A apicultura oferece um campo fértil em meio à escassez da pandemia, mas é preciso cuidar do Cerrado

O orvalho ainda é fresco quando Bruno levanta para mais um dia de trabalho. Chega a aurora, os galos tecem a manhã, o sol nasce e os pássaros continuam a singela sinfonia diária. Longe da cidade grande, onde o medo apavora diante da pandemia do coronavírus, tudo parece seguir um fluxo natural e tranquilo. São seis da manhã, Bruno olha pela janela, vê o grande quintal verde de sua chácara e sente o reflexo do sereno ainda fresco lá fora. Aqui não tem medo. Informação sobre o vírus só passa pela TV, que raramente está ligada. Neste pequeno pedaço de terra de sete hectares no Lago Oeste, (Brasília – DF), a natureza performa sua ordem. Bruno sai de sua casa e se integra ao ambiente.
Durante a pandemia do coronavírus, ele não parou de trabalhar. Na verdade, o negócio prosperou ainda mais e Bruno teve que readaptar a rotina estabelecida há quatro anos. Mas, para ele, há um lado doce diante da crise.
Ele sai em direção ao apiário, vestindo o macacão branco, grande e quente de apicultor. São 150 colmeias em sua produção caseira, cada colmeia com cerca de 50.000 ou mais abelhas. Bruno conta que recentemente transferiu 50 colmeias para a propriedade de um amigo, que lhe fez o pedido para possibilitar uma maior polinização de sua plantação, cuja produtividade pode aumentar em até 70%, segundo o projeto “Polinizadores do Brasil”.
Para Bruno Uchoa, o sentimento de cultivar abelhas é gratificante em diversos sentidos. ”Primeiro, porque é ao ar livre, estou respirando um ar puro, no meio do verde, ouvindo os passarinhos e vendo animais silvestres. Quando você abre uma colmeia, você sente o cheiro que sai de dentro. É um cheiro maravilhoso, cheiro de cera, mel e própolis. O barulho traz uma calma, parece que tudo conspira para o bem estar do ser humano, e o mais interessante é que a energia colocada para criar as abelhas parece que tem retorno delas em dobro. Isso porque é algo natural e cria um vínculo muito grande”.
O apicultor completa que ao trabalhar com abelhas, nasce também uma vontade natural de plantar. ”Porque a gente sabe que as abelhas precisam das plantas. Por mais que elas visitem centenas de flores, eu planto pra facilitar o trabalho delas. Então, a pessoa é beneficiada com todo esse contato com a natureza, transcende apenas as abelhas, sentimos o querer de cuidar, preservar e fazer parte do ambiente”.

Bruno tem 36 anos e é formado em artes visuais, área em que começou sua carreira como professor na Secretaria da Educação, mas se desencantou pelas condições precárias de salário, R$2.500 mensais. ”Eu estava buscando uma atividade pra fazer. Meu contrato na Secretaria de Educação tinha acabado e neste momento, a recessão estava bem grande. Eu tinha um dinheiro guardado e comecei a buscar opções de investimentos”.
No ano de 2016, Bruno havia começado a cultivar orgânicos em sua chácara e percebeu a necessidade de maior polinização para aumentar a produtividade da plantação. ”Decidi começar a cultivar abelhas nativas, sem ferrão. Meus amigos começaram a me perguntar se eu tinha mel pra vender. Era tanta gente que eu fiquei cismado com aquilo. Então eu vi uma oportunidade”.
Como já havia também iniciado o cultivo de abelhas com ferrão, as europeias, Bruno decidiu investir mais tempo e dinheiro no cultivo dessas abelhas, que produzem maior quantidade de mel do que as nativas. ”Passei a vender o mel para os amigos e para os parentes, até que chegou um momento que eu estava vendendo pros amigos dos amigos. Daqui a pouco fui convidado para participar de eventos e palestras”. Ao ser recebido de portas abertas naquela profissão, ele decidiu parar de plantar hortaliças e embarcar na grande demanda de cultivar abelhas. ”Eu nunca tinha sentido essa energia próspera em nenhum ofício que eu exerci”. Hoje, ele tem uma empresa familiar cuja produção é de uma tonelada de mel por ano, além de outros produtos apícolas. Bruno trabalha com sua esposa, Luciana, o filho mais velho, João Ribeiro, de 14 anos, que ajuda em casa e a Iana, de três anos, que colabora fazendo a degustação do mel.
