Primeiro, é quase um silêncio. Na mata nativa, o marmeleiro carregado do fruto amarelo, que espalha o aroma pela mata, compõe um cenário que nada se assemelha ao da metrópole, a capital Brasília, que está a 50 km de distância. Depois, o som dos galhos mexidos e da festa da colheita. O fruto vai se transformar na marmelada artesanal, doce que é tradição centenária para a comunidade quilombola Mesquita (em Cidade Ocidental – GO), que luta pela titulação de terra. São 785 famílias na área rural, com cerca de três mil pessoas. A iguaria transformou-se em símbolo de resistência e garantia de geração de renda. Além disso, promove consciência de defesa da natureza. O que parece silêncio tem o som de proteção.
Do marmeleiro na comunidade… Foto: Jão Braga/arquivo pessoal
Conhece bem esses sons, esses aromas e essa luta o produtor rural João Paulo Braga, de 45 anos. Ele vive integralmente da produção da marmelada. Ele aprendeu a plantar, colher, limpar, descascar, colocar no tacho e mexer até o ponto certo.
Ele também produz as caixinhas de madeira retangular, de 15 centímetros de comprimento e com 12 preguinhos fincados um a um. Esse é o som de finalização de um trabalho. Ele sabe que cada caixinha de marmelada carrega uma história de mais de um século.
… à bacia de João Paulo Braga. Foto: arquivo pessoal.
Com água, marmelo, açúcar e madeira de bambu, ele vende a marmelada nas caixinhas por R$ 20 cada uma. Por mês, comercializa 500 delas. Eis o gosto de que tudo deu certo.
Para João Paulo, a marmelada não é só fonte de renda. É o que o coloca mais perto do avô dele, Benedito Antônio Pereira, que morreu há 28 anos, e deixou como legado o marmelo e a cultura da marmelada para a comunidade. Foi ele, que chegou a ser escravizado, quem ensinou o neto a cultivar a planta e produzir o doce e, acima de tudo, levou o fruto para a região.
Até as caixinhas de marmelada, que geram renda para a comunidade. Foto: Milena Dias
“O marmelo está na minha vida desde criança e eu tive o privilégio de cultivar o marmelo com o meu avô Benedito. Eu acompanhei ele na colheita do marmelo, no preparo, na lida. O marmelo para o meu avô não era nem um trabalho em si, era uma representação cultural”.
O fruto da resistência
O fruto amarelo, com formato de pera e textura de pêssego é único. Ele não é vendido no mercado e carrega uma história de luta e resistência das pessoas negras escravizadas no Brasil, Distrito Federal e Entorno (cidades de outros estados nas cercanias do Distrito Federal). A comunidade vive a quinta geração de remanescentes quilombolas, com elementos centenários e costumes tradicionais
O marmelo foi trazido pelos portugueses há mais de 270 anos, na região de Luziânia (GO). O barulho do passado é dolorido. Na época, obrigados, os escravos tinham que cultivar o marmelo e fazer a marmelada para os seus senhores. Mesmo com o clima diferente do que estavam acostumados na África, as habilidades de cultivo fizeram com que eles conseguissem adaptar o fruto ao clima do local.
Depois de libertos da escravidão, ficaram ainda três ex-escravas vivendo na região e quiseram manter o cultivo da planta e, para além disso, tudo o que podiam fazer com o fruto: em natura, a polpa (para fazer caldos, sucos e o próprio doce). A marmelada tornou-se o principal produto. O aroma atravessa os séculos.
Na época, a região do quilombo Mesquita fazia parte de Luziânia (GO), mas um pouco mais afastada de onde foram plantadas as primeiras mudas. Benedito Antônio Pereira, bandeirante negro e avô de João Paulo, resolveu plantar um marmeleiro na terra onde hoje é a comunidade quilombola Mesquita.
O tempo se passou, e o marmelo se tornou a fonte de renda de Benedito Braga.
“Ele tinha o maior prazer de ir nas feiras, nos comércios e era muito bem recebido. Ele fez um ciclo de amizade por causa do marmelo”, explica o neto João Paulo Braga.
Mantendo o legado, o atual produtor ainda vai a feiras, eventos, quitandas, padarias e mercadinhos no Distrito Federal e em Goiás.
Receita feita em casa
A casa e o quintal de João Paulo são os espaços de fábrica das marmeladas. Lá, além da plantação de 200 marmeleiros que ficam carregados com até 60 marmelos cada um. O produtor tem uma mercearia onde produz as caixinhas e uma cozinha equipada com tachos, colheres grandes e fogão de lenha. Os materiais são apenas os essenciais, no espaço simples da casa dele.
João Paulo na marcenaria da casa dele, construindo as caixinhas para a marmelada. Foto: arquivo pessoal.
“Há mais de 200 anos, é a mesma receita. Não mudou a receita e então eu sigo à risca. Não mudo. Eu faço a caixinha na maior qualidade. Devido a esse trabalho contínuo, os próprios clientes divulgam meu trabalho”.
Todos os irmãos da família Braga ajudam na produção, mas têm a venda como uma segunda fonte de renda, que começa muito antes da colheita da fruta. Todo o processo, desde a plantação até a colheita, dura cerca de seis meses.
Em meados de junho, começam os primeiros serviços com a preparação e limpeza do solo e poda das árvores. Nesta etapa, além da família quilombola Braga, o jardineiro Divino Xavier da Silva, de 53 anos, também ajuda.
“Eu faço isso porque eu gosto, eu trabalho com jardim, então já é uma coisa que eu sei mais”.
Quando chega a época da poda, Divino Xavier separa a enxada, a tesoura e pá e trabalha intensamente para que os marmeleiros estejam prontos para começar a frutificar. O processo, que vai até agosto, envolve cortar os galhos e as folhas a fim de garantir espaço às flores nascerem.
Divino Xavier é responsável pela poda. Foto: Milena Dias.
Segundo Divino, o quilombo produz a melhor espécie de marmelo possível para fazer o doce. “Só nessa região aqui tem esse marmelo bom pra fazer doce. Outros lugares que têm, como Minas Gerais, e até no Paraguai (país que também realiza o cultivo) não dá um doce bom como esse”.
Soja invasora
De junho a dezembro, há o trabalho de adubação, podas pontuais, água e pulverização. Segundo João Paulo, a pulverização se tornou mais necessária por causa das plantações de soja vizinhas, realizadas por fazendeiros que conseguiram invadir área originalmente dos quilombolas. A vizinhança prejudica a produção do marmelo.
“Hoje o pior para a gente é a questão da soja. Na época que eles realizam a pulverização, surgem muito aquelas mosquinhas e acaba drenando os nutrientes das nossas árvores”.
Por causa disso, os produtores de marmelo acabam tendo que gastar mais recursos para contratar agrônomos e pulverizadores para defesa das plantas nativas.
No final de dezembro, as flores já começaram a dar lugar aos frutos. Em janeiro, todos já estão esperando pela colheita. Nessa hora, é comum haver mutirão na comunidade para a colheita com bacias. O silêncio da mata é rompido pelo caminhar das pessoas. Se passar do tempo de colher, a fruta apodrece no pé.
Assim chega a hora da limpeza. Neste momento, a irmã e professora Celenir Pereira Braga, de 54 anos, sempre está presente. Com um pano úmido, ela limpa a parte de fora da fruta, mantendo a tradição da família.
“É muito marmelo, então a gente tem que juntar a equipe pra poder limpar, antes de cozinhar. Nessa hora, surgem umas 15 pessoas ajudar”.
O momento faz Celenir relembrar do pai e do avô. “Aqui eles plantavam muito marmelo e faziam doce. Meu avô Benedido e meu pai. O pai da minha mãe também plantava muito. Então, já é bem de família”.
Celenir Pereira Braga. Foto: Milena Dias
Celebração
Celenir conta que a tradição principal é a da produção da marmelada. Mas a mãe dela, com ajuda dos filhos, ainda faz, também, outros produtos, com outros sons e cheiros, como pedaços de marmelo em calda, geleia e vinho da semente.
Marmelos na etapa de limpeza do fruto. Foto: arquivo pessoal
Os produtos são feitos também para a Festa do Marmelo, que acontece no quilombo Mesquita na segunda semana de janeiro de todo ano. É o momento em que todos os quilombolas comemoram a cultura desse fruto e levam, de alguma forma, a própria produção, seja em natura, como doce, calda, vinho e outros preparos.
É tradição que todas as pessoas da comunidade tenham pelo menos um pé de marmelo em casa, para consumo próprio. Todos são preparados para estarem perfeitos na época da festa, que já acontece há cerca de 200 anos. Nas primeiras vezes, os quilombolas se uniam em forma de mutirão para colher os frutos e comemorar a colheita com muita dança e comida nas casas da região.
Mas, no caso da família Braga, a produção vai muito além da festa. Todos os marmelos são cortados pela metade para tirar o caroço e são levados ao cozimento por cerca de uma hora. Depois a fruta é processada até que vire uma polpa.
Nesse momento, entra um método especial criado por João Paulo, que mantém o doce em condições de consumo por dois anos, sem a necessidade de conservantes artificiais.
“A gente processa o marmelo e transforma em polpa. A gente enlata e, depois, a gente leva para a fervura por meia hora. Na sequência, um choque térmico. Tudo isso faz com que ele dure por dois anos. É um conservante natural”, explica o produtor.
Marmelo no processo de cozimento na casa de João Paulo. Foto: arquivo pessoal.
Só então que é adicionada a calda de água e açúcar até dar o ponto do produto. Por fim, o doce é colocado nas caixinhas de madeira feitas com antecedência. Para cada caixinha de 15 centímetros, são cerca de 200 gramas de marmelo, adicionadas ao açúcar e à água.
João Paulo no último passo da produção da marmelada: o doce nas caixinhas. Foto: arquivo pessoal.
O irmão mais novo de João Paulo, Alex Braga, de 24 anos, geralmente ajuda nessa atividade de fincar os pregos nas caixas. Além disso, ele fica nos estandes das marmeladas nas festas e eventos da comunidade.
Na última festa de aniversário de 279 anos do quilombo, em maio, ele era o responsável pela mesa de vendas da marmelada.
Alex Braga no estande de vendas da marmelada, durante a festa de aniversário do quilombo Mesquita. Foto: Milena Dias.
Uma das clientes fiéis é Dilsa Raposo, que mora em Brasília, vai em quase todos os eventos da comunidade. “Em todas as festas, eles servem de sobremesa. E ainda nos eventos, bem quentinho porque eles acabam de fazer”. No aniversário, não foi diferente. Depois do almoço, veio a hora mais esperada: a hora da marmelada.
Dilsa costuma visitar a comunidade em busca de comprar a marmelada. Foto: Milena Dias
Memórias e lutas
É costume entre os moradores da comunidade terem um marmeleiro na porta de casa. A líder da comunidade, Sandra Braga, explica que guarda o significado da resistência de um povo ameaçado por vizinhos interessados em uma área nativa e privilegiada.
“Eu falo do doce do marmelo e eu lembro do meu avô Benedito fazendo no tacho. É uma memória também afetiva. Eu me lembro de quando eu tinha oito anos de idade colhendo o marmelo no quintal da minha avó. O cheiro, gosto que me remetem o carinho, o cuidado, a ancestralidade”.
A liderança da comunidade, que é irmã de João Paulo, vê o doce sendo servido como sobremesa em todos os eventos da comunidade. “Eu fico olhando as pessoas daqui e até os visitantes com aquele prazer de comer aquele doce.
Líder da comunidade, Sandra Braga diz que marmelada é símbolo de resistência. Foto: Milena Dias.
Ela explica que, além da memória familiar, o produto expressa a longevidade e força da comunidade. O pé de marmelo em cada quintal tem significado também de pertencimento.
“Se você perguntar hoje desde os mais velhos até as crianças, qualquer um vai saber o que é o marmelo e o que é essa cultura porque ela é muito ancestral, de toda uma geração familiar histórica”, diz Sandra Braga.
Tradição
A líder da comunidade se preocupa em como manter a tradição para as próximas gerações, mesmo que elas conheçam o fruto. “A gente tem que trabalhar o fortalecimento das futuras gerações. Desde a poda, desde o cuidado, até feitura do doce”.
Por isso, ela organiza um projeto de reconstrução de viveiros aptos para plantar marmeleiros, que depois serão doados às famílias.
João Paulo relembra que já houve um tempo em que mais famílias viviam da produção e venda do marmelo e dos produtos feitos a partir dele.
Mas, para ele, é uma missão que a cultura da marmelada, e ainda como fonte de renda, continue nas próximas gerações.
“Aqui tudo antes era marmelo”
Quem é mais velho olha para a localidade com nostalgia. “Aqui tudo antes era marmelo”, diz “Seu” Benedito, de 73 anos. Ele recorda que houve um tempo em que o principal trabalho de todos.
Benedito, de 73 anos, (de boné) tem saudade dos tempos que os mais jovens não iam embora
Mudanças climáticas e titulação
Além da preocupação da divulgação da cultura do fruto, há um temor sobre a produção do marmelo estará daqui para frente diante de dois fatos complicadores no horizonte: as mudanças climáticas e também a demora na titulação da terra.
O primeiro registro de um grupo de moradores ocorreu em 1746. O reconhecimento como território quilombola, no entanto, chegou somente no ano de 2006, quando a Fundação Cultural Palmares concluiu os estudos antropológicos para delimitar a região.
Hoje, além das três mil pessoas que tentam manter as tradições deixadas pelos ancestrais na área rural, outras 435 famílias de origem quilombola do Mesquita vivem nas cidades do Entorno do DF.
Sandra Braga alerta que, apesar do reconhecimento da terra ter sido realizado há 19 anos, ainda não há titulação do território do quilombo, o que possibilita que fazendeiros da soja se apropriem de terras que são da comunidade. Ela tem esperança que isso ocorra ainda no ano de 2025.
“A não titulação traz vários problemas e a gente precisa lutar por isso. A gente não tem água mais como antes. O agrotóxico da soja só nos mata. E a gente tem essa consciência de que precisa mudar essa realidade aqui. São fazendas que estão dentro do quilombo, que estão nos matando. Titular resolveria esse problema porque eles seriam indenizados pelo que é de nosso de direito”.
Os produtores rurais do marmelo e das outras culturas estão assustados com as variações climáticas, como temporais esparsos e longos períodos de estiagem. A comunidade testemunha que, antes, o marmelo rendia mais do que hoje em dia. Até o fruto era maior. O êxodo da comunidade dos mais jovens tem relação com essa transformação do clima.
João Paulo Braga viu as mudanças na prática do dia a dia. Ele explica que o marmelo pede um tempo mais frio e com chuva, que era característica certa da região.
No entanto, nas últimas duas décadas principalmente, apesar do frescor da região em relação à cidade (pela preservação da mata nativa), o ar está mais seco e as chuvas mais amenas.
Essa mudança, segundo João Paulo, fez o marmelo reduzir de tamanho.
“O marmelo está muito diferente. Antes tinha marmelo de até 400 gramas, parecia uma manga. Hoje ele diminui pra o tamanho da maçã”.
Pesquisa
A agrônoma Danuza Lisboa, de 34 anos, nasceu no quilombo Mesquita e mora lá até hoje. A cultura de preservação na natureza que aprendeu com os vizinhos desde pequena a inspirou para pesquisar. Além disso, ela resolveu seguir a profissão para poder ajudar a comunidade, que é “razão” de sua vida.
Foi difícil acordar por quatro anos seguidos de madrugada para ir até a Universidade de Brasília e fazer o curso. Depois, mais dois anos de mestrado. Agora ela está desenvolvendo uma tese de doutorado justamente sobre a cadeia produtiva do marmelo na região. Na graduação de agronomia, ela estudou a agricultura na comunidade quilombola. No mestrado, a tangerina.
Agora no doutorado, quer descobrir como ampliar a produção do marmelo, que é patrimônio da comunidade. Na pesquisa, está atenta a entender a fertilidade do solo, e os padrões de quantidade e qualidade da árvore e do fruto.
Além disso, é intenção na pesquisa descobrir como as mudanças climáticas podem afetar a produção da fruta.
Danuza Lisboa resolveu fazer agronomia para ajudar a própria comunidade. Foto: Milena Dias
Ela conta que, na região, existem atualmente famílias com mais produção de marmelada, mas todas têm marmeleiros em casa. Além da própria venda, existe o turismo rural, em que visitantes podem ir até a comunidade para visitar a produção e comprar a marmelada.
Danuza diz que é emocionante testemunhar o orgulho dos produtores durante todo o processo.
“Tem um valor sentimental para a nossa cultura. Os produtores têm muito orgulho. Você vê a alegria deles estampada no rosto. É um carinho que fica parecendo que eles estão criando filhos. Eles têm orgulho de dizer que são produtores de marmelo”.
Ela afirma que o sentimento e cultura do marmelo são repassados para todas as novas gerações da comunidade. “Todo mundo aqui é família. É tio, é primo, é irmão e cunhado, todo mundo parente”.
Mulheres na linha de frente
Titular da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), José Maximino Silva explica que nos processos de disputa territorial e também na produção rural, as mulheres são as principais agentes no enfrentamento e na luta pelos direitos no campo. Na comunidade quilombola Mesquita, elas atuam em diferentes fases da cadeia do marmelo também.
“Elas são cuidadoras do lar e da família, mas principalmente do espaço que elas ocupam no seu território. Isso não quer dizer que alguns homens também não façam parte dessa luta. Já que o movimento é misto, a luta também é mista”, diz o coordenador.
Ele salienta que, na maioria das disputas, quem está nessa linha de frente são as mulheres matriarcas, ancestrais e que defendem a todo custo a regularização de seu território. Silva acrescenta ainda que, por causa do machismo estrutural e das violências de gênero, o fato de as mulheres estarem à frente nesta batalha é um agravante na crueldade na luta pelas terras.
“Quando a tratativa é com a mulher, parece que há a indução da violência e a nocividade é maior pra tentar descaracterizar a luta. É uma forma mais agressiva, mais doentia de agir, com tanta brutalidade”.
Segundo o especialista, vale destacar o papel desse povo quilombola na preservação da natureza, para além da cultura do marmelo.
“Assim como os povos originários, a população quilombola é guardiã da vida. Ela também protege, cuida e gesta com muito carinho esse ambiente. São verdadeiros guardiões da fauna e da flora. Nesse caminho de proteção, as mulheres estão na linha de frente”, explica Maximino.
Marca para a vida
O aposentado Sinval Pereira, de 70 anos, primo da pesquisadora Danuza, é outro produtor de marmelo e marmelada que tem a produção como fonte secundária de renda, em complemento ao salário da aposentadoria.
Sinval na colheita do marmelo. Foto: arquivo pessoal
Ele mantém um legado dos seus ancestrais. “Meus pais faleceram e deixaram pra mim e eu fui conservando até hoje. Quando meu pai faleceu, acabou tudo. Aí eu comecei de novo com uns cinco pés de marmelo e hoje eu estou com quase 200 pés de marmelo lá em casa”.
Os bisavós e avós dele também viviam naquela região, mas ainda não havia a cultura do marmelo na família.
Sinval Pereira Braga. Foto: Milena Dias
Sinval, diferente de João Paulo, vende as marmeladas em épocas mais pontuais depois da colheita e sob encomenda quando tem polpa disponível. Ele faz a poda, planta, cuida e colhe. Na época da colheita, em janeiro, cerca de 10 pessoas o ajudam a retirar todas as frutas em um trabalho de dois dias.
Sinval na fase de cozimento do doce. Foto: arquivo pessoal
Nesse período, ele já tem uma lista de encomendas dos clientes fieis que compram sua marmelada. “Quando dá janeiro, já começam a vir algumas encomendas e eu já vou fazendo a polpa. Não adianta fazer muitas de uma vez. Eu prefiro fazer umas 10, 20 caixinhas e as outras por encomenda”.
Por não vender durante todo o ano, Sinval congela a polpa para que consiga fazer a marmelada para além do tempo da colheita. Com a polpa, ele faz o doce, geleias e licor.
Polpas prontas para congelar. Foto: arquivo pessoal
Sinval diz que não vai deixar nunca que a produção de marmelo acabe. Quando um pé morre, ele logo planta mais dois no lugar.
“Enquanto eu estiver vivo, isso aqui vai existir. Eu não vou deixar acabar e não tem lugar melhor que aqui para viver”.
Produtos
Além do marmelo, há quem produza outros materiais com o que a natureza quilombola oferece. A reboque da marmelada, que é o principal chamariz, outros produtos povoam as barracas. O artesão Carlos Roberto, de 56 anos, produz brincos, colares, pulseiras e outros acessórios com sementes, folhas, cascos e flores da região.
Ele explica que, quando verifica algum elemento da natureza que está prestes a cair ou no tempo de ser colhido, ele pega e leva para casa, para só depois pensar no que pode fazer com ele.
“O que mais demora é o pensamento. Quando eu coloco na mesa, eu ainda não sei o que eu vou fazer. Aí eu vou olhando e pensado no que eu vou fazer. Eu passo o dia todinho fazendo vários colares, brincos e essas coisas todas”.
Carlos Roberto durante venda dos acessórios que faz. Foto: Milena Dias
O processo envolve deixar o material secar na sombra, desidratar, envernizar e, se for o caso, tingir. Depois disso ele trabalha nos arames e miçangas necessárias para cada acessório.
Carlos Roberto diz que cada um deles é único e especial. “Ninguém vai ter uma coisa repetida. Não faço medida, peso, tamanho. Tudo é feito de uma forma especial e exclusiva”.
Além dos materiais da natureza, ele usa produtos recicláveis (como rolha de vinho e caixa de ovos) para fazer outros acessórios e as famosas bonecas negras de orixá.
“Eu reciclo a grade ovos, pra derreter ela e fazer uma massa para fazer um formato. Eu coloco um produto pra sair o cheirinho, bato no liquidificador, espremo, coloco numa outra água, bato de novo, coo e adiciono cola pra fazer a massa. Deixo secar, pinto e costuro as roupas. Depois eu penso na hora o que vou fazer e decoro na hora”.
Produtos feitos por Carlos Roberto. Foto: Milena Dias.
Carlos Roberto trabalha com esse tipo de artesanato há 20 anos e usa como fonte de renda complementar para o salário mínimo que recebe que, segundo ele, não é suficiente para o sustento.
Além dele, Antônio Ferreira, de 67 anos, produz queijos e açafrão na região e vende para complementar a renda do salário mínimo de aposentado, que considera insuficiente. Ele nasceu no quilombo Mesquita e mora lá até hoje.
“Eu faço tudo sozinho, de forma artesanal e vendo por aqui no quilombo mesmo”.
Ele diz que a produção, além de uma segunda fonte de renda, é uma forma de ocupar a mente.
Antônio Ferreira durante a venda de queijos no quilombo. Foto: Milena Dias
Cultura
Em 25 de maio de 2025, a festa de aniversário do quilombo Mesquita comemorava não só os quase três séculos da comunidade.
Todos com um sorriso no rosto e espírito de família comemoravam o resultado de muita luta e de resistência que enfrentam todos os dias. Comemoravam a comunidade sustentada pela parceria e pelo amor de um pelos outros, desde o mais novo até o mais velho.
Eles celebravam porque, apesar da luta constante pelas suas terras, a preservação ambiental já nasce com cada um ali. A música e a dança faziam lembrar as origens de um povo negro que mantém a cultura e a tradição.
Na festa de 279 anos do quilombo, as crianças e as próximas gerações celebradas como centrais para a preservação da memória da comunidade, como na manifestação vista abaixo.
No aniversário, o bolo para cantar os parabéns era amarelo como o fruto que move aquelas pessoas. Mas o pedaço amarelo que todos ali mais esperavam não era do bolo. Era da marmelada servida depois do almoço, em que todos da festa tinham certeza que estaria presente.
Foto: Milena Dias
Os potinhos da sobremesa acabaram rápido. Mas algumas horas depois, João Paulo chegou com com mais doce. As caixas de marmelada são recheadas de história, de carinho, cultura, tradição e luta. Aroma, sabor e sons que os moradores dessa comunidade aprendem em busca da sobrevivência e em meio ao cerrado que precisam proteger.
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