Ser nômade é não ter uma casa fixa, mudar-se constantemente de lugar. Luisa Moraleida, 28, se define como nômade. Em 2018 ela virou, sem perceber, essa constante viajante.
Quando conta sobre sua trajetória, as pessoas esperam que Luisa diga em qual momento houve o ‘estalo’, a repentina decisão de largar tudo e mochilar por aí. Mas ela explica que não é bem assim. Encontrar seu caminho foi um processo natural. Ela só tinha que começar por algum lugar.
Deixe-me ir
Sua recente formação em Jornalismo e os próximos três meses de aluguel que restavam do contrato era o que Luisa tinha. Suas opções eram assinar um contrato por mais tempo no apartamento, procurar uma nova morada ou… buscar um novo rumo.
Luisa Moraleida tinha um irmão no Canadá, uma amiga no Peru e um amigo na Califórnia. Comprou uma passagem apenas de ida, pegou seus 12 mil reais guardados (o equivalente a três mil dólares) – que teriam que durar o ano inteiro -, arrumou apenas uma mochila e foi. Por que não iria?
Quando estava em Lima (no Peru),, na casa de sua amiga, ela leu sobre a cidade de Huaraz, no norte do país, em uma revista. Viu fotos de diversos lagos azuis e cristalinos, e imediatamente se interessou. Tinha que visitar.
Porém sua amiga não topou acompanhá-la. E ela foi sozinha. Experiência inédita para a viajante que se encontrava pelo mapa mundi. Foi sua primeira vez num hostel, onde se paga apenas pela cama e os demais espaços são compartilhados por quem passa por lá. Dividir a intimidade com desconhecidos foi algo novo mas positivo.
Lá ela abriu a ‘caixinha de pandora’, conta. Luisa conheceu um brasileiro que estava subindo a América do Sul de bicicleta, uma colombiana que estava fazendo trabalho voluntário no Peru, e outras diversas histórias de pessoas de todos os lugares do mundo.
“Eles estavam simplesmente vivendo o agora, vivendo de lugar em lugar, e eu falei: meu deus! Tem gente que de fato vive assim, sem ter casa fixa ou trabalho fixo”, explica o deslumbre. “Eu quero isso pra mim, não tem como”.
Se essa galera estava dando um jeito, Luisa também daria.
Então mudou sua rota. Fez a visita para os amigos na Califórnia e no Canadá, mas no meio do caminho fez trabalho voluntário, foi pro Alasca (Estados Unidos), para Bahia e para o México.
Assim como Cartola cantou, Luisa pediu para ir, precisou andar. Foi por aí para se encontrar.
Reinvenção
Ser nômade é viver o imprevisível. Dormir num lugar e na próxima noite em outro. Se conhecer, se adaptar. Todo dia é uma nova emoção. Todo dia é uma coisa diferente. Não existe monotonia.
Mas a psicóloga Sandy Karon explica que coisas ruins também acontecerão. A solidão é possível. Se sentir sozinho, mal, perdido.
Luisa acredita que esse processo é importante porque, na solidão, o vazio e o silêncio ganham espaço.
“Eu sinto que nós, como seres humanos, estamos constantemente tentando preencher o vazio como se ele não fosse natural, como se ele não pudesse ser positivo”, conta a mochileira.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/IMG_0238-1024x576.jpg)
Ela recorda que alguns dos seus processos de solidão são de fato sofridos, mas outros a ajudam a aflorar a verdade. Essa quietude foi muito importante para Moraleida na construção de pensamentos e personalidade.
Ninguém gosta da solidão, mas ela a acha necessária. Esse sentimento acontece de tempos em tempos, ainda mais nessa vida de constante viajante.
Luisa aprecia esses momentos, e os reinventa na solitude para se enxergar, colocar uma lupa nas coisas em que não estava prestando atenção.
É como Sandy Karon disse:
“Todo ser humano tem a capacidade de se reineventar”.
Além do eco do vazio
A solidão pode não ser a única barreira nesse caminho infinito.
A possibilidade de imprevistos e desafios como consequência de um estilo de vida cheio de imprevisibilidades é uma realidade para os que pertencem ao mundo inteiro.
Segundo a psicóloga, ter uma construção psicológica para lidar com esses eventos, e entender os decorrentes pensamentos que podem permear a mente é uma necessidade.
Problemas com nativos, com pessoas de poder, com o governo, ou até com questões de vivência, moradia e necessidades básicas, podem ser alguns dos empecilhos.
Os viajantes podem até perder o senso de comunidade e pertencimento, explica Sandy sobre esta situação e os sussurros do pensar, que podem provocar até uma depressão.
Desistir não é opção
Luisa diz não tem pensado nos obstáculos que poderiam aparecer nessa trilha, que pode virar labirinto a qualquer momento.
A cada ano, novas “dificuldades” aparecem, mas ela não gosta da palavra. Foram desordens e desafios, que aconteceram no momento em que ela precisava e estava pronta para receber,
No seu primeiro ano como mochileira, 2018, ela ficou sem dinheiro. Foi roubada no Canadá. Nos anos seguintes, foi vítima de assédio sexual.
No maior Estado dos Estados Unidos, o Alasca, Luisa virou voluntária e se encontrou num acampamento com homens que não conhecia. Pupilas dilatadas pelas drogas que usavam pareciam preencher o ambiente.
Durante a noite, ela acordou sem suas calças e com um homem por cima. Sem consentimento, ele tocava suas intimidades, com a mão que mais cedo estava suja de cocaína.
Ela saiu e andou até o amanhecer, à procura de segurança. Até chegar à estrada, percorreu a floresta isolada, habitat de ursos e alces. Não encontrou nenhum.
Sua vida como nômade também já a fez morar temporariamente com um veterano de guerra esquizofrênico e alcoólatra no Havaí. Características que obviamente não eram do conhecimento dela.
Além de chegar em casa e ver um homem desacordado com garrafas de whisky nas mãos, ele chegou a entrar no banheiro enquanto Luisa tomava banho. Ela não fazia nada. Por medo. Pela falta de dinheiro. Por não ter para onde ir.
Ela escolhe por não compartilhar esses tipos de histórias para não assustar mulheres que pensam em também viver assim. Luisa não quer ser motivo de desistências e vidas privadas do caminho de infinitas viagens.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/IMG_0240-1024x576.jpg)
Inclusive, faz questão de ressaltar que uma brasileira a abrigou no Havaí, mesmo sem saber do que a mochileira estava passando. Ela pôde sair daquele lugar e ser acolhida por alguém que nem conhecia, mas exalava compaixão.
Essa é a vida do viajante, ela afirma. Desordens e desafios vêm e não existe tempo para o sofrimento. O caminho continua.
“Não foi nada que eu não teria a habilidade de contornar durante a jornada”.
Outros sufocos também vieram: ficar presa no aeroporto de Marrocos, perder passagens, ser deixada no meio da estrada de madrugada, ficar sem bateria e sem mapa num povoado desconhecido, e vários outros episódios que poderiam afetar sua escolha de continuar viajando.
Mas desistir dessa vida seria dar poder para quem a fez mal. Para Luisa, continuar viajando é uma espécie de resistência. Ela não quer ser vítima de si mesma. Ela não pode.
“Eu acho que tudo faz parte do caminho e você está sujeita a se colocar em circunstâncias como essa independente do estilo de vida que você leva. Principalmente sendo mulher.”
Construção sem lar
Luisa começou sua vida como nômade com o dinheiro guardado de vários trabalhos. Ela já tinha dado aulas de inglês e trabalhado em restaurantes. Criou cursos sobre rentabilidade e veganismo. Também vendeu todas as suas coisas, desde a geladeira até roupas e sapatos.
Ela tinha R$ 12 mil, que na época era o equivalente a, mais ou menos, três mil dólares. E fez durar por um ano.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/IMG_0239-1024x576.jpg)
Já viajando, ela criou o primeiro e-book de vários outros que teria no futuro. Nesse, ela ensinava receitas veganas para o Natal. Considerou um sucesso.
Depois, ela teve a oportunidade de trabalhar com marcas que apoiavam o trabalho dela. Começou fazendo publicidades e agora organiza viagens e mochilões com mulheres do Brasil inteiro.
Na mesma época ela criou outro e-book, A Viajante Digital. Nele, explicou como continuou fazendo dinheiro vivendo como nômade.
Andarilhas
Ajudar mulheres a conhecer a vida de viajante solo se tornou um projeto concreto. Feito de forma espontânea, Luisa nem sabia as dimensões que tudo tomaria.
Pelo Instagram, onde ela sempre compartilhou suas experiências, muitas mulheres tentavam tirar dúvidas sobre como começar a mochilar. Como não ter medo de viver viajando? Como é ser brasileira em outros países? Como se manter? Como fazer tudo sozinha?
Ao invés de só explicar suas perspectivas pessoais por meios de vídeos, Luisa quis levar as mulheres para mostrar na prática. Para que elas tirassem suas próprias conclusões.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/IMG_0242-1024x964.jpg)
O ‘Luh Pela Estrada’ as leva para passar dez dias no México. Ou dez dias na Bolívia. Uma semana na Bahia, talvez? Inclui ioga e meditação. Uma viagem em busca do autoconhecimento. Tudo focado no feminino.
Mas não foi o suficiente. As mulheres já viajantes também pediam, sem saber, pelo seu espaço. O ‘Clube das Andarilhas’ nasceu com essa demanda de partilhar ideias todas que experienciam o mesmo.
Muitas entraram em contato com Luisa. Elas afirmavam se identificar e se sentir sozinhas.
Mas não era possível levar todas para viajar.
Então ela criou uma comunidade digital, onde essas mulheres podem se encontrar. É um lugar para trocas de ideias entre pessoas que estão alinhadas e com pensamentos parecidos.
É um clube não só sobre viagens, mas sim para qualquer assunto relacionado ao autoconhecimento. Trocas de vivências, cultura, arte, história e política acontecem, mesmo num formato não presencial.
Marcas de memórias
Viagens com mulheres de todo o Brasil certamente marcaram e marcam a jornada da Luisa. Mas são inúmeras as experiências que ficam para sempre nas memórias pelo impacto.
Ela conta que em Cuba, ao andar sozinha pelas ruas de Havana, uma mulher mais velha a convidou para entrar na sua casa. Sem receio, Luisa entrou.
O contato com a realidade cubana foi cru e cruel. A senhora não tinha geladeira, apenas um fogão com duas bocas. Onze pessoas moravam ali sem nenhum sistema sanitário.
A mulher era a única que trabalhava. Pegava latinhas para receber 14 dólares por mês. Mesmo assim ela fez comida para Luisa. A então vegana aceitou o arroz com ovo com gratidão.
A nômade viu de forma genuína o que é o povo cubano. Isso a fez questionar, mudar hábitos e maneiras de pensar.
Morar em uma comunidade autossuficiente por um mês também foi uma experiência impactante que Luisa escolheu contar.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/IMG_0237-1-1024x576.jpg)
Ela viveu com outras vinte e cinco pessoas. Sem banheiro, sem ducha, sem vaso sanitário e tampouco uma geladeira.
Todos os alimentos vinham da horta e os remédios eram naturais. Com uma dieta totalmente vegetariana, tudo o que usavam vinha da natureza. Usavam os ovos mas não comiam as galinhas.
Foi um mês morando numa cabana de madeira, tomando banho no lago, fazendo suas necessidades na mata e cozinhando para a comunidade inteira.
Um lugar sem líder, não existiam obrigatoriedades. Mas se incluir e contribuir na vivência era algo natural.
Luisa também já passou dez dias numa comunidade no Acre e dois meses como voluntária num abrigo de pessoas em situação de rua no Alasca. São diversas experiências.
Além de engrandecedoras, todas serviram e servem para abrir portas e a fazer viver muito mais.
Amar de longe
São muitas as pessoas e ambientes com os quais a Luisa tem contato. E a psicóloga Sandy explica que, independente do estilo de vida, estar em um ambiente social é uma necessidade humana.
Viver viajando ensinou a mochileira a escolher melhor as pessoas que estão ao seu lado. As amizades feitas nos últimos anos foram mais profundas e sinceras do que qualquer outra.
Seres de diferentes países e diferentes idades aparecem e reaparecem na vida de Luisa. Ela conta que existem amigas que encontra de ano em ano, em diferentes continentes. Todas muito queridas. A presença total de amizades não é uma necessidade.
“A pessoa que faz questão é a que vai sentir sua falta quando você está longe e vai querer seu abraço quando você voltar””
Viagem Infinita
Todos os desafios, desordens e a solidão não conseguem tirar o amor pela viagem infinita que Luisa faz desde 2018.
Quando ela começou, não tinha dimensão e consciência do quão seria transformador internamente poder ver o externo do mundo.
A sua maior motivação para seguir a estrada é seguir fazendo o que faz. Existe a necessidade de reduzir a ignorância.
O nomadismo parece coisa de louco, fora do normal. Mas Sandy se questiona, o que é de fato o normal?
O certo é viver numa sociedade na qual todo dia você deve acordar cedo e trabalhar para ganhar o mínimo? Isso é o normal? Ou apenas o esperado?
“Os nômades são pelo menos pessoas que estão em busca e tiveram pelo menos a coragem de se movimentar”, diz a psicóloga sobre os mochileiros.
E toda essa coragem de se movimentar, sair para viajar, ir por aí a procurar, fez Luisa aprender uma das coisas mais preciosas para ela. Desaprender.
Ela desaprende conceitos não só sobre a vida “normal”, mas também sobre cultura, sobre dinheiro, sobre relacionamentos. Sobre liberdade. Sobre quem ela é.
Luisa volta ao Brasil todo ano, mas toda vez vem completamente diferente. Ela sempre encontra partes suas que estavam perdidas ou que nem sabia que existiam.
A vida na estrada é um eterno desencontro. “Você vai questionar se você ainda é, quem você já foi, e se o que você achava que era, realmente era você”, explica ela.
É uma busca incessante. Não só pelo mundo mas principalmente sobre o mundo interno. O pequeno mundo que te cerca.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/IMG_0241-1024x819.jpg)