Uma safra inesperada
O calendário de atividades apícolas varia de acordo com as estações de cultivo e colheita do mesmo meio. Em junho, os apicultores estão fazendo mais visitas aos apiários para manejo e preparo para a safra de outubro.
A pandemia do coronavírus tem obrigado milhares de trabalhadores a passarem dificuldades em seu ramo, seja por demissão, redução de salário, falência, entre outros. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram 12,9 milhões de desempregados durante o primeiro trimestre de 2020. Em meio a uma crise sanitária e econômica sem precedentes, a apicultura se mantém como um pote de mel em meio à amarga realidade.
”Antes da quarentena, a gente vendia três litros de própolis por mês. Na primeira semana da quarentena a gente vendeu 20 litros”, conta Bruno, que teve que encomendar o produto para colegas apicultores para poder atender a demanda. Segundo ele, não foi só o própolis que teve um aumento exponencial das vendas, mas também outros produtos apícolas como o mel, pólen e a geleia real.
Ele testemunha que há agora maior busca por produtos naturais e saudáveis. ”O que mudou foi que a demanda por todos os produtos da manutenção da saúde cresceram de maneira exponencial. Mesmo os apicultores mais antigos relataram que nunca viram isso acontecer”.
O nutricionista Lucas Catta confirma os benefícios desses produtos apícolas para a saúde. ”Tratam-se de produtos genuínos, naturais, que possuem uma densidade nutritiva muito alta. O própolis, em especial o alcoólico, pode ser inserido em uma dieta saudável para auxiliar na melhora da imunidade através de propriedades anti-inflamatórias, anti bactericidas e antioxidantes”. Porém, Lucas alerta que o uso do própolis, assim como o de outros produtos apícolas, deve ser aliado a uma alimentação e rotina saudáveis. ”O própolis isoladamente não faz milagres, deve ser usado em um contexto”.
Lucas afirma que o consumo diário do mel pode ser uma prática saudável, desde que seguidas as recomendações: ”O ideal é que o mel entre em lanches acompanhado de fibras, proteínas e gorduras, de forma que o seu alto índice glicêmico seja amenizado ao ser ingerido, principalmente pelos diabéticos”, aconselha o nutricionista.
Além dessa observação, ele ressalta que o mel seja usado com moderação: uma colher de chá ou de sopa a depender da quantidade do alimento. Lucas afirma que o mel pode ser utilizado como uma estratégia para substituir o açúcar, mas que o ideal é que a pessoa se habitue com o sabor natural do alimento.
Pensando além da quarentena, Bruno acredita que quando as pessoas perceberem os benefícios dos produtos apícolas, vão se manter fiéis a eles. ”Na medida que eu fui trazendo esses produtos para o meu uso diário e vendo o resultado, eu não parei mais”.
Guardiões das abelhas
Para Sérgio Paulata, apicultor de 58 anos, o efeito da pandemia também teve um impacto surpreendente em sua rotina habitual, o qual não foi muito distinto da de Bruno. Na verdade, agora, trabalho é o que não lhe falta. ”Com a pandemia tá sendo melhor pra gente, vendemos muito mais própolis e mel do que antes”, afirma o apicultor que trabalha no ramo há mais de 20 anos.
Ele vende seus produtos no comércio local da cidade de Formosa, onde reside há 20 anos. ”Trabalho de sábado a sábado, de domingo a domingo, quando posso, folgo uma vez na semana, mas eu acho gratificante. Abelha é um bicho tão organizado que dá gosto”, conta Sérgio.
Durante a pandemia, o expediente está ainda maior. Acorda às seis e, antes da sete, segue na estrada rumo aos apiários. A maioria deles ficam até 200 km de distância de Formosa, em Ceilândia, Planaltina, São João d’Aliança e Água Fria.
Vai de carro, leva tudo o que precisa para ficar o tempo necessário, geralmente até às 15h. ”Dentro do macacão fica muito quente, então não tem como ficar o dia inteiro. A gente sua muito e fica exausto.” Durante a época de safra, quando chega em casa, Sérgio vai trabalhar com o mel colhido até duas da madrugada. ”É prazo de pouco tempo, dois meses, mais ou menos”. Sérgio é autônomo e faz esse trabalho para as 200 colmeias que cultiva.
Ele conta que já teve apiários no DF, mas desistiu pela alta contaminação de agrotóxicos advindo das monoculturas. O agrotóxico é como um coronavírus para as abelhas. Quando as operárias, abelhas responsáveis pela polinização, entram em contato com a substância tóxica nas lavouras, contaminam-se e acabam por espalhá-la por toda a colmeia. Quando isso acontece, não há cura. O ”vírus” é fatal para as cerca de 50.000 abelhas de uma só colmeia.
”É difícil no DF, quase não tem mais cerrado. Os apicultores estão migrando para Goiás. Tem que ter natureza para cultivar abelha. Fico ruim quando vejo o desmatamento que o pessoal faz. Só faz é destruir e destruir…”, lamenta o apicultor que teve de retirar seus apiários recentemente de uma propriedade em Água Fria, Goiás, que será desmatada e utilizada para monocultura.
O diretor do Sindicato dos Apicultores, Sérgio Farias, confirma que a cultura apicultora no DF ainda é fraca, principalmente por conta da monocultura. ”Nos arredores, há grandes quantidades de soja, milho. Então, os apicultores estão partindo para produzir em outras localidades. Segundo ele, o grande impeditivo são os agrotóxicos usados nas lavouras, que matam as abelhas. ”Onde há grande produção de monocultura não pode existir apicultura”, esclarece o diretor.
Mel de ouro
Sérgio Farias também é um apicultor entusiasmado com o ofício. ”O modo de organização, convivência, trabalho e resposta das abelhas me fascinam. Você cuida delas e a resposta é que elas te dão mel. Você colhe o mel e parece ouro, vida. É o alimento mais perfeito que tem, é um alimento precioso”, conta Sérgio deslumbrado.
Ele ressalta algo que considera pouco conhecido pelos brasilienses: o grande valor do mel aqui produzido tendo em vista o panorama nacional. Apesar do DF não ser reconhecido por ter uma grande produção de mel, a região é considerada possuidora do melhor mel do país, segundo premiações do Congresso Brasileiro de Apicultura (CBA). O DF já esteve sete vezes entre os primeiros colocados.
”Estamos brigando para que a nossa produção do DF seja valorizada e o apicultor local prestigiado. Nosso mel (brasiliense) já foi premiado diversas vezes pelas condições climáticas e de flora. O mel do cerrado é maravilhoso e estamos lutando para que isso seja reconhecido, que as pessoas saibam e priorizem a produção local”, afirma o diretor.
Segundo dados da Associação dos Apicultores (Api-DF), são 40 toneladas de mel por ano, gerando uma média R$1,6 milhão anual, mas que não atende nem 10% da demanda local. A maior parte do mel vem de Minas e Goiás. A região do Gama é a maior produtora do DF, com 37% da participação na produção, seguida de Planaltina, com 31% e Ceilândia, com 19% da produção. Sérgio conta que a maior parte dos 300 associados cultivam abelhas como hobby e, apenas 100 deles trabalham no ramo profissionalmente e geram uma alta produção.
Sérgio explica que uma das funções da Associação, na qual é vice-diretor, é proporcionar cursos que formem mais apicultores. ”Nós, da Associação, estamos aumentando a quantidade de cursos profissionalizantes para estimular o crescimento do número de apicultores. No ano de 2018, formamos mais de 100 apicultores e a maioria era jovem, entre 25 a 30 anos”. Segundo ele, criar abelha dá mais dinheiro do que boi, já que a produção de abelha é crescente e constante, já a de gado pode ser vendida apenas uma vez. Além disso, não é necessária uma grande infraestrutura para a apicultura, fazendo desse ofício um verdadeiro pote de mel.
Por Júlia Morena
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira