Soropositivos temem mais o preconceito do que a morte

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Cerca de 35 anos após o descobrimento da doença, portadores do vírus HIV já não temem a morte, mas viver com o preconceito tem sido um desafio avassalador

 

Posto de Saúde nº 8, Asa Sul, Brasília, DF, Brasil 1/12/2015 Foto: Andre Borges/Agência Brasília Posto de Saúde nº8 é um dos que oferece testes rápidos para doenças sexualmente transmissíveis como aids, sífilis, e as hepatites dos tipos B e C. Para os testes de sífilis é colhido sangue de um pequeno furo no dedo do paciente.

Quatro décadas depois dos primeiros casos no Brasil, a Aids ainda é tratada como um tabu e que provoca afastamento, preconceitos, negações a direitos e a espaços de convivência. No Distrito Federal, há dez mil pessoas com HIV em tratamento e muitas delas vivem à margem de uma sociedade que ignora o conhecimento sobre a doença. Há muitos anos, a Aids deixou de ser encarada como uma doença terminal. De sentença de morte nos anos 1980, a doença crônica no século 21, os portadores do vírus HIV descobriram que é possível ter uma vida mais longa e de qualidade, desde que tenham rígido controle dos medicamentos. Em virtude do uso de antirretrovirais, a multiplicação do vírus no organismo é impedida, bem como o enfraquecimento do sistema imunológico.

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No Brasil, atualmente, cerca de 600 mil pessoas mantêm o HIV sob controle e, teoricamente, têm boa qualidade de vida, conforme o Ministério da Saúde. Contudo, grande parte dos infectados preferem não assumir que tem o vírus por temerem a discriminação da sociedade. Por se tratar de uma doença incurável, os pacientes acabam isolados e se deparam com o mercado de trabalho de portas fechadas.

A realidade dos soropositivos que moram no Brasil é alarmante. Eles são considerados muitos doentes pelos empregadores e saudáveis demais pela Previdência Social. Desta forma, aceitam viver de ‘bicos’ ou até mesmo do auxílio da família e de casas de apoio. Portanto, viver com o vírus tornou-se mais fácil, mas tê-lo nesta sociedade ainda é um desafio.

A brasiliense Izabel Christina Guimarães, 63 anos, é uma das pessoas que aceitaram esse desafio. Diagnosticada com Aids há 10 anos, ela contraiu o vírus por meio de agulhas compartilhadas e teve que lutar para vencer a depressão e a discriminação da sociedade. Na época, ela era moradora de rua, usuária de drogas e descobriu que estava com a doença de forma dramática.

“Eu fui ao médico e ele disse que era um problema no esôfago, mas não tinha nada a ver. Depois de apresentar outros sintomas e fazer o exame, eu descobri que estava com Aids”, explica. No início, Izabel teve que suportar o desamparo, inclusive, da própria família. “Eu ia visitar as minhas tias e elas mandavam separar colher, copo, prato, tudo o que usaria. Me sentia hostilizada”, avalia.

Izabel conta que, no início, tomava 18 comprimidos por dia e sofria com os efeitos colaterais. “Era terrível! Eu tinha alucinações que me deixavam atordoada. Eu via monstros, aviões caindo, buracos se abrindo no chão. Faltava pouco para eu enlouquecer”. As alucinações da ex-moradora de rua são parte dos principais efeitos colaterais que os pacientes enfrentam no começo do tratamento.

O enfermeiro Jairison Fontes de Lima, especialista em doenças sexualmente transmissíveis, explica que este tipo de efeito colateral vem de um dos medicamentos receitados no início do tratamento. “É o Efavirenz. Isso é muito normal ocorrer no começo de tudo e apesar de ser assustador, o paciente deve manter a calma e continuar o tratamento”, orienta. O especialista afirma, ainda, que o Efavirenz pode causar outros efeitos colaterais. “Insônia, sonolência, tontura e pesadelos também podem ser sentidos por quem faz uso deste medicamento”, explica.

Izabel encontrou apoio ao visitar a Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (Fale), localizada no Recanto das Emas. A Organização Não-Governamental (ONG) tirou-a das ruas e ajudou-a a superar os problemas com as drogas e o início conturbado da doença. “Aqui [na Fale] eu ganhei um lar, mas antes tive que aceitar as regras. Eu deveria abandonar as drogas e fazer de tudo para vencer o sofrimento que eu tinha por causa da Aids. Eu não poderia procurar por ajuda dos outros se eu não queria ajudar a mim mesma”, explica.

A ex-usuária de drogas vive na Fale há nove anos e é a moradora mais velha da ONG. Ela é considerada um exemplo de superação para todos que chegam ao local à procura de amparo. Izabel dedica o tempo como telefonista da Fale e realiza palestras para minimizar o preconceito. “As pessoas veem a Aids como um bicho de sete cabeças, mas não é bem assim. Eu tenho uma vida normal, sou casada e muito feliz. Não quero que as pessoas olhem para mim como a coitadinha, isso é deprimente”, conclui.

Ela teve diversas complicações antes de iniciar o tratamento e quase morreu. Isso ocorre porque os primeiros anos de contato com a doença dependem muito do sistema imunológico. Contudo, com o passar do tempo só é possível conviver com o vírus a partir do uso dos medicamentos. O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a distribuir gratuitamente os antirretrovirais para os portadores de HIV. Desde 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) fornece medicamentos para o tratamento de infecções oportunistas. A iniciativa brasileira tornou-se referência mundial, aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU).

Assim como Isabel, Jaqueline Aparecida Silva, 47 anos, encontrou amparo na Fale. De condições sociais distintas, as duas usam o coquetel oferecido pelo governo e mantêm em comum a esperança e a vontade viver, mas nem sempre foi assim. “Quando descobri [ser portadora do vírus], foi muito triste. Eu descobri quando tive o Kauan [filho caçula]. Fiquei muito abalada e pensei que estava tudo acabado para mim e para meu filho”.

De mãe para filho: contaminação caiu

Jaqueline transmitiu o vírus para Kauan durante o parto. A contaminação do vírus passada de mãe para filho é chamada de transmissão vertical. Este tipo de contágio não é raro no Brasil. O MS informa que, desde 2000 até junho de 2015, foram notificadas 92,2 mil gestantes infectadas com o HIV. Contudo, as últimas notícias são animadoras. Entre 1980 e 1997, 46% das crianças menores de um ano, filhos de portadores do vírus, eram acometidos pela doença. Em 2009, esse percentual caiu para 18%.

Entretanto, no início da doença, Jaqueline não teve notícias muito felizes. Infelizmente, Kauan morreu em 2006 com 2 anos e 7 meses em decorrência de doenças oportunistas. Mas de todo o drama sofrido, o impedimento de amamentar o filho foi o mais tocante. “Fiquei em depressão por não poder lhe dar de mamar”, descreve. “Não sabia que tinha HIV. Tive de fazer exame nos meus quatro primeiros filhos porque os amamentei. Só uma, a de 18 anos, é portadora do vírus. Os outros não são”, conta. Os filhos de Jaqueline têm 30, 24, 18 e 17 anos.

Números preocupam

A Aids já matou cerca de 600 mil brasileiros e mais de 30 milhões de pessoas ao redor do mundo. Além disso, nos últimos cinco anos, o país tem registrado, anualmente, uma média de 40,6 mil novos casos da doença e está presente, principalmente, entre os homens de 29 a 40 anos, de acordo com o MS. Já o Programa Conjunto das Nações Unidas HIV/Aids (Unaids) destaca que o Brasil está em contramão do mundo. Enquanto a África diminuiu em 33% o número de novos casos de Aids, o país aumentou essa incidência em 11% e tornou-se um dos poucos países a elevar esses índices. Vale destacar que a média global de novas infecções diminuiu e de acordo com o último relatório encontra-se em 28% a menos.

O Distrito Federal é a 13ª Unidade Federativa com mais portadores do vírus. De acordo com o último boletim epidemiológico, divulgado pelo Ministério da Saúde em 2015, os jovens apresentam significativo aumento em relação aos novos casos. Confirme o MS, a taxa de jovens contaminados com HIV por 100 mil habitantes no cresceu 86% em dez anos. Em 2004, a taxa de contaminados a cada 100 mil habitantes entre 15 e 24 anos de idade era de 7,6. Em 2014, essa taxa aumentou para 14,2.

O fato é que a Aids não assusta tanto quanto nos 1980 e este é um dos principais motivos que o aumento no número de novos casos da patologia. “Aids é uma doença séria e não dá para descuidar. Apesar dela ter tratamento, não tem cura e ainda faz muitas vítimas no mundo todo”, explica a especialista em doenças sexualmente transmissíveis, Maria Aparecida Murr.

A especialista trabalha no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), localizada na Rodoviária do Plano Piloto. O local permite que pessoas que não usaram preservativos em relações sexuais realizem ações de diagnóstico e prevenção da Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. “O atendimento no CTA é inteiramente sigiloso e oferece a possibilidade de ser acompanhado por uma equipe que a orientará sobre resultado final do exame, independente dele ser positivo ou negativo. Quando os resultados são positivos, nós encaminhamos o paciente para tratamento nos serviços de referência”, explica.

Este é caso de Maria de Fátima Silva, 47 anos. A dona de casa descobriu que estava com Aids após exame realizado no CTA. A equipe então a encaminhou para fazer tratamento em uma unidade de saúde. Abalada, Maria de Fátima entrou em depressão e a equipe do CTA resolveu apresentar a paciente à Fale.

“Descobri que estava com Aids na época que eu tive a minha filha caçula. Ela também é soropositiva e eu me senti muito culpada por causa disso”, lamenta a dona de casa. O início do tratamento também foi angustiante para Maria de Fátima por causa da quantidade de medicamentos que ela se submeteu. “Me assombrei quando descobri a quantidade de remédios”, conta. Ela também tomava dezoito remédios por dia e os efeitos colaterais causavam muito desconforto. “Eu sentia diarreia, vontade de vomitar; era muito angustiante”, explica.

Dificuldade de aceitação

Maria de Fátima não se conformava em ser soropositiva e, em razão disso, entrou em depressão. “Foi ‘barra’. Demorei três anos para acostumar com isso. Eu trocava de remédio sempre, pois meu organismo estava muito fraco e não aceitava o medicamento” diz.

Contudo, o que pode apavorar uma pessoa que recebe o diagnóstico e descobre ser soropositiva é a quantidade de ideias equivocadas acerca do assunto. Apesar das campanhas informativas divulgadas pela mídia, bem como pelas escolas e pelos hospitais, muitas pessoas sofrem por falta de conhecimento e informação e isso torna o tratamento mais difícil e a saúde mental do paciente em cheque.

“É preciso desconstruir todos os mitos, Aids não é sinônimo de morte, mas grande parte da população ainda associa uma coisa a outra. O paciente precisa entender que se tiver autocuidado tudo estará sob controle”, garante a psicóloga Elaine Maria da Silva.

A profissional já orientou muitos pacientes soropositivos e explica que todos tem algo em comum: o sentimento de culpa. “Eles vêm sentindo-se culpados e cheios de crenças na cabeça. Isso pode tornar o tratamento mais difícil”, alerta. Uma das possíveis soluções, segundo a psicóloga, é que um soropositivo ajude o outro. “O paciente vai lidar com a história do outro que também é soropositivo, aprendendo a lidar melhor com a sua soropositividade. A autoconfiança é estimulada dessa forma”, conclui.

Maria de Fátima recusava-se a aceitar o resultado do exame. “Fiz vários exames para que a ficha caísse. Eu não queria colocar aquilo na minha cabeça de jeito nenhum”, explica. Ela é mãe de oito filhos, contudo, apenas a caçula também é soropositiva. A dona de casa garante que pegou o vírus por meio de relações sexuais com o marido depois de muitos anos após o nascimento do sétimo filho. Ela conta que para aceitar conviver com a patologia precisou do apoio dos filhos. “Meus filhos não me abandonaram. Pelo contrário, conseguiram autorização para morar na Fale comigo. Muitos estão casados e com bons empregos. Por serem meus vizinhos, são muito presentes na minha vida e por eles eu decidi iniciar o tratamento”, completa.

A dificuldade de aceitação partiu do sentimento de medo do preconceito. “Eu morava em Santo Antônio do Descoberto. Fiquei aqui por dois anos e voltei pra lá, mas quando as pessoas descobriram, não me aceitaram. Por isso voltei pra cá depois de três meses”, relata. Apesar do apoio dos filhos, Maria de Fátima reclama que o preconceito começou com os demais familiares. “Eles [os parentes] não me aceitaram de jeito nenhum, me descartaram como seu eu fosse um objeto”, reclama. Na ONG, ela garante que conseguiu o apoio necessário. “Aqui ganhei uma nova família, tudo o que eu precisava era viver num lugar livre do preconceito e da falta de conhecimento junto com os meus filhos”, diz.

Hoje ela ajuda na entidade como cozinheira e possui carga viral indetectável. O enfermeiro Jairison Fontes de Lima – apresentado no início da reportagem – explica o que é este fato. “é a condição de todos aqueles que, um dia diagnosticados positivos para o HIV, atingiram a omissão do vírus, graças ao uso dos medicamentos antirretrovirais”, destaca. De acordo com o MS, 76% dos brasileiros diagnosticados com HIV e que fazem o uso diário dos antirretrovirais apresentam carga viral indetectável.

 

Admitir a doença é fundamental

“É essencial se cuidar e superar os estigmas para começar adesão o quanto antes. É justamente isso que oriento meus pacientes. Ele precisa aceitar o fato, erguer a cabeça e lutar com todas as forças. O apoio espiritual ou psicológico também são fundamentais e dependem da escolha do paciente”, informa a especialista Maria Aparecida Murr, citada acima.

Após estar conformada com a doença, Jaqueline – apresentada no início da reportagem – admitiu ser portadora do vírus e, a partir daí, o tratamento ficou mais fácil. “Encarei a doença como um gigante a ser derrubado e derrubo este gigante todos os dias ao acordar”, festeja.

Contudo, a maioria dos portadores do HIV preferem se esconder. Os motivos variam e vão do medo do preconceito ao estigma relacionado à doença. Sobre o medo do isolamento, Izabel – citada no início acima – é categórica: “A sociedade tem que procurar mais entendimento sobre a Aids. Eu sou feliz, apesar dos pesares, sou normal como qualquer outra pessoa e não me sinto incapaz ou limitada”, afirma.

A linha que divide a Fale do preconceito mede cerca de 10 metros. A entidade fica na área rural da quadra 108 do Recanto das Emas e é separada da área urbana apenas por uma rua. Maria de Fátima percebe o preconceito, inclusive, com quem visita a ONG. “Chegam aqui e falam que é a casa dos aidéticos. Isso já nos deixa um pouco tristes”, lamenta.

Entretanto, ela também tem opinião sobre o preconceito. “Muitos fingem ser acolhedores, mas é pura hipocrisia. Tem gente que nos trata com nojo, vem aqui e recusam até mesmo um copo com água, isso é horrível. Precisam buscar mais sabedoria, isso é coisa de gente que não tem sabedoria e bom senso com o próximo”, conclui.

Por Igor Caíque e Rafaela Pantel

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