No carro, a bebê, de apenas 11 meses, dormia no colo da mãe. Estava sem a proteção que hoje consideramos indispensável. Tudo ficou escuro. Era de dia. O carro capotou, lançando a pequena pela janela.
O radiador estava fervendo e embaixo dele estava Ekaterini Sofoulis sendo queimada. Queimada nas pernas. O acidente aconteceu em Montevidéu (Uruguai), onde a menina, que hoje tem 48 anos, nasceu.
“Foi quando eu chorei que minha mãe me achou. Embaixo do carro. Embaixo do radiador fervendo”. Ekaterine havia sofrido queimaduras. “Eu convivo com a deficiência toda minha história, eu era muito pequena mas já entendia tudo.”
Quebra de expectativas
Lesões medulares, queimaduras profundas, e uma fragilidade que exigia cuidados constantes. Para uma família que sonhava em ver sua filha dar os primeiros passos, presenciá-la incapaz de ter mobilidade nas pernas, não estava nos roteiros. Apesar disso, ela sempre teve todo o apoio necessário.
“Meus pais levavam com muita naturalidade. Minha mãe sempre foi aquela pessoa que me ergueu. Ela dizia, ‘você dá conta, você consegue. E se não der, vamos fazer de outro jeito, sem desistir’”.
A mãe, a grega Irini Hadjirallis, sentiu como se tivesse sido com ela. A partir daquele dia, todos os planos e o futuro idealizados para a filha foram tomando outro rumo. Um rumo que abriria mão de muitos sonhos, que tiveram de ser riscados do papel e, em uma nova folha, a família iria reescrever os próximos capítulos.
Irini e o marido, Emanuel Sofoulis, tiveram que tomar muitos cuidados que jamais imaginariam ter de se preocupar. O medo diário era a dúvida de como seriam os futuros episódios. A cada terapia, a cada sessão de reabilitação, a luta era constante. Ekaterini Sofoulis Hadjirallis encontrou a própria maneira de se mover pelo mundo. Aprendeu a se movimentar com a cadeira de rodas. “Sempre fui aquele tipo de criança alegre, meus pais levavam tudo com muita leveza e naturalidade. Minha mãe me disse que eu daria conta, que eu conseguiria. Nunca com um olhar de pena”.
Na terceira série, a escola, incapaz de atender suas necessidades de mobilidade, sugeriu que ela se retirasse. “Minha sala ficava no primeiro andar, eu não conseguia ir até lá, por isso a escola me convidou a sair, porque eles não iam mudar o local da sala só por uma aluna”.
Depois, quando a família se mudou para Brasília, a então jovem adulta entrou no curso de Psicologia na Universidade de Brasília (UNB). A luta era diária na tentativa por inclusão e respeito aos direitos das pessoas com deficiência. “Nunca coloquei a minha condição como desculpa para deixar de fazer alguma obrigação”.

Degrau por degrau
“Para eu conseguir chegar aos locais, era complicado. Os anfiteatros não tinham rampa, então, eu tinha que ficar lá em cima ou eu contava com um colega que me carregasse no colo, só para conseguir assistir à aula”.
Desde o primeiro dia de aula, a luta por um espaço foi questionada. “Eu perguntei para o professor se era possível pedir para trocar o local da aula, mas ele me esculhambou. Ele disse que não ia trocar porque já fazia 30 anos que ele dava aula naquele mesmo lugar.”
Foi preciso se desmatricular da matéria e propuseram uma pesquisa que compensaria essa disciplina. “Foi o jeitinho que eles encontraram. Não era muito mais fácil eles terem apenas me aceitado”?
Emanuel a levava e a acompanhava para tudo que fosse preciso para se locomover. “Meu pai já não dava mais conta de me carregar, eu já tinha 18 anos. Tive que subir e descer das escadas, degrau por degrau, sentada”.
A universidade tentou, após muito esforço, encontrar soluções. Colocaram todas as aulas de Psicologia na mesma sala para facilitar a locomoção. A motivação para se manter erguida, porém, ficava cada dia mais difícil. “Eu sentia muitas dificuldades no acesso às salas e em me enturmar com os colegas. Não queria me sentir exausta em ter que continuar convivendo dessa maneira. O meu maior desejo era me formar logo e sair dali.”
“Era como se as pessoas não se misturassem”. Ela conta que até o grupinho da faculdade era composto por pessoas que também sentiam algum tipo de desaprovação. “Eu fazia amizade com pessoas que também sentiam a exclusão na pele. Pessoas negras, obesas, com menores condições socioeconômicas e que vinham de outros estados. “
O que os unia era o sentimento de exclusão e companheirismo por entenderem a particularidade de cada um.
Auto-estima
“Não tenho nenhuma super habilidade. Só sou uma pessoa bem esforçada”. Ekaterini foi aprovada em um concurso público de nível médio do Tribunal Superior do Trabalho (TST) em uma vaga de nível médio. “Ter um trabalho é ter uma auto-estima. Ganhar independência, reconhecimento e poder realizar desejos”.
Conheceu seu marido pelas redes sociais. Questões que para ela sempre foram um “porém”, mas para Abner Morita nunca foi um tópico. Se sentir bonita é algo que não precisa seguir um padrão. Ela diz que existem vários marcadores que colocam as mulheres no final da fila nas escolhas masculinas. Mulheres negras, mulheres periféricas, mulheres com deficiência. Todas estão no fim. “Eu encontrei alguém que nunca me olhou diferente, nunca como a última opção dessa fila.”

O desejo de ter filhos nunca foi um obstáculo mesmo com a deficiência. “Sempre quis ser mãe.” Ela conta que a questão da lesão medular não dificulta a engravidar, segurar a gestação é o problema. Ficar de repouso absoluto, infecção urinária, todo cuidado era necessário além das dificuldades no momento do parto. “Eu não podia levantar da cama para nada e sentia muita dor e muita contração“.
A gravidez foi gemelar. Mãe de gêmeas. Após o nascimento das filhas, ela se viu em um desafio além das limitações físicas. A própria visão sobre o que é ser mãe. É como se o filme estivesse em 3D. A cada minuto, a história e a imagem ficam cada vez mais perto.
Os primeiros passos

Ekaterini encontrou sua forma de embalar suas filhas nos braços com a cadeira de rodas. Contou com o apoio dos seuspais e marino nesse início de maternidade. Viu e sentiu o momento como quem nunca tivera vivenciado isso antes, os primeiros passos de Manuela e Luiza. “Elas aprenderam a andar segurando na minha cadeira, um momento que me marcou de uma forma inexplicável, porque eu nunca tive esse momento”.
Ela se reinventou e se tornou uma voz ativa na luta por inclusão e direitos das pessoas com deficiência. Hoje, ela se dedica diariamente em grupos e projetos que defendem a acessibilidade. Ekaterini transformou sua dor em uma força para o coletivo.
Um dos mecanismos que usou foi se blindar de tudo aquilo que não valesse a pena. Ela diz que a família foi fundamental para que ela tivesse uma vida além da deficiência. Ela diz que a família foi fundamental para que ela tivesse a aceitação da deficiência. Enfatiza que em todas as oportunidades, faz questão de reconhecer quem a cuidou . “Tá vendo mãe? Deu tudo certo”.
Por Ayumi Watanabe
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira