Mais de 17 mil venezuelanos buscaram o Centro-Oeste para “nova vida” em 3 anos

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O Brasil é o quarto país no ranking com maior número de imigrantes venezuelanos no mundo e a região Centro-Oeste é apenas a quarta no país. Os dados mais recentes mostram que, em outubro de 2024, a população de pessoas vindas da Venezuela atingiu o total de 568.058 mil espalhadas pelo Brasil. Apenas no Centro-Oeste, o número de solicitações da condição de refugiado de todas as nacionalidades aumentou mais de 79% entre 2022 e 2023. 

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/EBC

Emilio Marino, de 37 anos, faz parte dessas milhares de pessoas que saíram da Venezuela em busca de uma qualidade de vida melhor. Sozinho, deixou sua esposa e filha para encontrar oportunidade em outro país. Passou por 4 deles na América Latina até chegar ao Brasil, em 2020, onde se estabeleceu e vive desde então em Brasília (DF). 

“Tive que recomeçar do zero muitas vezes“, diz Emílio, que aprendeu português, conquistou a documentação da família, e nunca deixou de buscar pelo seu sonho de construir uma oficina própria. “Sempre tive uma meta: trazer conforto e felicidade para minha família. Minhas filhas são meu motor”.

FOTO OFICINA

Para sair da Venezuela, em meio a pandemia, Emílio precisou pegar três ônibus até a fronteira com a Colômbia. Seguiu para o Equador, depois foi parar no Peru, em seguida pegou um avião para o Chile e, por fim, decidiu seguir para o Brasil. A falta de documentação dificultava o acesso a empregos formais e a estabilidade financeira nos países latinos.

 “O Brasil foi o único de todos os países que passei em que não sofri nenhum tipo de preconceito, fui sempre muito bem acolhido”, relata Emílio. 

Em novembro de 2020, Emílio chegou no Brasil e no início do ano seguinte conseguiu os documentos em São Paulo para se estabelecer no país. Atualmente, Emilio mora na Cidade Ocidental (GO) e trabalha em uma oficina em São Sebastião (DF) como mecânico, mesma profissão que atuava em seu país de origem. 

Assim como Emílio, outros 30 mil imigrantes já registrados buscaram o Brasil, em especial a região Centro-Oeste, como nova oportunidade de vida. Desse total, 13 mil imigrantes registrados são de várias nacionalidades: paraguaios, bolivianos, haitianos e colombianos. Só os venezuelanos contabilizam mais de 17 mil. Esses dados estão no relatório de macrorregiões da OBMigra de 2024 que mostra que os venezuelanos formam a maioria no número de registros de imigração no centro oeste. Os dados se referem aos anos de 2022 ao primeiro semestre de 2024. Ao clicar no mapa é possível visualizar o número de imigrantes de cada país. 

Além disso, os dados evidenciam que existem mais de 42 mil imigrantes em trabalho formal no Centro-Oeste. Os venezuelanos contabilizam mais de 50% desses trabalhadores. A socióloga e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre as Imigrações Internacionais (LAEMI-UnB), Tânia Tonhati explica que os refugiados já podem entrar no mercado de trabalho assim que solicitarem a condição de refúgio. 

A partir disso, o solicitante já tem acesso à educação e à saúde.  “O que não acontece na maioria dos países ricos do Norte Global. Muitas vezes, deixam essas pessoas em centros de detenções por anos, sem trabalho, com moradia e alimentação escassa”, enfatiza. 

A decisão de ir embora 

Emílio trabalhava em uma concessionária da Ford no seu país e, com a inflação, o salário passou a não cobrir as necessidades básicas. “Estava buscando um novo lugar para recomeçar”. Precisou sair de casa sozinho, porque sua esposa e filha não tinham passaporte para viajar junto. Ele buscava estabilidade, segurança para sua família e a chance de reconstruir sua vida em um país que oferecesse mais oportunidades. E no Brasil, encontrou isso.

De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a principal diferença entre os imigrantes e refugiados são os motivos que os levaram a sair do país de origem. Refugiados são aqueles que fogem de seus países por algum tipo de conflito interno, perseguições políticas, religiosas, condições precárias de vida. Por outro lado, os imigrantes são aqueles que saem dos países de origem em busca de uma qualidade de vida melhor, não necessariamente por dificuldades em seus países. 

Segundo o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC Marcelo Monteiro, para entender a onda de deslocamento de venezuelanos para o Brasil é preciso primeiro conhecer a história daquele país. “Não podemos confundir a economia com a política, as duas tiveram uma parte significativa na crise do país (a Venezuela)”. 

Durante a década de 1980, a indústria de petróleo na Venezuela fazia com que o país fosse considerado um dos mais ricos da América do Sul. No entanto, Marcelo explica que a Venezuela não se diversificou industrialmente e se tornou uma economia exclusiva na indústria do petróleo, sem reverter a riqueza para outros setores.  

Além disso, o país já enfrentava conflitos políticos desde a década de 1990, com as tentativas de golpes militares e a eleição de Hugo Chávez, em 1998, que ficou no poder até 2013. Quando Chávez ficou doente, o vice-presidente Nicolás Maduro assumiu a presidência com o mesmo viés do socialismo bolivariano que se estende até os dias de hoje. “Há mais de 30 anos, esse grupo político toma conta do país, mas não foram capazes de transformar uma riqueza natural em riqueza para a sociedade”, explica Monteiro. 

Foi então, na década de 2010, que o deslocamento de venezuelanos para o Brasil tomou uma proporção ainda maior. Atualmente, o número de imigrantes supera o percentual de qualquer outra nacionalidade. Apenas em 2024, foram registradas 68.159 solicitações de refúgio no Brasil, sendo 39,8% de venezuelanos, de acordo com os dados do último relatório Refúgio em Número elaborado pelo OBMigra. 

Um novo lugar para recomeçar 

Ao cruzar a fronteira em São Paulo (SP), Emílio foi recepcionado por voluntários de uma ONG que falavam espanhol e o ajudaram a buscar os documentos necessários para solicitar asilo e ser considerado um refugiado. Ele explicou sua intenção de permanecer no Brasil para trabalhar e se reunir com sua família (esposa e filha), que ainda estava na fronteira com a Venezuela. Nessa época, já fazia mais de um ano que não via sua família.  

A ONG ajudou com agendamento, documentos, e até o contato com a Polícia Federal. Emílio passou cerca de um mês nesse processo até conseguir um visto de residência por dois anos. 

Para conseguir esses documentos, Emílio precisou solicitar a condição de refugiado na Polícia Federal para que assim o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) pudesse avaliar se a situação dele era de refúgio. Depois de conseguir a aprovação da identidade de refugiado, o imigrante tem direito de ter registro de residência. 

Sua esposa, no entanto, precisou entrar clandestinamente no Brasil, já que a fronteira estava fechada por conta da pandemia. Com a filha pequena nos braços, ela cruzou a fronteira com a ajuda de motoqueiros pagos e chegou a Pacaraima, cidade na fronteira com a Venezuela, e então seguiram para Boa Vista, em Roraima. Emílio foi ao aeroporto de Guarulhos, buscou informações em companhias aéreas e, apesar dos riscos, conseguiu que sua esposa embarcasse num voo para São Paulo mesmo sem a documentação formal. Ela precisaria voltar à fronteira para regularizar a situação. Hoje, em  2025, ela já está legalizada no país.

O internacionalista Marcelo Monteiro explica que a grande extensão da fronteira terrestre do Brasil facilita a entrada ilegal ou sem monitoramento de pessoas dos países vizinhos. De acordo com o professor, no caso dos venezuelanos, a entrada terrestre é facilitada devido à grande extensão de floresta entre os dois países. A Venezuela faz fronteira com os estados do Amazonas e de Roraima. 

Segundo a professora e coordenadora do OBMigra e do Laboratório de Estudos de Migração (Laem), Zakia Hachem, o termo ilegal não é apropriado para usar sobre os imigrantes que chegam sem documentação ao Brasil. De acordo com a pesquisadora, diferente do que acontece no norte global, o Brasil não tem um número significativo de pessoas que cruzam a fronteira sem passar pela imigração. 

“Ninguém é ilegal, não usamos esse termo. As pessoas têm ou não têm documento para estarem em determinado lugar. Essa não é uma prerrogativa do Estado brasileiro”, explica Hachem. Mesmo sem documentação formal, a população imigrante tem o direito de se refugiar no Brasil, caso regularize o status migratório em até 60 dias. 

Em 2022, 71% dos deferimentos de refugiados foram de duas nacionalidades, 37% venezuelanos e 34% cubanos. Já em 2023, houve um aumento significativo de venezuelanos que receberam o reconhecimento de refugiados, passando para 96%.  

Emílio precisou ir até a embaixada e à Polícia Federal para poder mostrar e reaver sua habilitação venezuelana que facilitou o processo de documentação no país. Já a sua esposa conseguiu a documentação com o apoio de uma ONG focada em assistência social a refugiados e pessoas vulneráveis em Brasília, que auxiliaram nos trâmites da legalização e na integração da família no DF. 

Apesar da experiência positiva da família de Emílio no Brasil, muitos imigrantes além de não obterem documentação facilmente muitas vezes também não conseguem apoio do governo e de entidades sociais para a inserção na sociedade. A professora Zakia Hachem explica que embora exista uma facilidade na retirada dos documentos, muitos dos imigrantes chegam ao Brasil em uma situação de vulnerabilidade. “Não basta recebê-los, é preciso integrá-los. E para integrar é necessário políticas públicas efetivas que consigam inserir essas pessoas na sociedade,” explica. 

PRECONCEITO 

Durante todo o percurso até chegar ao Brasil, Emílio diz que sofreu preconceito em todos os países latinos  que passou, mesmo falando o mesmo idioma. “Eu tentava não me afetar, porque os comentários eram constantes. Uma vez no mercado me falaram para voltar ao meu país, e eu disse, ‘não se preocupe porque estou juntando dinheiro o mais rápido possível para sair daqui”. 

Em todos os destinos em que passou, ele conta que foi em Lima, no Peru, que passou pelas maiores dificuldades. Durante os quatro meses que viveu no país, precisou trabalhar em condições precárias para juntar dinheiro. “Era um trabalho quase escravo. Muito trabalho para pouco dinheiro”, afirma.

Embora Emílio não tenha sofrido preconceito no Brasil, o antropólogo Gabriel Tardelli destaca que existe uma contradição entre o que a legislação diz e a imagem que o Brasil quer passar para o mundo. “O Brasil se apresenta como um país acolhedor e progressista. 

Por exemplo, a operação criada para ajudar os venezuelanos se chama ‘Operação Acolhida’, mostrando essa intenção de receber as pessoas. Mas, apesar desses avanços, essa mesma operação enfrenta muitos desafios por causa da discriminação contra pessoas de outros países, especialmente dos waraos (povo indígena venezuelano).”

No ano passado, a capital estabeleceu a política distrital para a população imigrante no Distrito Federal que pretende garantir os direitos básicos, como acessibilidade aos serviços públicos, o respeito à diversidade e a promoção dos direitos das crianças e adolescentes. A coordenadora do OBMIgra, Zakia, explica que a regulamentação dessa política representa avanços do ponto de vista legislativo e normativo. “Nós precisamos de avanços também na aplicação das leis para transformar essas normativas em projetos e políticas públicas”, comenta. 

Metodologia – como fizemos a reportagem

Essa reportagem surgiu após percebermos a forte presença de venezuelanos no Distrito Federal. Por curiosidade, decidimos procurar qual era a proporção de venezuelanos aqui no DF e percebemos que o número superou o que achávamos que era. Descobrimos que o Brasil é o 4° país com maior número de venezuelanos no mundo. Dessa forma, decidimos fazer um recorte na região Centro-Oeste, com foco em Brasília. 

Assim, o enfoque do texto se deu a partir dos dados apresentados no relatório Dinâmicas migratórias nas macrorregiões do Brasil de 2024, produzido pelo Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra), laborátorio de estudo da Universidade de Brasília em parceria com o Ministério da Justiça, IBGE, Ministério das Relações Internacionais, Polícia Federal e com entidades envolvidas na temática de migração. Outro relaztório de suporte foi também do OBMigra, Refúgio em Números 2025.  

Os dados analisados que compõem a planilha base da reportagem estão disponibilizados no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública, no gov.br, na aba da Secretária Nacional de Justiça (Senajus) em refúgio e migração. Para compilação dos dados e comparação entre eles, foi utilizada uma planilha no Excel e, para a melhor compreensão e visualização da matéria, utilizamos o aplicativo Flourish para a produção dos gráficos e mapa. 

Para aprofundar os dados, conversamos com a pesquisadora que produziu o relatório da seção do Centro-Oeste, a professora de sociologia da UnB, coordenadora do OBMigra e do Laboratório de Estudos de Migração (Laemi), Zakia Hachem. Também entrevistamos o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Marcelo Monteiro, para entender sobre a política externa e economia da Venezuela. 

O antropólogo Gabriel Tardelli e a socióloga Tânia Tonhati também nos ajudaram a entender sobre preconceito e xenofobia sofridos por imigrantes, além de nos explicar sobre as medidas que o governo tomou nos últimos anos sobre o tema. 

Escolhemos Emilio Marino para ilustrar a nossa reportagem por conta de sua história e as condições em que vive hoje em Brasília, como uma pessoa que está integrada a partir do acolhimento recebido de ONGs e também dos governos Federal e Local. O venezuelano é pai de duas filhas e mora com a mãe e o pai dele na Cidade Ocidental (GO).

O assunto imigração no Brasil não se esgota nessa reportagem. A onda de imigração dos venezuelanos aconteceu entre 2015 e 2023, e agora há uma nova que está começando pelos cubanos no Paraná. Outras ondas de imigração também marcaram a história do Brasil, como os europeus e japoneses que chegaram na Segunda Guerra Mundial e os do Oriente Médio, como os Sírios e Libaneses que vieram refugiados por conta de conflitos armados nas regiões em que vivem. 

Por Ayumi Watanabe, Julia Lopes e Maria Beatriz Giusti

Supervisão de Mônica Prado

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