pelos ensinamentos do educador pernambucano, criou a Casa de Paulo Freire para ajudar na alfabetização principalmente de pessoas mais velhas, de forma gratuita.
O docente vibra com os resultados Ao olhar para a história do mestre que o transformou, afirma que qualquer movimento que as classes populares fizerem para mudar a sua realidade sofrerá efeito colateral.
“Ele ia implantar o Plano Nacional de Alfabetização e iria zerar o analfabetismo no país. Isso, para o Regime Militar, não era bom, pois iria mexer com as estruturas”, avalia o pesquisador.
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Perseguição
Durante a Ditadura Militar (1964-1985), o pensador foi perseguido, ficou preso por 72 dias e foi exilado do Brasil por 16 anos. Depois de 60 anos, Freire ainda é atacado, perseguido e alvo de desinformação.
“Paulo Freire despertava nos estudantes o senso crítico, e o Estado não quer pessoas críticas, conscientes, formadas, que reivindicam, que lutam pelos seus direitos. Ele conscientizava não de forma individual, mas de forma coletiva, em modularidade, debatendo os problemas. Agora, essas pessoas que falam ‘abaixo a Paulo Freire’ penso que nunca pegaram um livro pra ler”, diz Elias.
O método
Por isso, Paulo Freire, segundo avaliam os pesquisadores, foi um homem para além de seu tempo, pois queria que jovens e adultos aprendessem a ler e escrever e também pudessem discutir aspectos da vida, do cotidiano e do mundo, de modo a levar ao processo conhecido na filosofia como conscientização.
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“Ele implantou esse método acompanhando de perto. Ele não foi alguém que escreveu de forma abstrata um conhecimento para ser lido sem ser testado”, conta Rêses.
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Sua abordagem transcende os limites tradicionais da sala de aula.
Observar, acompanhar e avaliar coletivamente são os primeiros passos, para então assumir o papel de coordenador no processo de alfabetização.
É uma prática guiada pela noção de que a educação é uma via de mão dupla, onde tanto os educadores quanto os educandos aprendem e se desenvolvem juntos.
Na Ceilândia
O professor Erlando da Silva Rêses, da Faculdade de Educação da UnB, recorda que a jornada dele teve início em região de periferia, mais precisamente no município do Novo Gama (GO), no Entorno, no final dos anos 80 e início dos anos 90.
Ele se viu imerso em grupos comunitários organizados ligados à igreja católica.
Posteriormente, adentrou uma ONG dedicada à alfabetização de adultos.
“Lá, a semente do engajamento social foi plantada, encontrando na alfabetização não apenas um dever, mas uma oportunidade de contribuir significativamente para a comunidade”.
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Alfabetizadora
A professora Maria Madalena Tôrres, de 60 anos, é professora de filosofia com especialização em pedagogia e atual secretária do Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (Cepafre).
Ela lembra que teve o primeiro contato com a alfabetização em 1986, após fazer o curso, ser observadora e passar por todas as etapas necessárias para se tornar alfabetizadora.
Na igreja
No ano seguinte, teve sua primeira turma na antiga Igreja Nossa Senhora da Paixão, na Ceilândia Norte, na época do padre Antônio Gruyters, que apoiava os movimentos sociais da cidade.
“Eu morava longe, mas era muito gratificante ir até lá, onde tanto os alfabetizandos quanto os alfabetizadores eram muito bem acolhidos”.
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“Em 1988, nós nos envolvemos com os projetos Fundação Rondon e Fundação Educar, da Universidade de Brasília (UnB). Nesta ação, apenas em Ceilândia, foram alfabetizados 1.182 pessoas. Porém, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor, essas fundações foram extinguidas e ficamos sem apoio e recursos”, recorda.
A partir dessa situação, o grupo de jovens decidiu fundar o Centro de Educação Paulo Freire, em 2 de setembro de 1989.
Eles contavam com o apoio da UnB, do Centro de Cultura e Informação, da Ação Cristã Pró-Gente, e, é claro, da comunidade.
Erlando ressalta que toda a articulação para a realização do projeto foi feita pelo movimento social e popular, sem vínculo com nenhuma escola.
“Nós tivemos que lutar e pelejar para que a escola abrisse espaço para a gente trabalhar. Precisávamos do turno da noite, por que todos nós trabalhávamos durante o dia e éramos cerca de 10 pessoas”
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Para este ano ainda não há datas de volta às aulas, pois a direção está esperando a aprovação de duas emendas parlamentares para a inauguração de novas turmas.
O curso para alfabetizadores começará em abril, com data a definir. Interessados podem buscar informações no blog do Cepafre ou entrar em contato via e-mail (cepafre@gmail.com).
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Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia. Fotos: Cepafre
Os efeitos do método
Maria Lucimar Ferreira é um exemplo de que não importa a idade e de que nunca é tarde para ir atrás de seus sonhos.
A cuidadora de idosos, que veio de Teresina (PI) para Brasília em 2015, iniciou sua alfabetização no Cepafre em 2019, aos 53 anos, e se formou no ensino médio em 2023.
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Roça
Quando era criança, chegou a ser matriculada em uma escola, mas devido às condições da família teve que sair e começar a trabalhar na roça.
Movida pelo seu sonho de ser enfermeira, voltou aos estudos e hoje inspira muitas pessoas a fazer o mesmo.
“Tenho pessoas que me disseram que se inspiraram em mim para voltar a estudar, tanto em Brasília quanto em Teresina. Alguns pediram ajuda para entrar no Cepafre e hoje estão lá”.
Lucimar chegou em Brasília como analfabeta e hoje se sente uma pessoa completamente diferente e conta que nunca tinha ouvido falar de Paulo Freire antes de vir para a capital e hoje sente muito orgulho e gratidão ao compartilhar sua história.
“Hoje, ele é muito importante para mim, é um dos meus maiores orgulhos que vou levar para toda a minha vida. Foi lá no Cepafre onde aprendi e me desenvolvi, o Goete não só nos ajudava muito, como se tornou um grande amigo. São pessoas que eu me inspiro e admiro, como a Madalena por ela ser uma mulher guerreira.”
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Lucimar e seu educador, em sua formatura no Cepafre. Foto: Arquivo pessoal
Da roça para a aula
O professor Elias Silva atua em secretaria do Ministério de Desenvolvimento Social e é fundador da Casa de Paulo Freire. Ele se mudou para o Distrito Federal, vindo de Januária (MG), em 1971, aos seis anos de idade.
Na época, ele não era alfabetizado e só veio a ter contato com a escola aos 12 anos de idade. Trabalhava na roça. Elias conta que os pais têm a cultura de não colocar os filhos para estudar.
“Eu fui dessa turma da enxada, e só fui estudar aos 12 anos. Porém, eu experimentei e não gostei, então só fiquei uns 5 meses e voltei a trabalhar”.
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Foi apenas aos 16 anos que Elias entendeu a importância do ensino em sua vida. Trabalhava durante o dia e estudava à noite, buscando novos horizontes.
“Eu aderi ao universo educacional pela descoberta de que, você estudando, não vai sobrar somente o trabalho pesado, a mão de obra braçal”.
No processo de construção de sua trajetória educacional, Elias realizou uma pesquisa de campo em São Sebastião (DF), local onde mora, no ano de 1996.
Ele analisou que 50% das pessoas eram parcialmente alfabetizadas ou sem alfabetização alguma, encontrando um território extremamente vulnerável.
“Percebi que a educação vai te moldando com o tempo. Você vai fazendo descobertas e refletindo o mundo.”
A partir dessa pesquisa, e ao relembrar de suas origens, o professor teve a ideia de criar um projeto para ajudar a alfabetizar as pessoas não escolarizadas da região.
Vinte e cinco alunos foram convidados, mas apenas três compareceram. Ao longo do tempo a turma foi crescendo, graças a comentários e conversas de seus educandos com a comunidade, mas ainda com resistência.
“Para você levar um educando para a sala de aula você precisa estar muito bem preparado para convencer. É um trabalho de convencimento”, diz Elias.
O professor observa que, mesmo quase 30 anos depois, essa resistência continua presente, seja pela falta de incentivo ou pela descrença de que ainda é possível continuar os estudos.
“O mundo capitalista quer mão de obra, se a pessoa chegar pro patrão e falar que quer estudar para melhorar de vida, o patrão pode ameaçar demissão ou falar ‘você já está velho para estudar. Isso é coisa de criança’”.
Na garagem
A Casa de Paulo Freire, que teve início na garagem de Elias em 1996, hoje é uma instituição sem fins lucrativos que busca desenvolver a cidadania através de diversos projetos ministrados por voluntários. Para ficar por dentro das atividades, acesse o site do professor Elias.
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“A proposta de Paulo Freire era extremamente revolucionária. Quando uma semente plantada germina, cresce e dá frutos, e eu sou fruto de Angicos. Se nós estivéssemos hoje no Regime Militar eu estaria preso ou eu estaria morto, porque eu sou uma ameaça quando alfabetizo conscientizando.”
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Por Fernanda Ghazali, Pedro Vianna, Ayumi Watanabe e Yan Vittor
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira