“Ele sabia até o meu ciclo menstrual”. Esse é apenas um dos exemplos que a estudante Clarice* (nome alterado para preservar a entrevistada), hoje com 27 anos, cita ao descrever o relacionamento abusivo que viveu durante a pandemia.
Ela disse que o namoro, que durou cerca de 8 meses, foi marcado por controle psicológico, manipulação emocional e até mesmo hipnose.
Essa é uma violência menos visibilizada, mas que pode e deve ser denunciada para as autoridades a fim de proteger contra essa e outras agressões.
Controle
Em 2021, aos 22 anos, Clarice foi apresentada a Miguel, através de uma partida de jogo on-line. O rapaz era carismático, atraente e aparentemente “cuidadoso”.
Entre conversas longas e interesses em comum, o que começou como uma amizade virtual despretensiosa rapidamente evoluiu para um namoro à distância.
Nos dias de semana, Clarice era acordada pelas ligações do parceiro “informando-a” de se arrumar para o trabalho e não esquecer de mandar fotos da roupa. Já nos fins de semana, enquanto compartilhavam conversas pelo Discord, mais uma vez ela era lembrada de manter o aplicativo de localização ativado.
“Eu precisava mandar fotos da minha roupa antes de sair para o trabalho. Tinha que manter a localização ativada o tempo todo. Ele me ligava pela manhã para ‘não me deixar atrasar’, mas era só mais uma forma de controle”, relembra.
Em pouco tempo, o controle teria chegado ao estopim quando Miguel começou a pedir detalhes mais íntimos, sobre o ciclo menstrual e até a quantidade de absorventes que ela possuía.
“Ele tinha até o dia do meu ciclo menstrual. Ele sabia até quantos pacotes de absorvente eu tinha e isso não é de forma exagerada, eu estou falando isso abertamente.”
Assim, o que no início parecia um zelo, logo se revelou um padrão constante de vigilância. Cada gesto, cada passo, cada detalhe da rotina de Clarice era monitorado por Miguel, sob o disfarce de cuidado.
Ao longo do namoro, Clarice relatou que, além do controle, também sofreu diversas vezes manipulações emocionais. Elogios eram acompanhados de críticas, que não sutilmente a menosprezavam.
“Ele me chamava de burra, ou falava que eu era muito apática. Depois, se desculpava e dizia: ‘desculpa, não quis dizer aquilo, é só que você estava sendo estúpida’ ”
Outro abuso mencionado por Clarice foi o uso da hipnose como instrumento de dominação. Inicialmente apresentada como uma forma de ajudá-la com traumas da infância, a prática passou a ser usada como forma de manipulá-la.
“Ele me colocava em transe com um simples ponto numa mensagem. Às vezes eu entrava em transe no trabalho, ou em casa, com meu filho por perto. Me sentia uma marionete.”
Durante esses episódios, Clarice disse não lembrar de partes importantes da infância do filho, e aponta que o controle era tão detalhado que Miguel especificava o que ela iria sentir e o que não poderia fazer no momento.
Por fim, ela termina por lamentar que o parceiro também tinha ciúmes que ela interagisse com outros homens, incluindo o filho de 2 anos.
“Quando estávamos em uma videochamada, meu filho vinha brincar no meu colo, e ele falava que não era para eu ficar mimando muito ele. Dizia que era para eu deixá-lo no cantinho enquanto estivéssemos conversando.”
Medo
Através de uma conversa com uma amiga próxima, que também esteve em um relacionamento semelhante, alertou Clarice começou a perceber que, tudo aquilo que Miguel dizia ser uma demonstração de amor, poderia ser na verdade um comportamento tóxico e opressor.
“Ele dizia que tudo aquilo era amor, que ninguém nunca tinha amado ele de verdade, que os pais não o amavam. Que eu era a única pessoa que o compreendia.”
Após essa realização, foi quando o medo e a necessidade de desvinculação das práticas abusivas do então namorado fizeram com que Clarice buscasse medidas graduais de afastamento.
“Às vezes eu desligava o celular de propósito e falava que tinha descarregado o celular só para não ter que me explicar para ele”, descreve.
Nesse processo, o receio não se limitava apenas às conversas por telefone. Mesmo que ele morasse em outra cidade, a apreensão não diminuía.
Clarice relata que, pelo fato do ex-companheiro conhecer seu endereço e ter fotos do imóvel, vivia sob a constante tensão de uma possível “visita”.
“Como ele tinha o meu endereço e a foto do imóvel onde eu estava morando, eu tinha muito medo dele ir lá”, informa.
Não foi simples, mas com bastante apoio da amiga que havia alertado-a sobre a violência psicológica, Clarice, depois de muitos xingamentos por parte do parceiro, criou coragem e forças para terminar o namoro.
“[Ele] disse, que eu tinha acabado com a vida dele. Que o havia feito desperdiçar meses da vida dele com o amor que ele poderia dar a outra pessoa.”
Sobrevivência
Uma vez livre da opressão e controle, o alívio surgiu como uma reafirmação da autonomia que ora teria sido perdida para o ex-namorado.
“Eu só agradeço por ter sido um relacionamento à distância. Se fosse mais físico, acredito que seria muito mais difícil de sair, ou nem teria conseguido, porque eu não teria em quem me apoiar.”
Agora, fazem 4 anos desde o término, contudo as feridas profundas do abuso psicológico ainda foram totalmente “curadas”. Nas palavras de Clarice, foi necessário reaprender a confiar e se relacionar de forma saudável, não só em relacionamentos amorosos, mas também com amigos e familiares.
“Hoje em dia eu sou uma Clarice diferente, acho que meu maior medo é de voltar a ficar assim…totalmente vulnerável a uma pessoa como eu fiquei.”
Denúncias
O medo de voltar a viver a mesma situação relatado por Clarice não é isolado. Histórias como a dela se repetem em todo o país e aparecem refletidas nas estatísticas oficiais com crescimento alarmante.
O Painel de Dados do Ligue 180 na região do Distrito Federal, foi observado que no ano de 2024 foi relizadas apenas 3 denúncia remetentes a tortura psicológica. Em 2025, o número saltou para 162 até o dia 31 de julho, um aumento de 5.300%.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, “houve um aumento de 6,3% na taxa do crime de violência psicológica, com mais de 50 mil registros policiais em 2024” no território nacional.
Já dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal analisaram 20.867 ocorrências no ano de 2024 de seis tipos de violências relacionadas à Lei Maria da Penha, dispostas no gráfico abaixo.
Sendo a mais denunciada – 75,6% das ocorrências – violências do tipo moral e psicológica que abrangem crimes de injúria, difamação, ameaça, stalking, dentre outros.
Fonte: Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal
Por Maria Paula Valtudes e Riânia Melo
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira