Ouvia-se um ensurdecedor barulho de buzinas acionadas por centenas de carros em toda cidade, uma euforia tomou conta da Esplanada e a polícia reprimia a população de todas as formas, enquanto o General Newton Cruz chicoteava os carros em uma tentativa desesperada de conter a população. Em Brasília, durante todo o primeiro semestre de 1984, “gritos” em alto e bom som de pessoas que estavam fartas do regime militar e queriam mudanças urgentes eram abafados pelo Governo. Vota-se a Emenda Constitucional Dante de Oliveira, dia 25 de abril do mesmo ano, em meio a muita luta e expectativa dos brasileiros a favor das eleições diretas para Presidente da República. Ela é rejeitada na Câmara dos Deputados. Na “prorrogação” da votação da Emenda, os brasilienses são finalmente ouvidos por todo o país, no Grande Comício de 1° de Junho, na Torre de TV. 30 anos após o dia da votação, comemora-se o aniversário das “Diretas Já”.

Extremamente importante para redemocratização do Brasil. As Diretas Já, movimento que ocorreu não só na capital nacional, mas em várias cidades do país, levou às ruas o maior número de manifestantes da história brasileira, que entoavam palavras de ordem e frases como: “O povo na rua derruba a ditadura” e “1,2,3,4,5 mil queremos eleger o Presidente do Brasil”. Ouvia-se um coro nacional.
Os líderes do movimento relembram como foram aqueles dias em Brasília que marcaram história . Fernando Tolentino, um dos líderes da Comissão Suprapartidária Pró-Diretas pelo PMDB no DF e atual Diretor-Geral da Imprensa Nacional conta que os principais locais de realização dos comícios, manifestações públicas em torno de um ideal político, no Distrito Federal eram no Setor Comercial Sul, Conic, Gama, Ceilândia, Taguatinga, Sobradinho, Planaltina e na Torre de Tv. Além de contar com o apoio da maioria da sociedade brasileira, faziam parte também do movimento partidos políticos, grupos estudantis, entidades diversas, como a CUT, OAB e os sindicatos.
Esses comícios, costumavam ser bem organizados e sempre havia várias atrações culturais, o grupo Liga Tripa, de Brasília, e um dos maiores sanfoneiros do Brasil Sivuca, de Ceilândia eram presenças garantidas. Também ocorreram diversas manifestações espontâneas, o passeio ciclístico em prol das Diretas é um exemplo. Artistas, cantadores e pintores também reivindicavam através de sua influência e da arte. Aspessoas respiravam o clima da campanha, nas faculdades, no trabalho, no ponto de ônibus, em todos os lugares.
O radialista Walter Lima, que na época trabalhava na Rádio Nacional e na Rádio Alvorada, foi o locutor das multidões, esteve à frente no palanque apresentando todos os comícios que aconteceram em Brasília. Walter lembra que as pessoas de outros estados tinham uma visão errada da capital nacional, achavam que era uma cidade mais administrativa, que o povo era desinteressado da política. “Pelo contrário, éramos guerreiros, sabíamos o que queríamos e tínhamos movimentos sociais bastante atuantes, eu me sentia honrado ao passar o microfone para os meus ídolos discursarem, figuras como Ulisses Guimarães e Teotônio Vilela”, conta Walter.

O historiador e cientista político, Kleber Chagas Cerqueira, que também teve participação nas manifestações quando cursava a UNB, explica esse fenômeno, “A caixa de ressonância em Brasília era maior por ser a capital e a sede do poder”. De acordo com o Kleber o comandante militar do Planalto, General Newton Cruz, tentou de todas as formas intimidar os manifestantes. O que acontecia em Brasília era velado tanto pelo governo quanto pelos grandes jornais da época, inclusive a polícia foi mais violenta no DF do que nas outras cidades.
Brasília continha várias particularidades, além de não poder votar diretamente para Presidente, inerente a todo o país, somente aqui não havia qualquer representatividade política, quem nomeava o Governador era o próprio Presidente do país. Também, apenas no DF e em dez municípios de Goiás, inclusive Goiânia, foram decretadas as Medidas de Emergência.
Emergência em Brasília
Antes mesmo das Medidas de Emergência serem estabelecidas em Brasília já se vivia um clima de pré-emergência. A operação da polícia denominada Operação Canguru mobilizou todo o efetivo da corporação, cercando as vias de acesso à capital e efetuando revista em todos os motoristas. Na época, a Polícia Militar garantiu que era uma operação de rotina e nada tinha haver com o receio de que a cidade viesse a ser ocupada por manifestantes políticos, que teriam o intuito de pressionar o Congresso a aprovar a Emenda Dante de Oliveira.

No dia 19 de abril de 1984, antecedendo a votação da Emenda prevista para o próximo dia 25 o Presidente João Figueiredo determinou as Medidas de Emergência, segundo a Constituição de 1967, alterada pela emenda de 1979, vigente no período. Essas Medidas permitiam ao Presidente suspender as liberdades democráticas sempre que julgasse a presença de alguma ameaça a ordem pública, proibindo toda manifestação no território aonde foram decretadas.
A primeira providência do General Newton Cruz, executor das Medidas, foi mandar colocar barreiras policiais em todos os acessos do DF para impedir a entrada de manifestantes a favor das Diretas. Nas rodovias, a maioria dos veículos passava por uma minuciosa revista e no aeroporto de Brasília todos os passageiros eram obrigados a se identificar, inclusive parlamentares.
Fernando Tolentino recorda que a real intenção era impedir, durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, a pressão e o apoio do povo que iria manifestar na frente do Congresso Nacional. A Comissão a qual ele fazia parte programou um grande comício na Torre de TV para o dia 24, que foi impedido de acontecer pelas medidas de emergência. O grupo Suprapartidário resolveu então conclamar a sociedade brasiliense para um buzinaço,panelaço e piscar de luzes no dia da votação e muita gente aderiu ao movimento.
Prevista para ficar vigente até 17 de junho do mesmo ano, já se comemorava o sepultamento das medidas em 4 de maio . Brasília estava livre novamente. Eram palavras de ordem, canções políticas, foguetes, hino nacional para todo lado.
Alegria pouco vista desde a votação do dia 25 de abril, em que a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada por não obter a maioria qualificada de dois terços exigidos para alterações constitucionais, embora os votos favoráveis à aprovação fossem em maior número.
A sensação de decepção tomou conta do país (80% dos brasileiros segundo pesquisa realizada pela Folha de São Paulo condenava a rejeição da Emenda), mas o mais incrível é que não se via um sentimento derrotista, “a luta continua, a luta continua”, era o espírito que unia a Nação. E em torno desse espírito foi organizado o Grande Comício do dia 1º de junho, o mais importante da capital do país.
Grande Comício de 1º de Junho
Com o grito preso na garganta pelas medidas de emergência que impossibilitaram o Grande Comício do dia 24 e pensando no renascimento das Diretas Já, Brasília viveu um dos dias mais bonitos da sua história.
A Torre de TV foi o palco. Walter Lima o apresentador do comício. Estiveram presentes vários políticos, entre eles, Ulysses Guimarães (PMDB), Tancredo Neves, Brizola e artistas, como Bruna Lombardi, Fafá de Belém e Belchior. O toque musical foi dado pela marcante Sinfonia das Buzinas e até o boneco de Teotônio Vilela, símbolo das manifestações fez parte do evento.
É notável para o apresentador que os políticos célebres hoje, naquela época não chegavam à linha de frente do palanque. Via-se o Lula mais atrás e o Fernando Henrique Cardoso mais atrás ainda, eles estavam chegando. Tolentino reitera dizendo que aqui ao contrário das outras cidades primeiro discursavam os políticos mais importantes depois os outros, porque tinham que aproveitar a oportunidade deles estarem na capital.
O Grande Comício de Brasília foi o único e último comício Pró-Diretas depois da votação da Emenda Dante de Oliveira. Como o objetivo não foi alcançado na Câmara dos Deputados o movimento rachou em nível nacional. Uma parte das lideranças do movimento, minoria, acreditava que deveria insistir na luta por eleições diretas e a outra parte, maioria, passou a crer na Aliança Democrática para sair do regime militar, ou seja, eleger Tancredo Neves por meio dessa Aliança pelo Colégio Eleitoral. Tolentino relata que a posição do Comitê Suprapartidário em Brasília foi continuar lutando pelas Diretas e fazer o comício para estimular outras manifestações no país mesmo após a votação. Apesar de ser auto gerido e auto financiado, sem a estrutura e recursos que tiveram os comícios de outros estados, a festa foi grandiosa, recebeu aproximadamente 20 mil pessoas, “não se tinha noção naquele momento de sua importância”, lembra Walter lima.
O comício mais o buzinaço e a mobilização em torno da campanha tornaram mais factível eleições em Brasília. Foi a partir do buzinaço que o Professor da UnB e Maestro Jorge Antunes, teve a ideia de organizar essas buzinas em uma sinfonia e apresentá-la durante o Grande Comício, assim foi criada a Sinfonia das Diretas.
A imprensa divulgou os ensaios e cerca de 300 pessoas compareceram com os seus automóveis. “Era muito emocionante ver a construção da sinfonia, muita gente sentia-se até músico, ao comando da minha regência”, recorda Jorge Antunes.
Marcações com tinta branca foram pintadas no chão para estabelecer onde cada um ficaria exatamente de acordo com a sua nota, as buzinas foram afinadas e catalogadas, se construiu uma melodia através de notas mais fortes. Compunham a sinfonia também, um coral, um declamador, sons eletrônicos e o conjunto instrumental. Musicada por Jorge Antunes, teve textos do jornalista e poeta Tetê Catalão. Para que todos pudessem cantá-la foram distribuídas cópias aos manifestantes, proclamando o rompimento do silêncio e do acomodamento.
A Secretária de Segurança Pública do DF chegou a advertir os organizadores do comício sobre o uso prolongado de buzinas, considerado infração, mas não chegou a impedir de fato a sua realização. Jorge Antunes cita que no início da apresentação dois fusquinhas azuis desconhecidos chegaram querendo participar do ato, e um dos organizadores, que já havia sido preso, o alertou que eram agentes do CNI, espiões do governo. Ele achou estranho, mas deu instruções para que os deixassem participar, e a Sinfonia aconteceu então com dois agentes infiltrados do governo buzinando, ou seja, participando do protesto.
Outro fato inesperado foi o botijão de gás do pipoqueiro estourar no meio da exibição, abrindo um clarão no meio da multidão repentinamente mas que não acarretou nada grave nem houve feridos.
A memorável sinfonia das buzinas encerrou ao som do Hino Nacional, “a reação do público foi maravilhosa, muita gente chorava e eu senti uma sensação ótima”, descreve Antunes.
O Grande Comício de 1º de Junho mostrou aos políticos nacionais e a todos os brasileiros que o povo em Brasília também tinha interesse e participação política, ainda que a campanha não tivesse recomeçado e o foco voltado para a Aliança Democrática.
O comício da Torre foi o coroamento da campanha, considerado à época o fato político mais importante do país depois da votação da Emenda Dante de Oliveira. Foi daí que saiu a palavra de ordem “Por uma nova Constituinte”, que se concretizou em 1988.
Diferenças em relação a protestos de junho
O cientista político Kleber Chagas vê diferenças entre as manifestações das “Diretas Já”, de 1984, e os protestos de junho de 2013. Segundo ele pontua, no ano passado, houve o primeiro movimento de massas sem a participação de partidos políticos ou sindicatos convocando. “A participação deles nas Diretas foi fundamental e no impeachment do Collor também foi decisiva, vimos o ‘espontaneísmo’ que a internet proporcionou”.
Um dos líderes do movimento pró-diretas já, Fernando Tolentino, pondera que a informação demorava a chegar às pessoas. “Os jovens corriam atrás da informação, hoje é ela que vai até o jovem”. Fernando Tolentino lembra que durante a ditadura vivia-se um regime de exclusão, as pessoas não sabiam o que estava acontecendo. Havia censura, prisões, tortura e corrupção encoberta. “Hoje as informações fluem, as pessoas sabem das coisas”.
As Diretas tinham um objetivo claro e definido. “Nas manifestações do ano passado, cada um tinha uma reivindicação diferente, era um facebook presencial, o que unia era o fato de estar juntos, cada um levantando a sua bandeira”, compara.
Por Luiza Gutierrez Costa