Um dos sinais de preconceitos está dentro da sala de aula, onde são vítimas também de agressões e bullying, o que acarreta evasão escolar
A entrada no mercado de trabalho pode ser difícil para a maioria dos jovens, mas essa dificuldade é ainda mais notável na parcela da população que se identifica como transgênero. Mas o que diferenciaria essas pessoas das demais quanto à empregabilidade? Daniella Barros, 25 anos, conta que mesmo com ensino médio completo e experiência de quatro anos na área de telemarketing, foi rejeitada em todas as entrevistas de emprego desde que completou a transição.
“Depois que eu transicionei, não dava mais para esconder o cabelo e os seios e vestir roupas masculinas, fingindo que era menino. Foi aí que me vi totalmente fora de tudo no mercado. Em toda empresa que eu ia deixar currículo com meu nome de registro, me chamavam para a entrevista. Quando eu chegava lá com aparência feminina eles tomavam um susto e depois entravam em contato dizendo que eu não fazia parte do perfil que eles procuravam”, aponta a jovem. Ela acrescenta que mesmo a experiência e escolaridade não garantem que uma pessoa transgênero consiga uma vaga, já que o preconceito é grande.
“As pessoas preferem não ter contato nenhum com a gente”, relatou Vanessa Nunes, 23. A jovem conta que sofreu em boa parte do começo da vida adulta com o conflito interno de gênero. Em tratamento hormonal desde os 19 anos, a jovem precisou mudar de cidade para conseguir lidar com o processo de transição “Se eu continuasse no Ceará, eu não poderia, porque eu vivi minha vida toda por lá e as pessoas não me respeitavam, sabe? Eu falava: ‘Meu nome é Vanessa’, e as pessoas continuavam a me chamar pelo nome de registro. ‘Eu sou mulher’ e as pessoas continuavam me tratando no masculino. E além daquilo tudo que não estava me fazendo bem: risada, o pessoal falando mal pelas costas. Você tenta ser superior a isso, mas não consegue”, conta. A jovem só conseguiu se aceitar como trans após um período de depressão.
Abaixo, Vanessa revela sobre o momento em que se aceitou como trans:
E o preconceito também pode atrapalhar os estudos, dificultando ainda mais as chances de um bom emprego. Daniella conta que também sofreu na escola, algo que afetou inclusive o começo da transição.
“Eu me aceitei aos 16 anos, mas optei por não transicionar no período escolar por conta do preconceito”, revela. Além de precisar adiar a hormonização, ela ainda ressalta que quase abandonou os estudos por conta do bullying. “As pessoas ao redor não entendiam o porquê de eu me vestir tão afeminada. Isso as incomodava e aí eu era motivo de piada. Isso quase me fez desistir de estudar no segundo ano do ensino médio”.
Depois do colegial, uma nova barreira surge com a preparação para a faculdade. Vanessa conta que o processo para começar a formação em um curso superior é ainda mais desestimulante para pessoas trans.
No trecho abaixo, Vanessa comenta sobre o nome social e uso do banheiro no ENEM.
Desemprego
De acordo com os últimos dados sobre emprego no país (IBGE/Junho 2016), cerca de 11.586.000 estão brasileiros desempregados. Entre pessoas trans, a taxa de desemprego é ainda maior: apenas 10% tem carteira assinada em um emprego formal, segundo a pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). As outras 90% buscam na prostituição uma forma de se sustentar. Isso se deve, em parte, pela baixa escolaridade, já que muitas se veem obrigadas a parar de estudar antes de terminar o ensino médio.
Além da falta de estudos, a transfobia (aversão ou discriminação para com transexuais e travestis) também é um fator chave para que essas pessoas continuem sem emprego regularizado. Mesmo em uma das áreas que mais contrata pessoas que se enquadram no meio LGBT, os salões de beleza também não estão livres da exclusão. Daniella conta que ela e outras amigas, mesmo tendo experiência como assistentes de cabeleireiro, sofrem discriminação de outros funcionários. “Se já tiver um homem gay trabalhando no salão, você não consegue o emprego. Eles dizem que ter os dois assusta os clientes e aí não te contratam. E esse preconceito vem só dos funcionários. As clientes só querem saber se você está fazendo o cabelo delas direito”.
Mesmo quando estão contratados, a vida de transexuais nem sempre é livre de dificuldades. Patrícia Correia de Jesus, 20, conta que precisou abandonar o emprego em uma rede de Fast-food após um mês de trabalho, devido aos frequentes ataques que sofria de outros funcionários.
No trecho abaixo, Patricia conta sobre as experiências logo no primeiro dia de trabalho:
Patrícia conta também que outra transexual já havia trabalhado no mesmo restaurante, mas era igualmente destratada. “Chamavam ela pelo nome de registro. Ninguém precisa saber disso. É uma transfobia descarada”, aponta. Agora desempregada, Patrícia está em processo de mudança dos documentos com o novo nome, para que assim, ela evite ao máximo, situações constrangedoras.
As ameaças e assédio também são frequentes para os transgêneros que conseguem emprego formal. Daniella conta que já ouviu das amigas vários casos em que elas preferiram o silêncio a perder o emprego. “Já tive colegas que foram assediadas e não puderam falar por ameaça de demissão. As pessoas sabem que é difícil pra gente conseguir um trabalho e que vamos tentar mantê-lo de qualquer forma. E aí abusam disso para nos explorar”.
Prostituição
Realidade para uma grande parcela entre as pessoas trans, a prostituição é uma dura alternativa que assombra as meninas que já iniciaram o tratamento hormonal. Com as portas fechadas para o emprego formal, o trabalho nas ruas pode parecer solução na hora do desespero.
“Eu quase me prostituí. Cheguei bem perto quando vi que as pessoas não iam me dar um emprego mesmo com experiência. Graças a Deus eu conheci o meu marido e ele me ajudou” conta Daniella, que continua desempregada. “Eu sei como funcionam as coisas na rua; sei como funcionam as cirurgias plásticas clandestinas. Eu falei pra mim mesmo que nunca ia pensar em fazer isso, mas em janeiro eu quase me mudei para São Paulo pra morar com uma cafetina, porque não dava mais. Mesmo com a ajuda da minha mãe, eu me via sem nada”.
Nem todas conseguem escapar desse cenário. Júlia* é uma jovem de dezessete anos que se viu sem alternativas de sustento. Ela conta que, depois de largar a escola e sair de casa, precisou ir para as ruas para ter como sobreviver. “As pessoas acham que a trans que está trabalhando na prostituição está ali porque ela quer. Não é assim. Não existem oportunidades. E quem precisa imediatamente do dinheiro, é a única opção. Essa é a realidade para a trans no Brasil. Eu cheguei até a trabalhar em uma barraca de cachorro-quente, mas me jogavam para a cozinha, onde ninguém podia me ver. Nunca que uma trans ia trabalhar vendendo, onde você fica visível para os clientes. Mas mesmo assim aos outros funcionários disseram que ficavam desconfortáveis comigo e eu fui demitida. E aí, rua”.
Não existe nada de luxuoso ou fácil para as meninas que são lançadas nessa vida. A violência e as drogas fazem parte do cotidiano delas, que muitas vezes precisam ficar horas de pé, no frio e de salto alto, esperando por um cliente. Além disso, como a prostituição não é uma profissão legal e a fiscalização é inexistente, as meninas trans que vão para as ruas vivem em constante risco.
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Dados: Trans Murder Monitoring 2015 (TGEU) |
O Brasil é o país que mais mata transgêneros no mundo: foram cerca de 802 mortes registradas entre 2008 e 2015, 44% entre a faixa dos 20 e 29 anos. A expectativa de vida para eles é de 35 anos. A média do brasileiro é de 73; mais que o dobro. Dessas mortes, 65% eram profissionais do sexo. “Todo dia a gente tem medo de morrer. Quando você vai pra rua você está totalmente exposta. Ao frio, ao calor, às pedradas. As pessoas não respeitam, atiram ovos, jogam farinha, xingam. E tem maníaco que espanca e mata também”, conta a jovem menor de idade.
Além de ser o país que mais mata trans no mundo, o Brasil também tem números que explicam a alta busca pela prostituição entre essas pessoas. Segundo uma pesquisa levantada pelo site de pornografia ‘RedTube’, o brasileiro é o que mais procura vídeos envolvendo transexuais. O termo “shemale” (referente às travestis) é o 4º mais pesquisado entre os internautas. Esse número é 89% maior do que a média mundial e aponta como a mulher trans enquanto objeto sexual tem mais valor do que como profissional e pessoa.
Alternativas
Apesar do mercado fechado, algumas pessoas transexuais tentam nadar contra a maré e buscam formas mais seguras de conseguir se sustentar. Rúbia Rosa, que hoje trabalha na Secretaria de Saúde da cidade de São Paulo, conta que conseguir passar em um concurso público era essencial. “Sempre tive em mente que no meu caso em particular, estabilidade financeira é imprescindível”, ressaltou.
Uma das maiores preocupações para a busca pelo emprego é ter a capacidade de comprar os hormônios, parte do processo de transição. “Eu fiquei com medo de ir pras ruas, entreguei bastante currículo on-line, tentei através dos meus amigos pra ver se eu conseguia”, conta Vanessa.
Vanessa, que trabalha como cuidadora de idosos e pacientes portadores de deficiência, ressalta que ter um emprego fixo é ainda mais importante por conta dos hormônios, que são caros. Ela, assim como muitas pessoas trans, conseguiu o trabalho por meio de uma indicação; transgêneros e transexuais que já trabalham tentam se ajudar, em uma rede de apoio. “Eu tenho uma amiga que trabalha na secretaria de direitos LGBT e de vez em quando ela me marca em algumas publicações de emprego de pessoas que contratam trans”.
Uma medida criada para auxiliar em uma conexão entre transgêneros e quem não tem problemas e os contratar, também vem ajudando a empregar dezenas de pessoas. O site ‘Transempregos’ é especializado em anúncios de vagas em empresas que buscam exclusivamente essas pessoas para preencherem suas vagas, especialmente na cidade de São Paulo. Lá, as empresas enviam as oportunidades, e quem busca emprego pode disponibilizar o currículo gratuitamente e se cadastrar para diversas vagas, em variadas áreas que vão desde telemarketing, até advocacia.
Muitos avanços também se dão por conta das lutas sociais, muitas vezes protagonizadas na internet. “O meu processo de empoderamento partiu muito da internet. Conhecer pessoas que falassem pra mim: ‘olha, a gente merece isso sim. vamos lutar pelos nossos direitos’. Eu acho que o ativismo de internet é muito útil e muito necessário. Até uma maneira de facilitar o contato entre as pessoas”, explica Vanessa. É por meio das redes sociais também que se compartilham informações como preços e experiências com hormônios, já que muitas pessoas se automedicam.
Medidas Públicas
Apesar do avanço e das redes de apoio, ainda há muito o que se resolver antes dessa realidade mudar. Essa mudança precisa vir também dos governantes, como cobram as pessoas. “Eu acho que existe uma displicência muito grande por parte de nossos governantes porque as políticas públicas voltadas para pessoas trans são mínimas, e muitas vezes ainda tem a bancada evangélica que ainda tenta acabar com as mesmas. Ao invés da gente conseguirmos ser abraçada pelos nossos representantes, o que acontece é o contrário, a gente é completamente marginalizada”, denuncia Vanessa.
Em alguns estados, projetos sociais do governo auxiliam travestis e transexuais a estudar e a conseguir uma vaga no mercado de trabalho. O Transcidadania do governo do estado de São Paulo, lançado em 2015, oferece bolsas de estudos no valor de R$ 840 para que essas pessoas sejam incentivadas a retornar às escolas, aumentando suas chances no mercado. Em João Pessoa, na Paraíba, o Transcidadania oferece também vagas de trabalho e promete uma maior inserção dos transgêneros.
A previsão, porém, é que essas medidas apenas remedeiem o problema, não resolvendo definitivamente. De acordo com Vanessa, medidas precisam ser tomadas ainda nas escolas, que é onde a vida das pessoas trans começa a ficar mais difícil. “Eu acho que, se vier da base, a próxima geração terá mais sorte que a nossa em relação a políticas públicas LGBT. Infelizmente eu não vejo uma melhora em curto prazo. Isso vai depender muito do reflexo dos nossos governantes. Infelizmente, eu acho que isso não vai ter melhora tão cedo. Talvez demore umas duas ou três décadas para que exista uma integração efetiva das pessoas trans na sociedade”.
*O nome foi alterado para preservar a identidade da entrevistada.
Por John Matos, do Esquina On-line