O assédio a mulheres, seja ele moral ou sexual, dentro dos meios de transporte (públicos e particulares) é comum no Brasil, e não faltam dados, artigos, denúncias e reportagens que comprovem este fato. Um dos casos mais conhecidos de assédio sexual no transporte público ocorreu, em 2018, no Rio de Janeiro, com a jovem Marcelly Chaves, na época com 23 anos. Marcelly voltava da faculdade de metrô, por volta das 22 horas, quando notou um homem junto a si, constantemente a encarando. Incomodada com a situação, a estudante tentou afastá-lo, mas antes que pudesse agir notou que o homem já estava com seu órgão sexual para fora, ejaculando em suas próprias calças e nos pés de Marcelly.
O relato da jovem viralizou e, em menos de dois dias, atingiu mais de 36 mil compartilhamentos nas redes sociais. Marcelly conseguiu chutar seu agressor e obter ajuda de outros passageiros, mas infelizmente, após quatro horas de espera na delegacia, foi notificada de que o homem já havia sido liberado. Outro caso que ficou muito conhecido e gerou revolta foi o da repórter Caroline Apple, do Grupo R7.
A jornalista sofreu abuso sexual dentro de um vagão do metrô, em São Paulo, ao ter um homem ejaculando diretamente na parte de trás de sua calça. Em seu relato, Carolina explica que mesmo com o vagão lotado, o homem não se intimidou e sentiu-se no direito de “aliviar-se” na repórter, que só percebeu o que havia acontecido após descer do transporte e sentir sua calça quente e molhada, foi então que ela entendeu o ocorrido. Ela procurou a segurança do metrô, que a informou de que nada poderia ser feito e cabia a ela ter gritado ou procurado ajuda no momento do acontecido. O metrô abandonou a procura pelo suspeito e ninguém foi penalizado.
O transporte público não é o único a registrar este tipo de ocorrência. A empresa 99Taxi registra que, só em 2020, 23% das ocorrências de segurança reportadas correspondiam a casos de assédio. Já o aplicativo de transportes e entregas Uber, em 2019, registrou mais de 6 mil casos de assédio por motoristas.
Pesquisa Nacional aponta que 97% das brasileiras já sofreram assédio
Neste mesmo ano, dados da pesquisa nacional “Segurança das Mulheres no Transporte”, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Instituto Locomotiva, apontaram que 97% das brasileiras com mais de dezoito anos já sofreram algum tipo de assédio dentro de algum transporte coletivo, como ônibus e metrôs, e particulares, como aplicativos e táxis.
No quadro abaixo estão descritas as violações mais comuns reportadas pelas entrevistadas nos transportes conforme pesquisa
Fonte: Instituto Patrícia Galvão/Locomotiva, pesquisa e estratégia.
Situações como essas descritas ocorreram com a consultora de vendas, Paola Silveira, de 28 anos. Paolla conta que já sofreu incontáveis episódios de assédio, desde sua adolescência, tanto no transporte público, quanto em aplicativos de carona. Um dos mais marcantes para a consultora ocorreu em 2014. Ela conta que já era bem madrugada e que estava um pouco bêbada numa festa, quando ela e a amiga resolveram ir embora. “Chamei um uber do meu celular e, quando a gente entrou no carro, o motorista começou a fazer várias brincadeiras sobre sermos ‘muito bonitinhas’ para estarmos sozinhas bebendo uma hora daquelas que deveríamos ter mais cuidado, perguntando se a gente era um casal, se morávamos com nossos pais e outras coisas bem pessoais, desconfortáveis”, recorda-se Paola.
Para especialistas, estes e outros casos são reflexos de práticas, crenças e comportamentos, muitas vezes já enraizados, de uma sociedade patriarcal e, consequentemente, machista, que cultiva a chamada “cultura do estupro”. Cultura do estupro objetifica a mulher – despersonalizando-a, e a coloca como inferior ao homem, atribuindo seu valor a funções domésticas, reprodutivas e sexuais, como explica a socióloga Ayla Viçosa.
Cultura do estupro: o que é?
O termo “cultura do estupro” já vem sendo usado nos EUA desde a década de 70, durante a Segunda Onda do Feminismo, entretanto, passou a ganhar força no Brasil apenas em 2016, quando houve um gravíssimo caso de estupro coletivo de uma menor de idade no estado do Rio de Janeiro, que foi registrado e divulgado pelos próprios agressores. No Brasil, tivemos três ondas feministas. A primeira, ocorrida no início do século 20, tinha como principal objetivo o direito da mulher ao voto, mas também reivindicava o acesso ao ensino superior e a ampliação do campo de trabalho. Com o voto já garantido, a Segunda Onda do Feminismo, que tomou lugar por volta da década de 60, trazia questões mais ligadas à sexualidade e autonomia da mulher. Por fim, terceira e mais recente Onda Feminista, o feminismo ganhou mais espaço, junto a debates sobre uma maior inclusão, principalmente de pessoas trans, nos espaços feministas.
Mas o que quer dizer, de fato, ‘cultura do estupro’? Para entender o termo, primeiramente, é preciso esclarecer a diferença entre “cultura” e “natureza”. O termo cultura diz respeito a uma série de costumes, hábitos e comportamentos desenvolvidos socialmente a partir do grupo ao qual pertencemos, que podem ser modificados com o passar do tempo, ou dependendo da região ou do território em que as pessoas vivem. Já o termo natureza refere-se a instintos e necessidades básicas do ser humano, sendo estes inatos e imutáveis, como a necessidade por comida, água ou sono, por exemplo.
Sendo assim ‘cultura do estupro’ é a expressão usada para descrever uma série de comportamentos individuais e/ou coletivos, socialmente aceitáveis, mas que perpetuam a ideia de que a vítima é a aquela que induz o comportamento do agressor. No caso de violência contra a mulher, ela é a própria culpada pelos assédios ou demais violências sofridas, seja por conta de suas roupas, por suas atitudes, ou por estar em locais de diversão e lazer durante a madrugada. Também faz parte da ‘cultura do estupro’, normalizar comportamentos que diminuem a mulher em relação ao homem e incentivar o silêncio através da descredibilização da vítima. Um exemplo muito cotidiano citado pela socióloga é o dos comerciais de cerveja, onde as mulheres são retratadas como objeto de prazer sexual e “servitude” para os homens da propaganda, que apenas querem se divertir consumindo sua bebida, enquanto mulheres seminuas os servem. Ela afirma que essa é uma forma comum de naturalizar a mulher como um objeto, ou seja, sem vontade própria, com propósito único de agradar, principalmente sexual e domesticamente.
No infográfico abaixo, estão alguns exemplos cotidianos desse tipo de comportamento inserido na cultura do estupro:
Fonte: Elaboração da autora
Experiência própria
Marina Marques, de 27 anos, autora dessa reportagem, também foi vítima de assédio sexual por um motorista de aplicativo, que se encaixa bem na definição de ‘cultura do estupro’. Certa vez, ao chamar um carro pelo aplicativo Uber, o motorista designado foi um homem de meia-idade que se demonstrou extremamente interessado em minha vida romântica, fazendo diversas perguntas de cunho pessoal, disparando constantes elogios relativamente vulgares a minha aparência, com diversas “caras-e-bocas” que, a meu ver, pareciam maliciosas.
Ao dizer a ele que estava constrangida e pedir mais de uma vez para que parasse, o senhor de meia-idade riu, em deboche, e disse que isto era um charme e que eu deveria me sentir feliz com tantos elogios. Por medo, dei algumas risadas desconfortáveis na esperança de que ele não se irritasse comigo. Fico feliz em relatar que cheguei ao meu destino e, após um atendimento rápido e eficiente, a empresa me deu um suporte satisfatório e fez o desligamento do motorista.
Rua, ambiente de trabalho e transporte público são os locais preferidos para assédio às mulheres
A Pesquisa nacional “Visível e Invisível”, encomendada pela empresa Uber, realizada em conjunto pelo Datafolha e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, mostra que o tipo mais comum de assédio sofrido por mulheres brasileiras a partir dos dezesseis anos são comentários desrespeitosos na rua, em segundo lugar vem o mesmo problema, porém no ambiente de trabalho, seguido por assédio no transporte público e, por último festas e baladas.
O gráfico abaixo aponta a porcentagem dos assédios relatados em cada um destes ambientes.
Fonte: Elaboração da autora com base na pesquisa divulgada pelo Datafolha/Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Em resposta às diversas denúncias de assédio no aplicativo Uber, a empresa fez uma parceria com o Movimento MeToo – organização que atende e acolhe sobreviventes de abuso sexual. O serviço permite que usuários, motoristas e entregadores que viveram algum episódio de assédio ou violência de gênero, sejam direcionados ao canal da MeToo para atendimento psicológico, após reportar o ocorrido no aplicativo.
Lançado há pouco mais de um ano, o Movimento MeToo Brasil, ou “#MeTooBrasil”, se inspirou em uma campanha americana de mesmo nome, que expôs diversos abusos praticados em Hollywood e que levou o produtor Harvey Weinstein a condenação de 23 anos de prisão, em 2020, por estupro e agressão sexual. Só no primeiro ano, a plataforma recebeu mais de 150 relatos de violência sexual. Hoje, o movimento de alcance internacional conta com uma equipe completamente formada por voluntários e busca alcançar mulheres do mundo todo.
A Uber afirma que o atendimento é sigiloso e que não tem acesso a nenhuma informação após o encaminhamento para a Organização. Além disso, a empresa tem promovido diversas campanhas educativas de combate ao assédio, e apoiado outros projetos relacionados ao tema, como a campanha “Linha do Impedimento”, lançada este ano, que produziu uma série de vídeos e cartilhas educativas elaboradas em parceria com o Movimento MeToo, direcionadas a entregadores e motoristas, a fim de educá-los de forma didática e eficiente acerca do tratamento mais adequado, principalmente no que se refere a clientes mulheres. A empresa também afirma que busca sempre parear passageiras e motoristas do sexo feminino, mas isto ainda é um desafio, visto que segundo um balanço realizado pela própria Uber, as mulheres representavam apenas 6% do total de condutores.
Já no primeiro semestre de 2020, a 99Taxi foi capaz de reduzir as ocorrências de assédio no aplicativo em 23%, graças à inovadora solução encontrada com a utilização de Inteligência Artificial. De acordo com a companhia, o aplicativo faz o rastreio e cruzamento de relatos e comentários deixados no próprio App em busca de denúncias de passageiros e motoristas. O sistema é capaz de detectar os comentários deixados logo após o término da corrida, e identificar uma série de palavras, contextos e expressões que possam estar ligadas a casos de assédio moral e/ou sexual. Ainda de acordo com a 99, isto também permite priorizar melhor os casos. O sistema, porém, ainda está em fase de teste e por isso não consegue atender a todas as corridas.
No que se refere ao transporte público sobre trilhos como metrôs, diversos estados do Brasil aderiram ao sistema de vagões exclusivos para mulheres, além de aplicar treinamentos específicos voltados para um melhor acolhimento da vítima. No Distrito Federal, o metrô reserva para mulheres o primeiro carro de todas as linhas desde 2015, contudo, a partir de 2016, pessoas com deficiência também passaram a ser permitidas nesses vagões, independente do gênero. Entretanto, há diversas denúncias que indicam que a regra nem sempre é respeitada, visto que só no ano de 2019, a ouvidoria do Metrô-DF registrou mais de 5 mil denúncias de mau uso do sistema de exclusividade no vagão pelo sexo masculino.
Como fizemos isso:
Inicialmente, foram recolhidos dados das Secretarias de Segurança de diversos estados brasileiros, reportagens e casos famosos de assédio ou violência contra a mulher dentro do transporte e em outros locais públicos, na busca por um “padrão” comportamental. A partir dos dados obtidos, a psicóloga Ayla Viçosa foi consultada para explicar o que estes dados representam do ponto de vista sociológico, e porque homens não se intimidavam mesmo estando em lugares cheios, de grande visibilidade, e que nomenclatura poderíamos dar a este comportamento. Foi neste ponto em que a “cultura do estupro” passou a ser abordada e ganhar espaço na reportagem.
Após uma primeira análise dos aspectos culturais e sociais, os dados começaram a ser filtrados para violência e assédio apenas dentro do transporte (público e particular), onde foram consultadas diversas pesquisas realizadas em território nacional com brasileiras a partir dos 16 e dos 18 anos. Por fim, estes dados foram cruzados e comparados, foram selecionados os casos mais relevantes e/ou famosos que exemplificam o conteúdo da reportagem, assim como as pesquisas e índices mais completos reveladores. Por fim, foram realizadas entrevistas com vítimas de assédio e um relato da própria autora.
Por Marina Marques
Sob supervisão de Mônica Prado