Relacionamento abusivo: histórias de medo e de como denunciar

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Os personagens sem nome. O que era amor vira abuso. Os sorrisos se tornam olhares de medo para um; de opressão para o outro. Os gestos carinhosos de elogios tornam-se agressões verbais, psicológicas e simbólicas.. A fuga do relacionamento abusivo em Brasília. Sem palavras. A história do filme “Cinza”, de Júlia Zakarewics, que comoveu o público em festivais de cinema na cidade (na capital e em Taguatinga) traça um roteiro semelhante ao de histórias reais. O final na vida real ninguém sabe como vai ser (é diferente da arte). Cinza é uma metáfora para esse tipo de relacionamento: doloroso, abusivo e sombrio.

Para Júlia Zakarewics, o audiovisual é um dos principais meios de comunicação e, por esse fato, é papel dessa plataforma e do artista que usa a mesma de colocar o assunto e pauta para se combater essa situação. “O cinema é um dos principais meios de comunicação. É imprescindível que ele fale sobre algo que é tão calado e tão presente no dia a dia”, diz a diretora.

Confira trecho da entrevista com a diretora Júlia Zakarewics:

Assista o filme “Cinza” na íntegra clicando aqui

Do audiovisual para o mundo real

Na vida de Kátia*, a história não é apenas uma película de audiovisual. Ela conta que atualmente participa de um relacionamento abusivo. “Eu ainda não consegui me desprender dele. Eu vivo em um ciclo e é um ciclo vicioso”, lamenta. Kátia fica triste ao lembrar que está envolvida em um relacionamento dessa natureza e cita que tem uma filha de seis anos de idade. Ela se sente mal, mas não consegue romper o vínculo com o companheiro. Ela optou por não denunciar, mesmo tendo sido vítima de violência física, quando seu parceiro a agrediu com uma tesoura. “Ele tentou me furar com uma tesoura. Não perfurou, só arranhou. Eu acreditei que ele ia mudar, mas nada mudou”.

A vítima conta com o apoio da família para lidar com a situação. “Minha família não queria que eu continuasse com ele. Eles têm medo de que eu morra ou mate. Para se defender, somos capaz de qualquer coisa”, comenta. Sobre superação, ela lastima que é impossível passar por um relacionamento desses sem trauma. “A gente aprende a viver com esse sentimento guardado. Eu pelo menos não esqueço. Eu posso até passar por cima do meu orgulho, mas esquecer eu não esqueço”, acrescenta.

A experiência vale para todas as idades. No caso de Andrea*, foi aos 15 anos de idade, que conheceu um menino na escola. Começaram a namorar. De início, era apenas ciúmes exagerado, o que ela achava “lindo”, já que se sentia carente devido a problemas familiares. “Na minha cabeça, aquele ciúmes era uma forma de demonstrar amor”. A situação complicou quando Andrea foi para a faculdade. “O inferno começou quando eu entrei na faculdade. Na cabeça dele, eu iria para a faculdade atrás de homens”.

“Me sentia mais triste do que feliz. Percebi que estava em um relacionamento abusivo”.

Em meio a traições, agressões, manipulações e sofrimento, casaram-se. Após cinco anos juntos, Andrea engravidou. “Foi um dos piores momentos da minha vida. Sofri bastante”. Depois de outros três anos casados, veio a separação e uma nova gravidez. Nesse momento, a situação continuava a mesma. “Me sentia mais triste do que feliz. Percebi que estava em um relacionamento abusivo”. Ele sempre a fazia acreditar que a vida seria impossível sem ele. Que ela era insignificante. Depois de muito tempo (10 anos) ela conseguiu se “libertar”.

“A superação, acredito, ser constante em não se deixar levar pelo que passou”, conta. Leituras sobre feminismo, sobre relacionamentos abusivos a ajudaram a encarar a situação, se informar sobre o problema e seguir em frente. Ela também não denunciou, mas se separou e contou com o apoio de familiares e amigos para continuar a vida. “Ainda existem marcas deixadas, mas acredito que apesar de tudo, ainda temos a chance de sermos felizes”

A internet também abre portas para relacionamentos como estes. Na vida de Carla*, o problema começou em um site de relacionamento na web. Depois de pouco tempo, começaram a morar juntos. Estavam apaixonados. Logo mais, começou a paranóia. Ele a vigiava, questionava quem eram os amigos dela e o que ela fazia com eles. “Ele começou a hackear minhas contas de redes sociais, ler minhas conversar do passado com outros homens. Questionava de forma violenta. Um dia ele era maravilhoso; no outro violento. Isso me causou uma confusão mental.

“Quando comecei a questioná-lo, ele partiu para  violência física”. Após ele contar de outros relacionamentos em que batia em suas ex-namoradas, Carla não concordou. Foi aí que a violência passou para um nível ainda mais agressivo. “Ele jogou um computador em mim. Não acertou. Ele não me deixava mais sair de casa. Foi a hora de terminar”. Ela pediu ajuda ao irmão que a socorreu e trouxe Carla de volta para casa.

“Eu comecei a desenvolver uma síndrome do pânico”

Ele não parou de procurá-la, mesmo após dois anos do término. Ela teve de se mudar, trocar o número de telefone, mudar o local de trabalho para uma filial de sua empresa. “A falta de provas, da justiça e tudo mais contribuíram para eu não conseguir fazer nada. Na frente dos outros, ele era um amor”. Ela explica que nunca conseguiu denunciar devido ao medo e à dificuldade de comprovar os crimes de privacidade que o ex-namorado cometeu.

“Muitas pessoas não acreditaram em mim e eu perdi muitos amigos”

Carla teve que fazer terapia para superar a situação. As sequelas foram de síndrome do pânico para confusão mental. As sessões de coaching sistêmico e terapias associadas a programação neurolinguística a ajudaram a superar a situação. “Isso me ajudou a sair dessa, começar uma vida nova. Também decidir a ajudar pessoas que sofreram e aderi a grupos no facebook para ajudar essas pessoas”.

Compartilhar a privacidade virtual foi uma das formas de abuso que Laura* sofreu. Além disso, a humilhação na frente das pessoas era comum. Segundo ela, xingamentos como “vadia” eram constantes. Isso foi antes da violência física começar. “Ele apertava meu braço. Já chegou a tentar me enforcar”. Como ela já tinha se afastado da família, segundo ela extremamente machista, não obteve apoio. “Para eles, eu era a culpada”. Os amigos já estavam afastados. No fim, ela conseguiu terminar o relacionamento, porém sem denunciar.

Confira trecho da entrevista com Laura:

 

Como saber se o relacionamento é abusivo

A psicóloga Raquel Manzini explica que para se perceber que uma pessoa próxima está passando por um relacionamento abusivo, em geral, ela vai relatar sobre o caso. “Ela deve falar algo como ‘meu namorado só deixa eu sair depois que eu secar a roupa’”. Frases como “meu marido é tão ciumento” e outras frases tidas como naturais podem ser sinais de relacionamentos abusivos. Comportamentos depressivos e queixas podem significar que a relação está se tornando algo perverso e nocivo.

“O que leva as pessoas a tomarem uma pessoa abusiva são as consequências que isso trazem para ela”. A psicóloga explica que uma forma de ter “amor” das pessoas, como forma de “tapar buraco”, é oprimir essas pessoas e obrigá-las a manter essas pessoas por perto. “Essas pessoas [as abusivas] podem não perceber que estão sendo abusivas ao tentar manter próximo as pessoas por quem sentem afeto”, explica.

Apoio

A Organização Não Governamental (ONG), Artemis, entre outras bandeiras, trabalha para receber denúncias de mulheres em situação de violência, esclarecer sobre a situação e colocá-las em contato com grupos de denúncia, onde essas pessoas afetadas possam se livrar da situação hostil.

Fora esse contato com as mulheres, sua maior atuação é em construir políticas públicas que melhorem a visão da mulher como um todo perante a sociedade, segundo a diretora de negócios e jurídico da ONG, Ilka Teodoro. “Por exemplo, lançamos a #Também é violência, para atentarmos mais à violências que extrapolam a violência física”.

A internet e as plataformas digitais também são uma forma de ajuda quando somadas à criatividade. Dessa forma, surgiu o aplicativo “Mete a Colher”. Criado por Renata Albertim e sua equipe em uma feira de “startups”, o aplicativo disponível para a plataforma “android”, vem com a ideia de colaboratividade. “Queremos conectar mulheres [que estão sofrendo] com outras que podem ajudar”, explica a co-fundadora, Renata.

Confira entrevista com a co-fundadora do aplicativo “Mete a Colher”

Com um ano e meio de estrada, o aplicativo conta com mais de duas mil mulheres ativas na rede, a maior parte, na faixa etária de 18 a 35 anos. “Elas se afastam de amigos e familiares. Só de poderem conversar com alguém já ajuda muito”.

“Fiquei espantada”, diz ativista

A iniciativa da estudante de psicologia Valéria Silva aconteceu no âmbito da pesquisa. O objetivo do trabalho era avaliar as questões psicológicas das vítimas de um relacionamento abusivo. O recorte foi dado em mulheres de 18 às 60 anos de idade. “O objetivo era uma pesquisa acadêmica a fim de levantar os dados acerca das questões psicológicas, os motivos que sustentam este tipo de relação”, explica.

A pesquisa fez a estudante abrir os olhos para a grande quantidade de casos próximos que antes ela não era capaz de reconhecer como abusivos. “Fiquei inicialmente espantada com a quantidade de pessoas que sofrem com relacionamentos abusivos e detêm o conhecimento de que é abusivo”.

Ela acredita que uma das formas de ajuda, além do canal 180, para denúncias diretas de caso de abusos contra mulheres, é a atuação direta de profissionais como psicólogos que possam dar suporte para essas pessoas de forma mais imediata.

Por Bruno Santa Rita

*Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira

Foto: Pixabay

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