Mesmo com a ideia de que a sociedade está mais aberta, especialista ainda vê rótulos para costumes “femininos” e “masculinos”
Saia e blusa já caem bem no corpo. Olhar atento no espelho para não borrar o batom. De unhas pintadas de preto, levanta a cabeça e anda pelas ruas na expectativa dos próximos olhos preconceituosos. Para Fernando Bussacos, de 19 anos, sobra convicção, mas há dor cotidiana. “Já me falaram que não poderia usar isso porque é coisa de menina’, quem disse que eu não posso usar isso? E por que tem que ser coisa de menina? Não pode só encaixar comigo?”, questiona. Ele faz parte da nova geração de pessoas que não se conformam com os padrões de gênero e com a normatividade social. Quando o estudante usa batom, pinta as unhas e usa roupas “femininas” ele acredita que está apenas se expressando.

Existem diversas formas de manifestar socialmente o gênero, segundo a psicóloga Alessandra Rosendo. Para ela, A expressão de gênero está ligada a forma em que a pessoa exibe o gênero com o qual se identifica para a comunidade, seja através das vestimentas utilizadas, ou mesmo pelos trejeitos e timbre de voz”.
A microempresária Laianna Santiago, 24, considera gênero como “uma performance”. Já para a fotógrafa Rafaela Figueredo, 33, esse é “um conceito ultrapassado, que agrupa humanos por questões biológicas e culturais”. Ambas relatam que não se sentem representadas no padrão tipicamente feminino.
“Ainda quando criança, minha cabeça esquentava tentando entender o porquê de brincar de casinha. Desde quando brincar de realizar tarefas domésticas é divertido? Eu queria ir para rua e brincar com carrinhos”, afirma Rafaela. “Não me identifico com o ideal de ‘donzela frágil e delicada’. Gosto de me sentir forte e de transmitir essa mensagem”, acredita Laianna. Além de querer se afastar da ideia de “frágil e delicada”, a microempresária conta que possui uma disfunção hormonal que a deixa com traços tidos como masculinos. “Muitas pessoas já riram da minha aparência, fizeram piadas porque não sabiam se eu era homem ou mulher”, complementa.
Apesar de parecer que a sociedade está mais aberta a novas ideias, Alessandra explica que os costumes sociais “femininos” e “masculinos” podem ser vistos até hoje. “Observamos a associação feita entre o masculino com os domínios da esfera pública e do trabalho e o feminino com o domínio da esfera privada e com os cuidados com o lar e com a família”.
A especialista acredita que é importante diferenciar sexualidade (que tem relação com os desejos de alguém) do sexo biológico. Ela frisa que gênero, sexo e sexualidade não são conceitos diretamente interligados, usando o seguinte exemplo: “Maria identifica-se como do gênero feminino, pertencente desde seu nascimento ao sexo feminino, expressa socialmente seu gênero como o de uma mulher, porém sente atração sexual/romântica por indivíduos do mesmo sexo que o dela”.
Alessandra Rosendo afirma que uma pessoa pode ser classificada como cisgênero ou transgênero. “Um indivíduo que se identifica como pertencente ao gênero ligado ao sexo de seu nascimento”, de acordo com a psicóloga, seria encaixado com cisgênero. “Uma pessoa que se identifica como pertencente ao gênero ligado ao sexo oposto àquele no qual nasceu”, seria o caso de alguém transgênero.
Nenhum dos dois
Além dos padrões binários (feminino e masculino) de gênero, há pessoas que não se identificam com nenhum dos dois, como a iluminadora de teatro e estudante Ana Luisa Quintas, 25 anos. “Gênero é aquilo com o qual a pessoa se identifica, como ela se apresenta, e eu acabei me descobrindo genderfluid (gênero fluido, em tradução literal), ou gênero zero, ou não binária”.
Ela conta que uma parte do processo de se descobrir genderfluid foram idas à lojas de roupas. “Nada na sessão ‘de mulheres’ me agradava. Comecei a ficar com muita raiva, até de mim mesma. Então eu vi que tinha algo de errado, e não era eu, eram as lojas e essa definição binária de gênero”, relata.
“Esquisita da família”
“Minha mãe ficou semanas sem falar comigo depois que eu raspei o cabelo”, afirma Laianna, cuja mãe contou para o resto da família que Laianna havia raspado o cabelo em apoio a uma garota com câncer. Apesar de a microempresária ter doado o cabelo, essa não foi a sua motivação. “Mesmo quando eu pratico um ato de resistência tudo é atribuído à abnegação, à bondade e outras qualidades de uma moça bela, recatada e do lar”.
Além da mãe, outros familiares de Laianna têm postura conservadora. “Sou sempre vista como a esquisita da família. Muitos familiares criticam minhas escolhas, meu visual principalmente.” O preconceito não está só em casa. Quando cursava enfermagem, Laianna sofria também com o corpo docente. “Muitas professoras não me levavam a sério, encaravam minha postura como grosseira e desleixada”.
Apesar do preconceito sofrido, ela afirma que está contente com si mesma. “Estou feliz com a minha aparência, com a disfunção hormonal que me deixa andrógina e com as roupas que eu uso”.
O estudante de psicologia Fernando Bussacos conta que a aceitação em casa veio depois de um pouco de tempo e resistência. “Acho que o maior passo foi quando eu cheguei em casa com as unhas pintadas de preto e de batom. Minha mãe ficou assustada, me mandou tirar tudo. Eu disse que não ia tirar”, compartilha.
A estudante Ana Luisa conta que nunca explicou para a mãe que é genderfluid. “Simplesmente vou vivendo e sendo, ela vai entendendo ou não”. Ela afirma que no começo não havia muito acolhimento pela parte da mãe, mas que hoje em dia a relação delas é boa. “Minha mãe sabe as roupas que eu uso, que eu não depilo, que eu não uso sutiã. Ela não reclama mais de nada e me ama”.
Já a fotógrafa Rafaela, que trabalhou por 11 anos como desenvolvedora de softwares – uma área predominantemente masculina-, afirma que aprendeu a ignorar certas cobranças da família. “Não posso dizer que não há estranhamento em relação a determinadas decisões minhas, como exibir meu cabelo grisalho, não querer ter filhos e não casar na igreja”. Apesar disso, Rafaela conta que o relacionamento com os familiares é tranquilo.
Assim como Laianna, os relatos de desrespeito a Rafaela não se limitam somente à família. “O mais feroz ataque até hoje foi um ex-colega de trabalho que berrou aos ventos que eu era apenas uma feminista mal comida”. Ela conta que esse ataque teve relação com o seu gênero e sua não conformação com o tradicionalmente feminino. “Sei que o machismo vê mulheres que se rebelam ao padrão do feminino como seres a serem educados”.
Por Isabella Cavalcante