Eram 6h da manhã e um sereno leve caía sobre Brasília. Um nascer do sol ameaçava erguer-se no horizonte. O Lago Paranoá recebia, rotineiramente, em meio a remadas fortes e sincronizadas, a paratleta Aline Furtado em seu treinamento intenso para remar contra o tempo e alcançar a classificação para as paraolimpíadas de Paris.
Faltava menos de um ciclo olímpico, em quatro anos, sem treino e sem conhecimento algum sobre a modalidade que iria praticar, a canoagem. A ex-diretora do ensino básico na Escola Classe Aspalha, que é pública, localizada no Núcleo Rural do Lago Norte, assumiu, após mais de 20 anos de seu acidente de carro, a identidade como pessoa com deficiência.
A professora havia descoberto, desde os 6 anos, o sonho de ser educadora. Aos 40, resolveu abraçar o esporte quando ninguém mais acreditava. Ela quer ser medalhista olímpica e prometeu que vai se esforçar para ao menos subir ao pódio com a medalha de bronze na Olimpíada de Los Angeles, em 2028.
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Reconhecimento
Aline Furtado teve um acidente de carro aos 18 anos de idade em Brasília e isso redefiniu o rumo de sua vida. Uma lesão medular incompleta a deixou com sequelas que ela passou décadas tentando ignorar. “Eu fazia de tudo para ser vista dentro de um padrão de normalidade”, confessa. Ela relembra uma época em que evitava, a qualquer custo, se reconhecer como uma pessoa com deficiência. “Eu não gostava de ser vista como uma pessoa com deficiência. Não me enxergava dessa forma.”
Essa resistência, no entanto, cobrou seu preço. Aline não se permitia encarar o fato de que seu corpo não funcionava da mesma forma que antes. “Eu coloquei na minha cabeça, desde os 18 anos, que o meu corpo não podia ser falho. Eu batalhei para parecer normal porque achava que tinha que funcionar como todo mundo esperava”, explica.
Foi apenas em 2021, duas décadas após o acidente, que Aline finalmente teve um “choque de realidade” durante uma consulta de reavaliação no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. “Foi um médico que me abriu os olhos. Ele me disse que eu precisava conviver com os meus pares, com pessoas que também tinham deficiências. Naquele momento, percebi o quanto eu vinha me escondendo”.
Esporte como ferramenta
Foi nesse mesmo ano, em 2021, que o esporte da paracanoagem entrou na vida da professora. Aline, que chegou ao Sarah com o desejo de se tornar corredora, ouviu de seu médico que essa atividade poderia prejudicar seu corpo. “Eu queria correr, ser uma corredora de rua. Mas ele foi claro: ‘Aline, você não pode correr nem da portaria do Sarah. Isso vai sobrecarregar seu tornozelo e sua coluna’. Foi aí que ele sugeriu a paracanoagem, uma modalidade que eu desconhecia totalmente.”
Aline hesitou no começo. No entanto, incentivada pelo avaliador, ela decidiu experimentar, embarcando numa jornada incerta. No Lago Paranoá, entre remadas e quedas, Aline começou a enfrentar a realidade de seu próprio corpo.
Paulo Salomão, seu treinador, teve um papel crucial nesse processo. Percebendo a insegurança de Aline, ele ofereceu uma abordagem que a libertaria de tanta exigência. “Você presta muita atenção no que não funciona no seu corpo. Eu estou muito mais interessado naquilo que funciona”, disse. “Foi ali que comecei a focar no que eu podia fazer. Eu não precisava ser refém do que o meu tornozelo ou o meu pé não faziam.”
Aula
Com o tempo, Aline também percebeu o impacto dessa autoaceitação na maneira como era vista no ambiente escolar. A resistência em se identificar como uma pessoa com deficiência refletia-se em suas atitudes e até na percepção de colegas e alunos. Juliana Pereira, atual diretora da Escola Classe Aspalha, lembra de como a mudança em Aline afetou o ambiente ao seu redor. “Durante o período de gestão até 2022, ela conciliava os treinos, vida pessoal e o trabalho na escola. A paracanoagem veio mais uma vez para salvá-la, e todos, colegas e alunos, percebiam o impacto positivo disso.”
Essa mudança interna, trazida pelo esporte, afetou tanto sua visão pessoal quanto a de quem estava à sua volta. Hoje, Aline não só aceitou suas limitações, mas também abraçou o papel de inspiração para seus alunos dos anos iniciais de alfabetização, muitos deles vivendo o desafio da inclusão. Sendo alguns pertencentes aos grupo de jovens com deficiência, a exemplo disso, alguns dos estudantes presentes e atendidos pela Escola Classe Aspalha apresentam Transtornos do Espectro Autista (TEA).
“As Paralimpíadas são a representação máxima da inclusão. Você vê todas as pessoas aproveitando, todos são vistos pela sua dignidade e pelo que podem alcançar. Isso é o que tento passar para meus alunos. Quero que eles vejam que a deficiência não limita, apenas define o que podemos fazer de maneiras diferentes”, diz a ex-pedagoga, Aline Furtado.
Rumo à Los Angeles
Depois de viver o sonho das Paralimpíadas de Paris, Aline voltou ao Brasil com uma nova missão: dedicar-se inteiramente à carreira de paratleta. Sua participação em Paris não só foi um marco pessoal, mas também reforçou seu propósito de inspirar a inclusão por meio do esporte. “Estar lá foi como ver cada esforço recompensado”, conta.
Durante a competição KL3, Aline Furtado fez o tempo de 52.66 segundos, o que resultou na quinta colocação da semifinal e que garantiu vaga para a Final B, onde finalizou com 1:09.54 segundos, classificando-a em quarto lugar.
Agora, com o foco direcionado para as Paralimpíadas de Los Angeles em 2028, Aline se prepara para o futuro, onde viverá exclusivamente como atleta, amparada pela Bolsa Atleta de R$2.000 mensais. Essa ajuda financeira, embora modesta, representa um passo importante para que ela possa concentrar-se totalmente em treinos intensos e competições.
“Los Angeles é o próximo desafio, e minha mente já está lá. Cada braçada que dou agora é pensando nesse próximo objetivo”, compartilha. Para Aline, essa nova fase marca não só a continuidade de sua trajetória, mas também um compromisso em levar a representatividade e o espírito de inclusão às próximas gerações, mostrando que o esporte pode transformar vidas e redefinir limites. Juliana Pereira conta ter orgulho de sua amiga, “Aline para mim é um exemplo… uma atleta de alto rendimento que representa nossa cidade e país. Uma fonte de inspiração, pois os talentos estão aqui, muitas vezes desconhecidos.”
Por Ana Beatriz Cabral Cavalcante
Supervisão de Luiz Claúdio Ferreira