No hospital ou nas rampas, um brasiliense exercita o existencialismo diário pensado pelo xará
“O homem deve ser inventado a cada dia”, “eu mudo para continuar o mesmo”, “nasci para satisfazer a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo”. Pensamentos como esses do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) fazem parte de uma corrente conhecida como “existencialismo”, que, de forma geral, trata que cada pessoa é livre para tomar as decisões e responsável pelas escolhas.
Um xará goiano do filósofo francês garante que preza diariamente pela liberdade na correria dos seus dias. Pedro Sartre, de 36 anos, vive em Valparaíso de Goiás (GO), uma cidade-dormitório do Entorno do Distrito Federal, e tem uma vida dupla. Ele trabalha como maqueiro hospitalar e é bem mais do que um ‘apreciador’ do skate. “O meu nome é obra do meu pai. Ele gostava muito do Sartre, da filosofia dele sobre a liberdade. Por conta disso eu passei a ler também”, explica.
Baseado em Jean-Paul Sartre, Pedro conta que sua filosofia de vida é “ser feliz, viver bem e fazer o bem ao máximo”. Além das filosofias da vida, o Sartre goiano possui uma intensa rotina de trabalho no hospital público de Santa Maria (DF), o mais próximo da casa dele. No trabalho, ele carrega pacientes de um lado para o outro nos momentos de emergência. Quando não está na escala na unidade de saúde, ele se escala para o compromisso com as rampas do skate.
Sartre teve os primeiros contatos com o esporte quando criança, aconselhado pelo irmão mais novo, Ernesto Lucas, que mostrava a Sartre as manobras nas horas livres. Pedro recorda que, quando criança, tentava mostrar suas habilidades, como subir meio fio, mas era deixado de lado pelo grupo.
“Naquela época que eu comecei, os caras não gostavam muito de ensinar”, relembra. No entanto, Pedro foi se juntando ao grupo que o excluía. Inspirado, ajudou o grupo a fazer uma petição para construir uma pista de skate no Novo Gama (GO), cidade próxima de sua residência.
A maca
Sartre começou a trabalhar como maqueiro hospitalar em 2022. A oportunidade surgiu após um amigo do skate indicar para ele o processo seletivo para o cargo. “É uma profissão que eu nem sabia que existia”, relembra. Antes, ele trabalhou por 12 anos como terceirizado na área administrativa do ministério dos Transportes. Ficou desempregado e, por isso, ele começou a trabalhar como motorista de aplicativo.
“Por incrível que pareça foi graças ao skate que eu estou, hoje, como maqueiro hospitalar. É uma profissão que eu nem sabia que existia. Eu tenho um amigo, Wellington Faleiro que segue a carreira na área da saúde já tem um tempo, que é um grande amigo e comecei a andar de skate com ele, me ensinou bastante no esporte também”, relembra.
Ser aprovado no processo seletivo para o hospital deu um alívio para a família, mas a rotina é corrida. Pedro Sartre chega às 19h no Hospital de Santa Maria, onde trabalha por 12 horas. Ao chegar em casa, às 7h30, sua esposa sai para trabalhar e ele retira a posição de maqueiro e assume o posto de pai, para cuidar de sua filha de dois anos de idade.
A indicação surgiu após Pedro passar 12 anos na área administrativa do Ministério dos Transportes, mas a transição de governo fez com que ele perdesse o emprego. Com o desemprego, ele começou a trabalhar como motorista, já que só tinha o carro.
Conciliando a vida de motorista de aplicativo e cuidando da sua escola de skate no Novo Gama, Pedro recebeu o amigo em sua escola, onde ficou sabendo do processo seletivo para trabalhar como maqueiro hospitalar no Hospital de Santa Maria.
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Fonte: arquivo pessoal
Paixões
O maior incentivo para o skate veio de dentro de casa. O rapaz admirava o irmão mais novo em cada manobra desde quando o irmão tinha seis anos de idade (e Pedro com 10). Foi assim que decidiu que tinha que aprender.
“O meu irmão mais novo começou a andar de skate lá no Novo Gama, (a 40 quilômetros de Brasília) em uma rua onde a galera fazia os obstáculos com a mão mesmo, caixote e corrimão”. O irmão estuda em uma escola do lado dessa rua onde a turma andava de skate. Em um dia, viu o irmão ‘dropando a 45’ (a forma que o skatista ganhará velocidade, para descer ou subir) quando o menino era apenas uma criança. “Sou quatro anos mais velho que ele, e fiquei embasbacado. Foi ele quem me instigou a aprender a andar de skate”, recorda Sartre.
Pedro pediu um skate para seu pai, e ganhou um de baixa qualidade, mas já foi o suficiente, mesmo sabendo que não era o ideal. Com o skate em mãos, a vontade de aprender a andar subiu e já foi para a rua, mas os skatistas mais velhos não estavam dispostos a ensinar.
Sartre revela que tentava de diversas formas mostrar suas habilidades, como subir meio fio, mas era deixado de lado pelo grupo, com apenas um ou outro o ajudando.
“Naquela época que eu comecei, os caras não gostavam muito de ensinar. Eles tinham o grupinho deles, a ‘panela’, e eu ficava tentando mostrar, subir meio fio, mas me deixavam de lado. Era um ou outro ali que me ajudava”, relembra.
No entanto, Pedro não desistiu de seus sonhos e foi melhorando seu skate de baixa qualidade, ao comprar um “shape” e um “truck” e ir mudando de nível. Ao aumentar a qualidade, ele foi se juntando ao grupo que o excluía, e assim foi o início da sua trajetória no esporte, em meados dos anos 2000.
Na ocasião, Sartre e o grupo reuniram-se para fazer um abaixo-assinado para construir uma pista de skate no Novo Gama e conseguiram recursos para construção ao ir à Goiânia, capital de Goiás.
Motorista
Apesar de ser maqueiro hospitalar há dois anos, Pedro ainda faz eventuais trabalhos como motorista de aplicativo. “Eu sou um cara muito disperso e ando com o skate no porta-mala o tempo todo”, sorri.
“Já estou há dois anos ralando direto ali no aplicativo, é bem puxado. Trabalhar no Uber não é pra qualquer um não, ainda mais eu, que sou um cara muito disperso e ando com o skate no porta-mala o tempo todo. Estou lá por Brasília e de repente paro lá no Setor Bancário Sul e já ficava naquela ‘eu continuo trabalhando ou vou trabalhar de skate’. Então onde que eu parava e via um skate park, aí o coração amolecia e eu queria desligar o aplicativo para andar de skate”, relembra.
Se estiver no centro de Brasília, ele diz que usa as pausas para ser livre do jeito que mais gosta: fazendo manobras no Setor Bancário Sul. No entanto, foi também trabalhando como motorista que Pedro conheceu a sua atual esposa, a psicoterapeuta e coordenadora disciplinar, Ada Miniane, de 39 anos. Ela foi passageira dele. Durante o trajeto, Ada relembra que, depois da viagem, o encontrou nas redes sociais.
“Rolou um lance muito estranho que eu não consigo explicar até hoje”, conta Ada sobre a paixão à primeira vista. Por ser fã de Jean-Paul Sartre desde a adolescência, Ada já teve sua atenção pelo sobrenome de Pedro. O casamento com o maqueiro-skatista ocorreu quatro meses depois. Ada e Sartre têm um filho. Mas ambos possuem herdeiros de outros relacionamentos. São cinco crianças em casa.
Ela conta que uma história marcante entre os dois com o skate, foi a sua primeira ida para Alto Paraíso de Goiás-GO, onde sempre foi seu sonho visitar a cidade e Pedro tinha uma competição no mesmo local, onde ficou em terceiro lugar.
Inspirações
Pedro vê semelhanças nas atividades no hospital e nas rampas. Em ambos, por exemplo, é necessário ter um bom relacionamento com pessoas. Movido pela vontade de organizar uma associação para fomentar o skate, Pedro, em 2021, se juntou com umas pessoas que decidiram criar o Instituto de Cultura, Esporte e Meio Ambiente (Icem), na cidade do Novo Gama-GO.
Uma grande semelhança que Pedro encontra entre as rodas do skate e da maca é lidar com pessoas, desde os colegas de trabalho e os seus superiores no trabalho aos diversos skatistas que estão juntos com ele ao longo da trajetória.
O skate, inclusive, esteve presente na sua rotina de trabalho, quando teve que buscar um amigo seu do skate para levar para a tomografia e raio-x.
“Fui trabalhar e chegou a demanda para a gente fazer o transporte de um paciente, que estava no pronto socorro. Ele tinha que fazer um exame na radiologia, onde tinha que fazer um raio-x e uma tomografia, e quando eu chego lá para buscar o paciente, era um amigo meu do skate que tinha machucado o pé”, conta Pedro.
Ao ver Pedro Sartre com a cadeira de rodas para levá-lo para a tomografia, o amigo espantou-se por vê-lo trabalhando como maqueiro hospitalar no hospital de Santa Maria.
Espírito Livre, que é reconhecida pela Confederação Brasileira de Skate (CBSK), contou com a passagem de diversas crianças, mas no começo contava com poucos equipamentos. No entanto, Pedro conheceu uma fotógrafa que se encantou pelo projeto e propôs uma ajuda para que ele seguisse seu sonho.
“Conheci a Melissa Mel Mendes, que é profissional de fotografia, no Setor Bancário Sul, e começamos a trocar ideias, onde eu falei sobre o projeto e ela curtiu bastante. Quando conheceu a Escola de Skate Espírito Livre, fez umas imagens legais e ficou com vontade de ajudar no projeto”, relembra.
Ao ter a proposta de ajuda, Pedro lembra que não tinha equipamento suficiente para dar aula, já que contava apenas com quatro skates usados, além de não contar com capacete, por exemplo. Com isso, Sartre pediu ajuda na divulgação e com material para dar aula. Melissa teve a ideia de uma troca, ela tirava as fotos da Escola de Skate e o dinheiro era revestido em material para as aulas.
Com a ajuda, foram conquistados 28 skates e Pedro deu a ideia de realizar um campeonato na pista da Escola de Skate Espírito Livre e com diversas atividades.
“Vamos fazer uma ação social legal lá, com corte de cabelo de graça, com almoço, um negócio bem dinâmico e que agregue a galera e assim a gente fez”, lembra Pedro, com orgulho.
Com toda a sua trajetória sobre rodas na Escola de Skate Espírito Livre, Uber e maqueiro hospitalar, Pedro relembra sua história e agradece o “Pedrinho” (ele mais novo), a ter começado a andar de skate.
“Que bom que você começou a andar de skate viu? Muito obrigado por ter sido perseverante, por ter acreditado, por ter segurado a onda quando falavam que aquilo era de vagabundo, que aquilo ali não ia te dar futuro. Eu ouvia muito isso naquela época de Pedrinho. O Pedrinho lá do começo, foi muito forte e resistente, para que hoje, esse Pedro aqui, esteja fazendo esse trabalho que não é fácil, mas foi graças ao Pedrinho que aprendeu na raça, sem incentivo de quase ninguém e resistiu”, agradece Pedro Sartre à seu “eu” do passado.Esse instituto englobava a cultura “underground” em um único lugar com grafite, rap e break. Interessado pelo projeto, ele abraçou a ideia e começou a dar aula de skate neste instituto. “Como eu já tinha alguns skates montados, eu comecei a dar aula de skate e dar esse pontapé inicial no instituto”.
Depois, criou a Escola de Skate Espírito Livre, um projeto voluntário também no Novo Gama. A escola é reconhecida pela Confederação Brasileira de Skate (CBSK). Ele contava apenas com quatro skates usados, mas sem capacete. Sartre conseguiu fazer uma divulgação e teve a doação de 28 skates. A entidade faz eventos para divulgar o skate para a comunidade, mas também com corte de cabelo de graça e almoço. A ideia é arrojar. Mas, como diz Sartre, o filósofo, quem não tem medo não é normal. Ou como diz, Sartre, o skatista, é preciso ter coragem.