“O amor dói. Dói mais ainda quando a gente perde”, diz a aposentada Joana Francisca Euclides, de 72 anos. A baiana se guia por um papelzinho com quatro endereços diferentes para visitar, com as quadras e os lotes escritos.
No cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, em Brasília, todos os anos, no Dia de Finados, ela faz uma visita à memória de sua família. Ela segue a ordem que escreveu no papelzinho.
A primeira visita é para homenagear a filha mais velha, Jussara, que morreu em 2021 aos 43 anos devido a complicações de uma cirurgia bariátrica.
“Ela se sentia gorda e quis fazer a cirurgia. Mas ninguém imagina que poderia custar a vida dela, muito menos os três filhos que ela deixou.”
Depois de Jussara, a próxima visita é na sua filha mais nova, que sofreu um acidente de carro em 1989, aos 16 anos. O terceiro endereço do papelzinho é o túmulo do marido, José Rodrigues. Morreu em 1980 de infarto fulminante do coração com 33 anos.
“Nós tínhamos tantos planos, tantos sonhos. O maior sonho dele era viajar pelo mundo com as nossas filhas.”
“Não tenho mais tempo para fazer pedidos”
O último encontro do dia é com a memória da mãe, Carmosina.
Essa foi a primeira vez que Joana não consegue ir ao túmulo da mãe. Caminhou por uma hora e meia procurando sem resultados e então desistiu.
“Aqui cresceu demais. O cemitério é tão grande que eu nem consigo mais lembrar onde minha mãe está.”
Nascida em Barreiras, município da Bahia, veio para Brasília para construir uma nova vida. Trabalhou em um atelier e confeccionava vestidos de festas. Hoje mora sozinha em Taguatinga Norte, 20 km de distância do cemitério.
“Às vezes, me pergunto, o porquê só eu que fiquei aqui”
Ela diz sentir falta de comemorar os aniversários e as festividades com a família, mas não sente que deixou de aproveitar o tempo com eles.
“ Os momentos que tive com minha família foram muito especiais. Nunca senti que deveria ter feito algo de diferente. Desfrutei bem o tempo com todos, pena que durou tão pouco.”
“Por mais que o tempo passe, a dor da perda nunca passa. Tive que aprender a viver com ela.”
Joana diz que agradece todos os dias por ainda se lembrar do cheiro, da voz, das risadas e dos momentos vividos.
“O tempo passa muito rápido. Uma das coisas que eu mais aprendi é que, a gente não sabe o que o amanhã nos reserva. Se todo mundo pensasse assim, os abraços seriam mais apertados, os beijos mais apaixonados e os ‘eu te amo’, mais sinceros.”
Jardim de memórias
Lágrimas e flores são a cena que Antônio Buiu vê todos os dias desde 1993. Seu trabalho é dedicado à jardinagem estética no cemitério.
“Minha função é deixar o local, que, pra muitos é sombrio, em um lugar agradável, de descanso em paz.”
Ele acredita que a limpeza e a beleza transmite tranquilidade para quem chega. A grama cortada, as flores vivas, os túmulos bem cuidados tem um poder simbólico que vai além da aparência.
“Quando as famílias me elogiam quando veem tudo arrumadinho, tudo bem cuidadinho, é como se eu tivesse cumprido um dever, não só profissional, mas humano.”
Uma função carregada de emoções.
“É mais do que um simples trabalho de jardinagem”. Antônio explica que ao trabalhar com a morte todos os dias, a visão sobre ela se torna um pouco mais comum.
Um aprendizado que tirou nesses 31 anos de trabalho, é que se um jardim floresce em meio à morte, a beleza pode voltar a florescer até no sofrimento no coração de quem ficou.
“A morte está sempre ali, como parte da vida, mas a forma como as pessoas lidam com isso, a lembrança de quem se foi, é o que marca.”
Trabalhador do cemitério, Samuel da Silva, de 38 anos entende que a morte ajuda a saber que é preciso valorizar o tempo.
“A vida é muito curta. O tempo é muito curto. Quem passa por aqui aprende a dar valor ao tempo que tem com quem ama”.
Samuel trabalha no cemitério há cinco meses. Ele conta que as pessoas só conseguem compreender o valor do tempo depois que se transforma em memória.
“Abraça, beija, perdoa, fala que ama, não espera muito não. A coisa que eu mais vejo aqui são pessoas que deixaram esses gestos para depois.”
“Aqui a gente vê de tudo. Choro, saudade, raiva”.
Ele diz que todos deveriam passar pelo menos uma semana convivendo com a morte. “As pessoas passariam menos tempo reclamando da vida e mais tempo valorizando ela”.
Nunca imaginou trabalhar na preparação das covas e dos túmulos durante um funeral. A cada dia que passa, tem um novo significado.
“Aqui eu aprendi a entender a morte. A lidar com o sofrimento dos outros. A morte chega para todos. Independente de dinheiro, raça ou de valores “.
Respeito
O sepultador Roger Alexander, de 43 anos, não fala o português fluentemente. Aprendeu o suficiente de português para se comunicar com os colegas de trabalho.
“Aqui, as coisas são diferentes. As regras, os costumes, até a forma como as pessoas lidam com a morte. Uma coisa que não precisei aprender, é respeitar. Respeito deveria ser universal.”
“Não espere a pessoa morrer para vir aqui e sofrer.”
A jornada até o Brasil não foi uma simples mudança de país. Sem esperança no país natal, saiu com a família da família da Venezuela e veio para o Brasil para construir um recomeço.
Ele explica que a primeira vez que teve que sepultar alguém foi um momento que nunca imaginou fazer. “É um trabalho muito difícil emocionalmente. Você vê a família sofrendo, não é pra qualquer um.”
“Tem dias que é difícil levantar da cama sabendo que eu vou ver tanto sofrimento”.
O venezuelano expressa gratidão por poder dar sustento a sua família e ter um trabalho que o faça dar valor a vida todos os dias. “Me emociono todas as vezes ao chegar em casa. Agradeço todos os dias a vida que tenho, o tempo que tenho com quem amo.”
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Por Ayumi Watanabe (texto e fotos), sob inspiração da música “Oração ao Tempo”
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira