À primeira vista, parece apenas um pequeno bazar de bairro. No Cruzeiro Novo, Distrito Federal, ao lado de uma loja de bicicletas, algumas araras de roupas e bolsas anunciam que ali há mais que comércio: há cuidado.
Da porta da loja, entre mais araras e estantes de calçados, vê-se uma mesa ao fundo, onde uma mulher sentada observa o movimento. Era sábado de manhã, e Lindalva Costa ficaria ali até a noite, pronta para atender quem chegasse: clientes, doações, pedidos de ajuda.
Foi nesse cenário, entre vestidos usados e calçados alinhados em prateleiras, que ela me recebeu para contar sua história. Logo na primeira pergunta, seus olhos se encheram de lágrimas. Era impossível não se emocionar: falar de sua trajetória era, inevitavelmente, tocar nas feridas e na força que moldaram a missão de sua vida.
Aos dez anos de idade, Lindalva Costa estava decidida a desaparecer do mundo. Sozinha, faminta e rejeitada, ela planejava pular na lagoa do Cajueiro, em Joaquim Pires, uma pequena cidade do interior do Piauí.
Era a conclusão natural de uma infância que parecia não ter espaço para sonhos: abandonada pelos pais, entregue de mão em mão, conheceu a fome, o abandono e a humilhação antes mesmo de aprender a soletrar seu próprio nome.
Ali, sem esperanças, o inesperado aconteceu: crianças surgiram e a puxaram pela mão. Ela seguiu o grupo até um conjunto de casas simples na beira do rio. Lá dentro, a miséria que encontrou era tão grande quanto a dela: famílias inteiras vivendo sem fogão, sem alimento, sem cama.
“Na última casa, quando saí pela porta, senti um choque no coração. Pensei: ‘Não posso morrer. Eu preciso fazer alguma coisa por essas pessoas'”, lembra, emocionada.
Daquele dia em diante, nascia a Missão de Amor — ainda sem nome, ainda sem estrutura, mas já pulsando no peito de uma menina que decidiu que ninguém deveria sofrer como ela sofreu.
De porta em porta
Com apenas 10 anos, Lindalva começou a bater de porta em porta no centro da cidade, pedindo doações de arroz, feijão, açúcar. Levava o que conseguia às famílias que conhecera. “Foi a primeira vez que senti alegria de verdade”, conta. “Deus me deu uma missão ali, naquele momento.”
Dormiu em praças, viveu em casas abandonadas, trabalhou como babá — “de um menino quase maior que eu” — e sobreviveu como podia. Aos 15 anos, conseguiu sair do Piauí e foi para Brasília, levando apenas a coragem e a vontade de reconstruir sua história.
Em Brasília, Lindalva oficializou o trabalho solidário. Começou como “Amigas pelo Bem” e, mais tarde, fundou a ONG Missão de Amor.
Hoje, o projeto atua no DF, Piauí, Maranhão e Minas Gerais. “Tenho equipes em cada lugar. Às vezes é a casa de um voluntário, às vezes da minha irmã”, explica. No Piauí, o quartel-general é um quarto da casa de sua irmã, a mesma que a cuidou e até batizou quando criança e a quem chama de mãe.
Anos depois, após terminar os estudos e se casar, Lindalva decidiu cursar psicologia. Segundo ela, a formação a ajudou a compreender melhor sua própria trajetória e a desenvolver uma nova perspectiva sobre a vida, permitindo que superasse ressentimentos e não guardasse mágoas de sua família.
O exemplo da mãe inspirou também sua filha, Letícia, que seguiu o mesmo caminho da Psicologia. “A Letícia me preenche muito”, diz Lindalva. Apesar disso, admite: “Eu tenho um vazio imenso. Sou uma pessoa eternamente carente de família.”
Mesmo com feridas abertas, Lindalva aprendeu que para florescer era preciso atravessar a chuva. E, de alguma forma, encontrou paz para sorrir novamente.
“Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”
A missão atende pessoas em situação de vulnerabilidade, como famílias carentes, enfermos, pessoas em situação de rua, mulheres vítimas de violência doméstica, crianças vítimas de abuso sexual e deficientes físicos. “Eu não deixo de atender crianças carentes. Porque um dia eu fui uma criança abandonada”, enfatiza. Com frequência, surgem novas demandas, como acolher imigrantes que chegam à capital sem nada.
Mas manter o trabalho em funcionamento não é simples. A ONG não possui nenhum tipo de patrocínio. Boa parte das ações depende do bazar e da ajuda dos próprios voluntários. “É muito trabalho. Muito mesmo. Às vezes, chegamos no final do dia e não conseguimos terminar tudo”, desabafa.
Apesar de cerca de 80 participantes cadastrados no DF, Lindalva considera que apenas 20 atuam de fato como voluntários. Ela reflete que, diante dos muitos compromissos do dia a dia, é comum ver pessoas chegarem animadas, fazendo grandes promessas, mas desistirem diante da quantidade de trabalho que a ONG demanda — algo que, segundo ela, exige paciência, tolerância e amor.
Na simplicidade de seu dia a dia, Lindalva compreende a marcha da vida: cada dificuldade vencida é um passo adiante em sua missão.
“Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz”
Mesmo com a dor que carrega da infância, Lindalva nunca virou as costas para a própria mãe. Atualmente, ela cuida da mãe idosa, diagnosticada com Alzheimer aos 90 anos, com dedicação e respeito, mesmo à distância. Desde que se mudou para Brasília, ela garante o envio de todo o suporte necessário para que a mãe, que vive no Maranhão, tenha uma vida digna e confortável.
As marcas do passado deixaram sequelas. Ela relata que desenvolveu uma doença emocional no intestino e que, até hoje, não consegue sonhar como as outras pessoas, tendo apenas momentos e sonhos que se interrompem no meio.
Mas, apesar das dores e da carência que admite carregar, Lindalva encontra força em sua missão. Entre doações, sorrisos tímidos e histórias de esperança, Lindalva segue sua caminhada, carregando no peito a certeza de que, apesar de todas as dores, cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz.
Por Fernanda Ghazali
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira