Reviravoltas: preso por 15 anos deixou o crime e virou servidor público

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A vida de Gustavo*, de 47 anos, é de reviravoltas. Nasceu na cidade de Balsas (MA), em 22 de outubro de 1969. O pai abandonou a família quando ele tinha sete anos. Na primeira reviravolta, veio, junto da mãe e do irmão mais novo, morar em Brasília, na casa de uma tia. Posteriormente, foram morar em uma casa apertada de um cômodo no Gama. Menor de idade, foi apreendido “várias” vezes. Na segunda grande reviravolta, envolveu-se com o crime. “Sabia que quando fosse maior de idade, não seria nada fácil”. Preso por ser considerado o mentor de um latrocínio (roubo seguido de morte), cumpriu 15 anos e 10 meses de prisão. Na terceira grande reviravolta, converteu-se ao evangelho. Hoje, prega a palavra de Deus nas palestras que realiza nas horas vagas. Constituiu uma família. Hoje ele é a “cabeça” de um outro esquema de vida: o dos copeiros e garçons de um órgão público do Distrito Federal. As ferramentas de trabalho não são armas ou drogas; mas bandejas, copos de água e cafeteira. Em 2017, ele celebra 10 anos de liberdade.

Articulado, comunicativo e confiante. É do tipo que gesticula – como quem reconstrói cada cena que narra – e que olha no olho. “Eu tinha um dom e o usei para o mal caminho”, analisa. Conta que sua perspicácia foi notada muito cedo, quando ainda residia no Maranhão. Ele, que desde menino atuou para auxiliar a mãe na subsistência da família, logo despertou a admiração do dono da confecção na qual trabalhava. “O pessoal era da Síria. Por conta da minha esperteza, da minha velocidade, o dono queria me adotar. Me apadrinhou”, relembra sereno. A mãe negou.

Experimentou, aos setes anos de idade, a dor do abandono. O pai se envolveu com uma outra mulher e formou uma nova família. “Do meu pai, lembro que era um homem trabalhador”, recorda remotamente, com o olhar para o vazio. Sentiu muita tristeza e garante que entendia o que estava acontecendo.  “Geralmente, têm pessoas mais espertas do que outras”, sorri orgulhoso.

 “Chumbo grosso”

Os estudos foram interrompidos durante o ensino fundamental, na quinta série. O homem, portanto, sobre o momento que ingressou no crime, externa com ar de autoconhecimento. “Aí que vem o chumbo grosso: curiosidade de querer ter as coisas e não ter condição”, justifica. Ele se refere à facilidade de conseguir bens e de se livrar, com a mesma facilidade, das consequências inerentes. “O que faz as pessoas andarem no caminho errado é a curiosidade”. O tom é de professor.

 

Sua mãe nunca havia, até então, tomado conhecimento do que, de fato, a conduzia à delegacia com tanta frequência para buscar o primogênito. Mas, aos 22 anos, na mais plena juventude, a conta, enfim, chegou. Pagou pela pobreza; pelas escolhas – ou por não sequer tê-las. A incapacidade de consumir na sociedade do consumo o consumiu. O (por quê não? Como não?) transformou. O latrocínio foi a consequência natural de quem não tem o que preencher – então transborda, transgride. O condenou a 28 anos de prisão. Cumpriu 15 anos e 10 meses (14 anos no regime fechado e 1 ano e 10 meses no aberto).

 

Conversa interrompida. Emerge, das escadas que dão acesso à copa, uma moça. Eles conversam, brincam, sorriem. O local é demasiadamente branco e empoeirado; uma obra inacabada. A cafeteira, os copos, as bandejas, no entanto, estão em um cômodo próximo, logo atrás de uma porta de vidro. Recinto ao qual não tive acesso. Me faz ter a sensação de, naquele momento, transitar no estado de espírito de Gustavo; na reconstrução permanente de seu templo. Por aquela porta de vidro, ademais, eu nunca ultrapassaria.

 

Questionado acerca do crime que o condenou a tantos anos de cárcere e sobre os momentos que viveu na Centro de Progressão Penitenciária (CPP) e na Papuda, ele aperta os olhos, os fixa nos meus, entrelaça os dedos da mão direita nos da esquerda, como quem suplica por minha compreensão. “Conheci os dois lados da moeda. Sei como é a vida honesta e o mundo do crime”, filosofou, com o dedo indicador agora em riste, mas sereno. “Existem coisas das quais não posso falar, pela segurança de minha família”.

 

Por Paulo Gonçalves

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