Mercado artístico também tem preconceito contra trans, afirmam artistas de Brasília

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Seja na saúde, nos relacionamentos ou até para ir ao banheiro, transgêneros e travestis ainda passam dificuldades em vivências básicas do cotidiano. Poderia alguém pensar que, na área artística, seria diferente, mas a ideia não se torna real. Artistas da literatura, música e teatro também apontam obstáculos na busca de vagas profissionais, representatividade social, além de denunciar o preconceito vivido.

Fernando*, Kika Sena e Maria Léo Araruna são artistas de Brasília, e, mesmo que atuantes em diferentes áreas, seus depoimentos convergem em um ponto: a falta de informação sobre a comunidade trans é uma das principais dificuldades no cenário artístico brasiliense.

Franq lamenta que trans precisam mostrar mais serviço. Foto: Arquivo pessoal

Fotografia, música, literatura e teatro são alguns dos campos em que o estudante de filosofia Fernando, 26, trabalha. Transicionado há apenas três meses, o artista já denuncia dificuldades de carregar o “fardo” que é ser trans. “Quando se é trans, você precisa ter uma bagagem três vezes maior para mostrar seu serviço”. Franq (nome artístico) atualmente está em pausa em suas áreas de atuação por questões de saúde.

Além de olhares maldosos, ironias sobre sua identidade e uma “vigília” sobre seu comportamento, Fernando conta que na maioria das vezes que teve seu serviço contratado (principalmente em fotografia), os trabalhos vieram recheados de perguntas. “Além de toda capacitação, você deve vir equipado com o ‘kit de paciência desconstrutora’ para explicar e elucidar todas as dúvidas que nem sempre serão ouvidas”, afirma.

Franq conclui que essas questões são derivadas de um preconceito mais amplo da sociedade, e que em Brasília não é diferente – seja no dia-a-dia ou no mercado de trabalho. “Você se vê sendo constantemente interrogado e tendo de explicar sua existência a ponto de você acabar se questionando sobre a necessidade dela”.

Profissionalmente, Fernando afirma que o preconceito atrela uma visão negativa à comunidade. “Ao usar o termo ‘trans’ imediatamente todo o meu histórico e capacidade é apagado”. Porém, o artista tem visão uma otimista. “Brasília está ganhando um grande contramovimento artístico. Ocupações estão se espalhando e tornando mais acessíveis. Hoje já conseguimos ver um colorido diferente nas peças, nas bandas, nas atrações em si”.

Falta de ofertas

Brasília é violenta com pessoas trans, diz Kika Sena. Foto: Arquivo pessoal

Kika Sena é atriz, performer e poeta. Para ela, Brasília é violenta com as pessoas trans, assim como qualquer outro lugar, e isso é evidenciado no campo artístico. “A população cis para tentar mostrar o quanto está desconstruída e acolhedora, escreve roteiros de filmes e teatro com personagens trans, mas tudo com o ponto de vista deles”.

Pela falta de ofertas para pessoas trans, Kika faz participação militante em performances de poemas autorais em saraus poéticos e batalhas de Slam (modalidade literária). “A empregabilidade trans em Brasília é bem problemática, como em qualquer lugar. E é por isso que existem muitas mulheres trans e travestis no mercado informal da prostituição”.

“Arte não garante vida estável”, diz pesquisadora

Doutora em Semiótica e professora de História da Arte, Flor Marlene caracteriza o cenário artístico brasiliense como complicado, já que a instabilidade dos profissionais dessa área domina o modo de produção desse conteúdo. “Fazem apresentações, documentários e exposições só quando conseguem algum financiamento. A arte não garante vida estável em Brasília”, afirma.

Kika, que também é escritora, quando questionada sobre o perfil do artista brasiliense, aponta uma homogeneização branca do artista local.”Para a pessoa preta, periférica e trans subverter esse lugar, ela tem que vender sua arte em bares, criar canal no YouTube…”. Há pouco mais de dois meses, Kika lançou o livro “Periférica”, pela Padê Editorial, uma editora artesanal da cidade, sobre vivências pessoais.

Para a professora, Brasília tem dois grandes lados artísticos. Um contemporâneo, mais acadêmico e derivado da pós-modernidade; e um mais ‘periférico’, mais liberto, transmutável e com mercados autorais de arte. “Redes sociais e cobertura midiática não são suficientes para ajudar o artista. Seu trabalho acaba sendo mais acessível com eventos independentes, como feiras, por exemplo”.

Maria Léo ataca os estereótipos criados pela mídia. Foto: Arquivo pessoal

Escrevivências

Dificuldade e paciência são duas características que definem a jornada de Maria Léo Araruna no teatro. A estudante de direito e militante da coletiva LGBT Corpolítica e da União Libertária de Travestis e Mulheres Transexuais (ULTRA) começou no teatro recentemente, mas já se aventurou em outras áreas. Ano passado, organizou o livro “Livro Nós, Trans – Escrevivências de Resistência”, produzido exclusivamente por pessoas trans.

“Meus colegas e professores nunca tinha entrado em contato com uma pessoa trans. Sempre rolava aquela dificuldade em me tratar pelo pronome certo mesmo eu falando que me chamo MARIA”, conta a artista. A estereotipização midiática acerca da comunidade trans  é apontada pela artista como um dos fatores de distanciamento social.

Arte e censura

Num mundo midiatizado e com redes sociais, questões de compreensão sobre a arte são democratizadas. Para Flor Marlene, o debate sobre o Queermuseu surgiu desnecessariamente, pela falta de experiência estética. “Interpretação geral é achar que é agressão aos bons costumes redigidos pelo capitalismo, mas a questão é que se não há compreensão, fica só a violência”.

“Por exemplo, o título Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva nós olhamos para arte como se fosse erótica, mas na verdade, a obra era uma denúncia sobre o mundo globalizado e a cultura de massa. Nela identificamos elementos da arte pop, principalmente norte americana, como produtos e alimentos”.

Para Maria Leo, a censura foi um reflexo do conservadorismo brasileiro, e que a manifestação sobre pedofilia foi uma desculpa contra uma das principais obras da exposição: a ‘criança viada’. “O temor em compreender expressões de gênero diversas se deve ao medo em se falar sobre gênero e suas possibilidades corporais”, afirma.

A atriz pontua que a produção artística na comunidade LGBT busca, cada vez mais, inovações para realizar produtos políticos. “As imagens trazem discussões sobre como os corpos são disciplinados desde a infância para agir conforme uma regra heteronormativa e como isso é violento”.

Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi uma exposição alocada no Santander Cultural, em Curitiba, e cancelada após manifestações na internet (saiba quais são as obras censuradas. Crédito: Catraca Livre).

A travesti da família brasileira

Passadas duas semanas da morte de Rogéria, a artista é considerada por várias pessoas como uma grande aliada na luta do movimento trans. Inserida em um contexto recheado de preconceitos, “Rogéria criou uma trajetória, foi feliz e assumiu sua própria identidade. Isso exige força”, afirma Fernando, que considera o trabalho da artista como uma memória da existência da comunidade transgênero.

Rogéria foi importante para representatividade da comunidade trans no Brasil no século XX. Mas no contexto atual, Kika Sena aponta que a controvérsia da autointitulada “travesti da família brasileira” se dá no apoio a bandeiras transfóbicas. “Enquanto artista, se posicionar é ser político e muitas vezes o discurso dela abraçava mais o lado do opressor do que o do oprimido. A arte não é neutra”, afirma a performer.

*Fernando preferiu não identificar sobrenome.

Confira também: Maria Léo Araruna reflete sobre empoderamento de pessoas trans

 

Por Beatriz Castilho
Supervisão de Katrine Boaventura

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