Independência para quem? A colônia despedaçada está presente no 7 de setembro (Parte 2)

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA

Barra do Garças, 560Km a oeste de Brasília. Próximo a fronteira de Goiás, o destino de Amarílio Carvalho se iniciou em mais uma romaria de propósitos pessoais. Vestido com uma túnica de bandeiras do Brasil, a sua caracterização fugia do padrão com a presença de uma pochete preta presa à cintura e uma mochila nas costas. 

Leia a parte 1 da reportagem sobre o desfile da independência aqui

Os tênis brancos, que ainda iam ser tingidos com a poeira vermelha da capital, seguiam em passos firmes. Chamando a atenção por onde passava, o senhor carrega, sem receio, um estandarte em apoio ao presidente da república.

Foto: Otávio Mota

“Eu já tenho 90 anos e quatro meses. A minha profissão é trabalhar de jardineiro lá nas águas quentes onde eu moro. Eu moro em Mato Grosso e lá eu sou jardineiro voluntário há muitos anos. Me aposentei no Rio de Janeiro e escolhi Barra do Garças para morar”, contou Amarílio.

“Caminhando … E seguindo a canção”

Em uma caminhada sem pressa, como quem sabe aonde quer chegar, ele se desloca quase flutuando. Seguindo a famosa canção, seus relatos de vida são a paráfrase de que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Rumo à Esplanada dos Ministérios, Amarílio tem o intuito de celebrar a independência do Brasil.

Uma inspiração em particular lhe serve de guia, suas palavras são regidas pela história brasileira: Tiradentes, morto na Inconfidência Mineira. Todo ano nessa data, ele vem caracterizado.

“Tiradentes sofreu muito, os brasileiros… os africanos… os escravos… Vieram para construir o Brasil e como ‘agradecimento’ receberam chibatas, mordaças e grilhões. É coisa de louco. Fazendeiros cruéis que só queriam lucrar, lucrar, e lucrar”, complementa.

Amarílio entende que o dia da independência do Brasil significa lutar contra a exploração europeia na América Latina e a busca incessante por lucro. Significa, em última instância, ser antirracista.

“A independência do Brasil foi um fator importantíssimo para dizer um não para os portugueses que só queriam sugar milhares de quilos de ouro para construir o Palácio de Queluz… ouro, ouro, ouro, ouro. E o Brasil na miséria”, finalizou.

Um véu sobre a santíssima

Sentada num mundo que pertencia somente a ela. Sentada nos únicos pertences que sobraram do mundo dela. Seu nome é Maria e ponto. Mais do que isso, ninguém precisa saber. Uma mulher cheia de histórias que escolhe a quietude e responde apenas o que lhe perguntam.

Numa aparente timidez, Maria se resigna com cuidado, mas no primeiro sinal de afeto, ela devolve ao céus uma risada ímpar. A mineira, que chegou aos 66 anos sozinha e acha graça da sua idade, estava ali para viver o momento. “Só vim assistir a parada, venho todo ano”, explica.

Foto: Juliana Weizel

Sua opinião sobre o desfile é taxativa, segundo Maria, “foi mais ou menos”. Como uma especialista consagrada pela presença anual, ela afirmou que teve menos coisa em 2023, mas que estava bom. “Eu venho porque eu gosto de assistir a tudo”, afirma.

O ponto vermelho e azul iluminado na calçada sabia de suas prioridades, enquanto todos iam embora em uma espécie de rebanho pelo pastoreiro, ela continuou calcada como uma obra da Tarsila do Amaral. Dividindo sua atenção entre nós e os bilhetes de loteria. Logo percebemos que era uma batalha árdua, os papéis capturavam facilmente o seu olhar.

A senhora está vendo se consegue tirar um número da fé?

Vamos ver – disse ela em meio ao sorriso de rabiscar o 16.

Foto: Juliana Weizel

Esse pedacinho frágil, que pode rasgar a qualquer instante, saiu de seu saco plástico, onde se encontravam outros. Ela segurava com a ternura que a vida não lhe deu, ela entende daquela fragilidade. Cada passada de caneta era uma tentativa de conquistar um sonho distante. Era a esperança.

Agradecendo pela conversa, nós saímos e ela retornou para o seu mundo. A questão que martela é se a loteria seria um caminho para a independência. Talvez… mas parecia uma espécie de passatempo da sorte. 

Maria é a independência brasileira, está presente e nem por isso menos despedaçada, mas resiste.

A primeira vez das famílias

Próxima às grades, sentados na sombra ao pé da árvore e vestidos com a camisa da Seleção Brasileira de futebol, uma família está atenta a tudo o que se passa no desfile. 

Manuel, a esposa, os dois filhos pequenos e o sobrinho vieram de Águas Lindas de Goiás (GO) só para ver o desfile. Sendo a primeira vez que os filhos presenciaram o desfile, ele atestou que todos estavam de verde e amarelo pela celebração da independência do Brasil.

A família decidiu vir de última hora e por isso não sabiam da programação. “A princípio é um dia de lazer, mas também aprendem o significado das coisas. Acho que a maioria pelo visto não sabe [a programação] e fica na expectativa de conseguir ver o desfile”, explicou.

Foto: Juliana Weizel

Apenas 100 metros à frente, estavam Eliandra e Jônatas com seus filhos. Ela é enfermeira e ele é comprador de material de construção. Com um dos meninos no carrinho, a única filha seguindo tanto o pai e mãe, conforme eles mostravam algo novo. E o outro menino na garupa do pai com visão privilegiada para os tanques que passavam.

A enfermeira se disponibilizou a conversar, enquanto o marido corria entusiasmado com os filhos para arrumar o melhor espaço na grande. “Gostei muito do assunto que vocês querem tratar, mas essa parte está boa, já volto, peraí!”, avisou o pai.

Eliandra tinha uma única mensagem para passar. “Como eu vim pela primeira vez no desfile, é muito importante, porém, eu esperava um pouco mais por ser a independência, a história. Até para passar para os meus filhos”, disse.

Quando ocorreu uma pausa no desfile entre um eixo temático e outro, o Jônatas veio falar com um pouco mais de tranquilidade o que estava achando do evento. O filho sentado em seus ombros não se importou com a interrupção e ficou até o final ouvindo o que o pai tinha a dizer.

“Fica essa polarização que eu acho ridícula, ela ridicularizou o sentimento de patriotismo. Patriotismo é a sensação de pertencer ao Brasil e é esse sentimento que tem que ser plantado hoje. Esquece um pouco da questão política, que é para você se envolver com a pátria”, afirmou primeiramente.

“Se o Lula fez coisa errada, que pague. Se o Bolsonaro fez coisa errada, que pague. E se alguém depredou patrimônio público, que pague. A questão de sequestrar as cores da bandeira falando que é Bolsonaro não tem nada a ver. Ele não representa o verde e o amarelo, o Brasil representa”, disse por fim.

Papas na língua pra quê?

Maria de Fátima é professora de biologia aposentada pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Empurrando uma mala de rodinhas em uma mão e na outra uma bolsa de colo. Ela estava ali, animada e preparada para prestigiar o desfile da independência sob a alça do recente governo Lula.  

Dentro da mala estavam camisetas idealizadas pelo artista plástico Kleber Marques. Maria fez questão de exaltar esse profissional, porque, segundo ela, é importante ressignificar os símbolos da esperança, e o verde e amarelo. 

Quando perguntada sobre sua participação no evento deste ano e nos anteriores, falou de forma enfática: “No governo Bolsonaro eu não vinha aqui, não. Eu não dou crédito para uma desgraça dessa, não. Esse cara infeliz arrebentou com o país. Deixou o país endividado e ainda tem gente para defender esse ordinário”. 

De forma irônica, mas não combinada, passava atrás da entrevistada um apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro. Solitário, mas confiante, ele exaltava a bandeira eleitoral usada pelo ex-presidente na campanha de 2022. Seus gritos pareciam não ter efeito, o restante da população presente deu de ombros para aquele ato.

Foto: Juliana Weizel

Duas Venezuelas no Desfile da Independência

De um lado temos Blanco e do outro Daniel*. Ambos venezuelanos. Mas as semelhanças acabam aqui. São duas histórias distintas, com sentimentos diferentes em relação à pátria mãe. E no dia de comemoração da pátria brasileira? Era vivência contra sobrevivência.

O primeiro que encontramos foi o Daniel. Ele estava sem autorização na zona comercial destinada pela Administração Regional. Seu sotaque era uma marca da sua distinção. Em uma bicicleta adaptada para carregar caixas de isopor, ele vendia bebidas e picolés. Gritando o máximo que podia para chamar atenção de quem passava, o cansaço dele chamava mais atenção.

Crédito: Otávio Mota

Com quase meio século de idade, seu rosto estampava uma vida dura que lhe custou uns anos a mais. Sem querer perder tempo, as respostas foram sucintas. Mas uma despertou sentimentos, fez ele olhar com uma certa dor e desprezo por nós. Depois de dizer que estava há 2 anos e 9 meses no Brasil. Queríamos saber o porquê dele ter saído da Venezuela.

“Isso não dá nem para perguntar. Se você está bem em casa, você vai para o vizinho passar barbaridade, dormir na rua? Se tu sai da sua casa é por algum motivo. A família toda está aqui, porque eu era militar na Venezuela e precisei ir embora. O 7 de setembro é só mais um dia de trabalho.”, exaltou-se. 

Viajantes latinos

Blanco, por sua vez, se declara viajante e diz que sua passagem por Brasília é temporária. Com a intenção de ficar só mais dois meses para resolver algumas burocracias de passaporte, ele pretende seguir caminho rumo ao México.

Foto: Juliana Weizel

Com sua mulher e cachorrinha adotada na Argentina, eles desbravam a América Latina de bicicleta. Para Blanco, sair da Venezuela não se deu pelo motivo que a mídia e os brasileiros pensam. Ele apenas gosta de viver intensamente novas experiências. Mas isso não o impediu de tecer críticas à narrativa ocidental em torno de seu país.

Em defesa da terra natal, Blanco disse que estava aproveitando o feriado para conhecer mais do Brasil e da história. Ele fica feliz com o apoio e amizade demonstrados pelo presidente Lula ao Maduro. 

“Sempre fui bem recebido pelos brasileiros. O Brasil não tem noção da própria grandeza, mas vocês são a liderança. Devem puxar os outros e crescer na América Latina, no mundo”, expôs Blanco.

Leia mais sobre o Desfile de 7 de Setembro

*Nome foi alterado para preservação da condição do entrevistado

Por Juliana Weizel e Otávio Mota

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress