Nem a previsão de chuva nem o céu carregado conseguiram conter a força das mulheres negras que ocuparam a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, nesta terça-feira.
Desde cedo, grupos e coletivos de todas as regiões do país se reuniram ao lado do Museu Nacional para denunciar as violências que historicamente atingem a população negra e reafirmar o papel decisivo das mulheres negras na construção da democracia brasileira.
O ato reforçou que essas pautas não são demandas isoladas, mas questões estruturais para o avanço do país e para a garantia de justiça social.
“Não é fácil ser mulher negra no Brasil. Fala-se muito em igualdade, mas ela ainda não existe”, afirmou Solange Batista, professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
Ela veio à marcha em busca de representatividade e para defender políticas públicas que incluam mulheres negras no Congresso e em todos os espaços de poder.

A educadora relata que, mesmo na escola, com um ambiente que deveria ser de acolhimento o racismo ainda aparece diariamente. “Quando chega o Dia da Consciência Negra, todo mundo olha para mim: Solange, você organiza? Eu organizo, mas só me chamam porque sou negra. E os outros? Por que não dividem essa responsabilidade?”, questiona.
Ela conta ainda que o preconceito se manifesta nos pequenos gestos: “Às vezes, ao comprar um produto, alguém diz: ‘Ah, porque o seu cabelinho…. Como assim cabelinho? Porque é curto? Porque é crespo? Ou porque acham que é feio? Isso acontece o tempo todo. É constante.” disse.
Para Aidê Balério, marchar é um ato de existência e sobrevivência. “Marchar é imperativo para nós. Não viemos ao mundo a passeio”, afirma a representante do Comitê das Mulheres Negras Evangélicas e da Instituição Agarca, a Sociedade Teológica de Mulheres Negras. Ela, que esteve presente também na marcha de 2015, ela retorna agora para reafirmar a continuidade da luta.

“Marchamos por bem viver, por reparação, por saúde, por educação de qualidade, por segurança pública. Marchamos para ficar vivas, porque somos donas dos nossos úteros” disse.
O Comitê nasceu do reconhecimento mútuo entre mulheres negras, sejam elas cis, trans e travestis, evangélicas atuantes em movimentos sociais, pastorais, academia e comunidades locais, que já participam dos comitês da Marcha 2025 em seus territórios. A convocatória para a Marcha de 2025 foi o catalisador que transformou essa vontade comum em organização concreta, criando um espaço onde a fé e suas vozes pudessem se expressar sem mediações ou censuras.
Sobre o que espera depois da marcha, a ativista resume em uma palavra. Unidade. “Somos mulheres diferentes em crenças e experiências, mas todas unidas por um propósito maior: lutar pela vida. A bala perdida não pergunta se você é evangélica, de axé, católica ou ateia. Ela encontra corpos negros”, afirma.
Coletivos Paulistas
“Participar dessa luta é exigir políticas públicas que cuidem de nós e nos reconheçam”, foi assim que Cida Honório, que veio de Brasilândia, um bairro periférico da zona norte de São Paulo, de maioria negra definiu a marcha. Cida chegou acompanhada de uma caravana de coletivos paulistas para a marcha, assim como grupos organizados vindos de vários estados.
Maura, que também veio de Brasilândia, falou sobre a importância de que cada mulher negra conte sua história. “A marcha é sobre respeito, visibilidade e o fim do racismo, seja no trabalho, nas ruas ou dentro de casa. Cada uma de nós carrega experiências de preconceito, e isso nos fortalece. Estamos aqui para mostrar nossa força, nossa união e nossa voz.”

Para ela, a marcha é apenas uma parte de algo muito maior: “A marcha é só um terço do que construímos diariamente na busca de um Brasil mais justo para as mulheres. Viemos de caravanas de São Paulo, de Campinas, de toda a Brasilândia, e sabemos que quando nos organizamos, fazemos a diferença. É sobre ocupar espaços, lutar pelos nossos direitos e inspirar futuras gerações a não aceitar o invisível. Cada história contada é um passo na construção de um Brasil mais justo e igualitário.”
Abayomi
Thaís Vital, jornalista e ativista da Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba, descreve a marcha como um grito que ecoa para além das fronteiras do país: “Não aceitamos mais essa sociedade que insiste em nos invisibilizar, em nos matar, em negar nossa existência. Estamos aqui para dizer que temos um projeto político que só alcançará igualdade e justiça social se passar pelas mãos das mulheres negras.”
A Abayomi surgiu como fruto do pós-marcha de 2015 e, dez anos depois, segue articulando a mobilização em níveis estadual, regional e nacional. Uma das atuações é no enfrentamento ao racismo no estado, tendo como central a atuação com mulheres negras de terreiro (Santa Rita), marisqueiras (Cabedelo) e quilombolas (Conde), além do desenvolvimento de ações de capacitação para o fortalecimento das mulheres negras ativistas, de associações, organizações, sindicatos e estudantes a partir da realização de cursos e capacitações em projetos sociais, comunicação e relações raciais.
Abayomi é uma palavra de origem iorubá que significa “encontro precioso”, “meu presente”, “meu tesouro” ou “aquilo que traz felicidade”.
O termo se tornou especialmente conhecido no Brasil por meio das bonecas abayomi, criadas por mulheres negras escravizadas durante as travessias forçadas nos navios negreiros. Com pedaços rasgados de suas próprias saias, elas amarravam retalhos e criavam pequenas bonecas para acalmar e confortar as crianças, um gesto de cuidado, resistência e preservação da humanidade em meio ao horror da escravidão.
Hoje, inspirada nesse legado ancestral, a Abayomi atua no enfrentamento ao racismo na Paraíba, com foco central nas mulheres negras de diferentes territórios e tradições e também desenvolve ações de formação e fortalecimento político, oferecendo cursos e capacitações em projetos sociais, comunicação e relações raciais. Essas atividades têm como público mulheres negras ativistas, lideranças comunitárias, integrantes de associações, sindicatos, organizações e estudantes, ampliando a rede de resistência, autonomia e protagonismo das mulheres negras no estado.

Thais completa que a marcha é também um recado direto às instituições: “Que fique claro, nós não estamos pedindo favor. Estamos exigindo o que é nosso por direito. Reparação, dignidade, vida, representação e respeito. E não vamos parar. O mundo precisa ouvir a nossa voz.” conclui
Peri Camilo, também integrante da coletiva Abayomi, ressaltou que a marcha acontece em um dia de grande significado: o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Vinda de João Pessoa, ela afirmou que estar em Brasília representou um ato de resistência e enfrentamento.
“Estar em Brasília, onde os poderes se organizam e mantêm um sistema racista e misógino que diariamente viola nossos corpos e promove o genocídio da juventude negra, é um ato de enfrentamento direto”, disse.
Para ela, a marcha também tem caráter simbólico e político. Ela enfatizou: “Hoje, mais de um milhão de mulheres negras se unem para afirmar que não aceitam mais as injustiças, reivindicando reparação, o fim da violência e condições de vida dignas.”
Grito por Moradia
Dilma Silva Rezende, também vinda de Campinas, é presidente da Associação Grito por Moradia – Movimento Nacional de Campinas. Ela destacou que sua luta e a da associação vai além da questão racial.
“Minha luta hoje não é só pelos negros, mas também pela moradia digna, que nós, pretos, merecemos. É isso que me traz aqui hoje.”
Para ela, a marcha é um “espaço de visibilidade, resistência e afirmação de direitos” e mais do que isso, uma oportunidade para “reivindicar igualdade, respeito, dignidade e justiça para as mulheres negras.”
Sônia, uma das participantes da Associação Grito por Moradia, e enfermeira de profissão, vê a marcha como uma forma essencial de resistência e reivindicação de igualdade plena.

“Queremos viver em igualdade, em pé de igualdade. Mulheres, homens, todos iguais.”
Racismo
Ela relata que, ao longo da vida, já enfrentou diversas situações de racismo, seja em lojas, seja no trabalho.
“Às vezes você chega numa loja e já te olham como se não pudesse comprar. No trabalho, várias vezes também. A gente engole porque precisa do emprego, mas não precisamos mais engolir. Está na hora de colocar para fora o que sentimos e exigir respeito. A gente faz o mesmo trabalho, às vezes até mais, porque acham que negro é preguiçoso ou incompetente. E não é nada disso.”
Sônia ressalta que essas situações se somam a um histórico de desigualdades enfrentadas pelas pessoas negras.
“Se você chegar em um local onde há um grupo de pretos e outro de brancos e a polícia encostar, muitas vezes vão abordar os negros, mesmo que os brancos estejam aprontando. São pequenas coisas que se acumulam. De certa forma, somos libertos, recebemos salário, mas ainda somos distinguidos pela cor da pele e isso nunca deveria acontecer.”
A Marcha das Mulheres Negras reuniu ainda militantes do campo e da cidade em defesa da reparação histórica e do bem viver. Durante a mobilização, a militante Rosa Negra destacou que a marcha celebra os dez anos desde a última grande ocupação de Brasília pelas mulheres negras.

Segundo ela, não há democracia plena no Brasil sem considerar as vozes e as pautas das mulheres negras. “Estamos aqui para dizer que existimos e resistimos”, afirmou.
Outros representantes do MST também reforçaram que a reparação histórica só é possível com a democratização da terra. Para o movimento, a “reforma agrária popular é parte essencial dessa reparação”.
O evento acontece dez anos após a primeira marcha, realizada em 18 de novembro de 2015, quando mais de 100 mil mulheres negras de todo o país ocuparam Brasília para denunciar o racismo, a violência contra a juventude negra, a violência doméstica e o feminicídio, que as vitimam de forma desproporcional.
Por Mayara Mendes
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira


