Voluntários ajudam a levar conforto e dignidade a pacientes em cuidados paliativos no DF

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Depois da aposentada brasiliense Thais Varella Barca vivenciar três perdas, o olhar e a postura dela se transformaram. As mortes do filho, de 19 anos de idade, e depois dos pais dela, em um intervalo de três anos, fizeram com que ela resolvesse se voluntariar para minimizar as dificuldades de pessoas internadas, em cuidados paliativos, no Hospital de Apoio do Distrito Federal, unidade pública de saúde, no setor Noroeste, em Brasília.

“A minha visão de morte mudou totalmente desde que eu vim para cá. Depois de três lutos, eu gostaria de ter tido essa experiência aqui antes porque a morte não precisava ter significado aquilo que eu vivi lá atrás”, afirma. 

Ela passou a entender que a morte pode ser uma despedida mais leve e mais bonita.

“Antes, eu pensava que éramos aquilo que levamos dentro de nós. E não é. Hoje, eu sei que somos aquilo que deixamos e fazemos para o outro”, comenta. 

Thais Varella é voluntária do Hospital de Apoio. Foto: Maria Beatriz Giusti 

A unidade de saúde presta assistência multidisciplinar com servidores públicos. Uma associação de voluntários, na qual a aposentada se inscreveu, organiza e orienta atividades de pessoas que desejam ajudar de alguma forma, incluindo fazer companhia ou até promovem atividades lúdicas.

Assista a vídeo sobre a atividade dos voluntários

Para poder minimizar as dificuldades dos internados, os voluntários fornecem amparo aos pacientes e aos acompanhantes de maneira a aliviar as angústias e medos dos que ficam e dos que partem. 

Hospital de Apoio em Brasília atende pacientes em tratamentos paliativos. Foto: Júlia Lopes  

Cuidados

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o cuidado paliativo como uma abordagem que tem o objetivo de  melhorar a qualidade de vida de pacientes que estejam diante de uma situação ameaçadora à vida, independente da idade. 

De acordo com o presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), Rodrigo Kappel, esse tipo de tratamento não trata apenas do sofrimento físico do paciente, mas também do sofrimento familiar, emocional e espiritual. 

“É fazer de tudo pelo paciente, mas respeitando a sua autonomia ao cuidar do seu sofrimento. É o que todos nós desejamos quando adoecemos, porque eu quero ser ouvido, eu quero ter os meus sintomas amenizados, eu quero que a minha família seja cuidada. Independente se eu vou morrer ou se eu vou sobreviver”, diz Kappel.  

De acordo com os dados do Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil de 2022, produzido pela ANCP, 625 mil brasileiros precisam de cuidados paliativos no país, mas apenas 3% conseguem ter acesso ao procedimento adequado.

Apesar disso, no DF, o percentual de participação nacional no recurso terapêutico é o quinto maior do país (6,8%), logo atrás da Bahia (8,1%), Ceará (7,6%), Minas Gerais (9,4%) e São Paulo (23,5%). 

Fonte: Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil de 2022, ANCP

Dignidade

O Hospital de Apoio de Brasília faz parte dos 6,8% que fornecem um final mais digno para os pacientes no DF.

Segundo uma das pioneiras da associação dos voluntários, Izabel Tostes, o grupo é um exemplo para outros voluntários de Brasília, pela estrutura do trabalho e pela resposta dos pacientes às visitas dos participantes.

Quando ela chegou, em 1990, por meio de um grupo de mulheres que venceram o câncer, o hospital já tinha os voluntários religiosos, mas ninguém que fornecia apoio psicológico e financeiro. 

Ela faz parte de um grupo de mulheres que tinham tido câncer. “Muitas quiseram se voltar para o voluntariado. Começamos com algumas visitas nos leitos só para interagir com os pacientes. Naquela época, éramos muitos”, afirmou.

Atividade organizada

A partir de 2015, os voluntários em hospitais começaram a se popularizar. “Nós nos tornamos modelo para os outros voluntários, em Taguatinga, Ceilândia, porque a gente já tinha um grupo formado, com estatuto, diretoria”, explica Tostes. 

A chefe do serviço social do hospital, Mariana de Souza Palacios, diz que, muitas vezes, os assistentes sociais e os voluntários não têm uma relação amigável, mas, quando se refere a AVHAP, os papéis são bem diferentes. 

“O serviço social tem uma crítica com relação ao voluntariado de uma forma geral, mas com uma preocupação de que o voluntário vá suprir o papel que o Estado deveria estar cumprindo. Aqui, no Hospital de Apoio, a gente estabeleceu uma relação de parceria”. Para ela, está claro que há uma somatória de forças.  

Na ala de internação

Cuidadora de idosos e técnica de enfermagem, Sidineia Gonçalves Fraga entrou em um mundo novo: o dos cuidados paliativos. Desde julho de 2024, Sidineia cuida de José*, de 43 anos, um paciente oncológico do Hospital de Apoio. José foi admitido na “Ala de Internação A”, onde pacientes de cuidados paliativos ficam, no dia 29 de outubro, devido a um tumor terminal no cérebro. 

“Eu digo que eu e o José vivemos momentos de muita oscilação. Eu peguei muitos tempos difíceis com ele, mas também alguns em que acreditava que um milagre poderia acontecer”, conta.

“Eu sou técnica de enfermagem e a gente aprende no curso que não podemos nos envolver muito, que precisamos separar os sentimentos, mas é difícil, eu passo 12h por dia com ele”, relata Sidenia. 

Sidineia Gonçalves na porta da ala dos cuidados paliativos. Foto: Maria Beatriz Giusti  

A cuidadora contextualiza que o paciente tem dois filhos, um de 4 anos e o outro de 13 anos, e uma esposa que estão sempre ao seu lado.

“Ele tem alguns momentos de lucidez em que chora muito. Inclusive essa semana foi muito difícil porque é um desespero saber que está morrendo. Mas ele fica entre a realidade dele e a realidade mesmo, são momentos difíceis”, lamenta.  

Apesar da situação, Sidineia comenta que o trabalho das voluntárias já ajudou José e outros pacientes que ela acompanha em vários momentos.

“O pessoal da associação traz muita alegria para o ambiente, dá para perceber a diferença nos pacientes quando eles aparecem para conversar e cantar”, diz. 

“As pessoas têm medo”

Desde 2006, Sueli Santiago é voluntária no grupo para ajudar os pacientes oncológicos. Ela, que já passou por um câncer agressivo, percebeu o distanciamento das pessoas quando recebeu o diagnóstico da doença. “O paciente com câncer é muito estigmatizado. As pessoas têm medo da pessoa com câncer”, afirma. 

À época do próprio câncer, Sueli cursava psicologia e comentou um acontecimento que lhe ocorreu. “Eu tinha uma turma de 40 alunos, nenhum dos meus colegas foi me visitar quando eu recebi meu diagnóstico”, lamenta. “A mesma coisa aconteceu com uma paciente minha; ela me disse: Quando eu recebi o resultado do exame, meu marido me largou, minha filha saiu de casa e ninguém pegou na minha mão”, completa.   

Outra voluntária do grupo, Márcia Maria Couto, aponta a importância dos pequenos detalhes da vida cotidiana para pessoas em estado terminal.

“Existem pacientes aqui que o que mais querem é simplesmente ir ao mercado, ou fazer algo cotidiano. São aqueles fragmentos de vida que só damos valor quando perdemos. Isso é uma coisa que estou mudando muito dentro de mim. Estou aprendendo a valorizar as pequenas partes da vida”, avalia.  

Para a aposentada Thaís Varella, o processo da morte não precisa ser triste. “É um dia que vai chegar. Esse dia não precisa ser ruim, não precisa ser feio, pode ser feliz, pode ser de alegria. Não é porque você está em cuidados paliativos que não vai pintar o cabelo, ou pintar a unha para ficar bonita. Para mim, o cuidado paliativo é cuidar da pessoa como se ela fosse viver para sempre”, reflete.

Serviços

Desde a década de 1990, a OMS considera a área de cuidados paliativos como essencial para qualquer ser humano. A organização recomenda que todos os países disponibilizem o acesso a medicamentos, equipes interdisciplinares de tratamento e educação sobre o assunto para a população. 

Fonte: Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil de 2022, ANCP

Fonte: Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil de 2022, ANCP

No entanto, o Brasil só teve uma política nacional de cuidados paliativos incorporada ao SUS no ano passado. Isso significou a criação de equipes interdisciplinares formadas por quatro profissionais essenciais: um médico, um enfermeiro, um assistente social e um psicólogo. 

“É necessário uma equipe interdisciplinar, porque não adianta chegar um profissional de cada canto e realizar diferentes tratamentos. Essa equipe precisa conversar e estar em sintonia. E através da interdisciplinaridade profissional trabalhar em conjunto para conseguir fazer um trabalho muito mais efetivo”, explica Kappel

De acordo com o Atlas da ANCP,  houve um aumento no número de serviços assistenciais na área, desde 2018, com o registro de 128 serviços novos (54,7%) e 106 atualizações de cadastro (45,3%), culminando em um total de 234 serviços assistenciais.

Dentro dessas atividades, foi informado que a maioria é composta por médicos, sendo 204 profissionais (87,1%). Em seguida vêm os enfermeiros, com 16 profissionais (6,8%), e os demais, que totalizam os 6,1% restantes, que exercem as seguintes funções: psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, musicoterapeuta, médico veterinário e administrador hospitalar.

Apesar do aumento nos número de serviços assistenciais, ainda é difícil sentir os efeitos na assistência pública.

A voluntária Izabel, que acompanha de perto a rotina no Hospital de Apoio, reconhece a alta demanda por uma equipe interdisciplinar e os desafios enfrentados pela falta de profissionais. 

Diante dessa situação, Izabel explica que a equipe de voluntários é com certeza um complemento na equipe de cuidados paliativos.

“Eu acho que nós, como voluntários, fazemos parte do cuidado paliativo também”, diz.

Vínculo

Além de promoverem vínculo em todas as situações durante a internação do paciente, os voluntários se mobilizaram para criação de um bazar dentro do próprio hospital para arrecadar recurso para custear principalmente as compras de medicamentos que estão em falta no hospital e são essenciais para o paciente, como os opióides.

Conforme os dados da ANCP, 88% dos serviços de cuidado paliativo conseguem acessar os opióides dentro dos hospitais. Enquanto os outros 12% ainda enfrentam algum tipo de dificuldade no uso de medicamentos para dor durante o tratamento. 

“Normalmente, as pessoas que vêm aqui são carentes. Então, elas precisam de muito. Esse, talvez, é o nosso maior trabalho aqui. Além dessa parte humanizada, é o fornecimento de medicações que o hospital não tem”, explica Izabel.

O bazar do hospital  funciona ainda como uma ajuda social e psicológica para muitos acompanhantes. É através dele que, todas as quartas-feiras, muitos acompanhantes podem se distrair um pouco do momento que estão passando. 

“A nossa função não é só suprir as necessidades materiais. No bazar, a gente recebe as coisas de doação e tudo ali é no valor simbólico de R $2,00, direcionado para para os acompanhantes do hospital porque é um momento em  que eles se distraem. O bazar consegue um bom dinheiro e ajuda a suprir muita coisa do hospital, mas também proporciona bem estar e lazer para essas pessoas”, completa Izabel. 

Acompanhantes

Os cuidados paliativos não ocorrem apenas na vida dos pacientes. Segundo os dados da ANCP, a existência de atividades regulares programadas voltadas exclusivamente para o cuidado com os familiares dos pacientes e cuidadores informais foi de 43,2%. 

A associação de voluntários trabalha  para que o conforto espiritual e psicológico não alcance  apenas os doentes. Ao longo de toda a semana ocorrem diferentes atividades promovidas pelos voluntários que interagem com os pacientes e acompanhantes.

Para eles,  os acompanhantes são peças fundamentais para o tratamento e que também necessitam de apoio. 

Além de passarem nos leitos dos pacientes para conversar, entregarem produtos de higiene e dar conforto aos acompanhantes, os voluntários promovem aulas de artesanato, todas as quintas-feiras.

Artesanato

Para a voluntária Márcia Vieira Bênia, o artesanato é uma forma de distração para as pessoas que estão passando por esse momento. Junto à Márcia, Olinda Silvana dos Santos também produz bonequinhas de pano para que os pacientes possam vesti-las e estilizá-las do jeito que quiserem.  

Bonecos da oficina de artesanato/ Foto: Maria Beatriz Giusti 

“Para o paciente, quando está em condições de fazer o artesanato, é muito bom para ele tirar o foco do problema, sair um pouco do leito. E o acompanhante, por outro lado, está muito tenso, confinado junto ao leito, então ele também precisa sair um pouquinho para se distrair”, explica Márcia.  

“As pessoas chegam meio descrentes, mas quando são acolhidas, e elas são tão bem acolhidas aqui no Hospital de Apoio, sentem que estão no lugar certo; estão recebendo o que elas precisam. E aí vem a rede de voluntários que ajuda nesse processo. É aquele braço que se estende  para fazer o carinho que o paciente e o acompanhante precisam”, aponta Márcia. 

Para Thaís, os acompanhantes são fundamentais no tratamento e, por isso, mesmo os que não são acompanhados, são agraciados com a presença de voluntários, não só da AVHAP, mas também dos familiares e amigos de outros pacientes que, com empatia, ajudam com o que podem. 

“Eu acho que o trabalho voluntário está presente na vida de todos. Se tem uma pessoa que não tem acompanhante, que a família não pode vir,  o acompanhante do vizinho cuida dele também, cuida do outro, sabe?”, diz Thaís.  

Lanches

À noite, é a vez da voluntária Abadia Lopes trazer um pouco de cuidado e alegria aos visitantes. Às segundas-feiras, por volta das 20h, ela e algumas amigas preparam lanches gratuitos para serem distribuídos na porta do Hospital de Apoio. 

Abadia conta que começou a fazer lanches nas portas de hospitais há mais de 20 anos quando seu pai teve câncer e faleceu. Ao longo de todos esses anos, ela prepara lanches rápidos e fáceis, como sopas e sanduíches, com o intuito de trazer comidas diferentes e mais acessíveis. 

“Foi quando eu acompanhei meu pai com câncer que senti a necessidade de comer algo diferente do hospital, mas eu  não tinha dinheiro para comprar nada. Foi após a morte do meu pai que comecei a fazer lanches, primeiro lá em Taguatinga. Depois de lá, fui para o hospital de Base e, por fim, conheci o  Hospital de Apoio que estou há 10 anos”, conta. 

Voluntárias do lanche da noite/ Foto: Júlia Lopes 

Para ela, a importância do trabalho está em trazer alegria para muitos que estão ali, em um momento difícil e que nem sempre tem o que comer, além da comida do hospital. “Aqui não tem comércio. As pessoas que estão aqui, geralmente, vem de ônibus e para sair para comprar alguma coisa, não tem como”, diz a voluntária. 

“Então, eu vejo que, em um  momento tão triste, a gente aqui consegue trazer conforto; eles se sentem amados e acolhidos. As pessoas até se surpreendem quando descobrem que o lanche grátis. É um sentimento de gratidão enorme”, completa Abadia. 

Por que se voluntariar? 

Quando entrou para o voluntariado, Márcia Maria Couto não imaginava que receberia comentários como “por que você faz isso? É tão mórbido”, ou “que bonito o seu trabalho! Eu não conseguiria”, em conversas corriqueiras. No entanto, a voluntária sempre tem uma resposta para essas pessoas.

Márcia Couto entende que, como ela, todas as pessoas dentro do Hospital de Apoio passaram pelas dificuldades da vida e querem ser cuidadas nos momentos finais. 

“Eu sinto como se eu tivesse fazendo uma obrigação, como se eu devesse para essas pessoas o meu tempo, por toda a minha vida pregressa. Falar assim parece que a minha vida foi um mar de alegrias e aventuras, mas a minha vida foi um mar de experiências, como a vida de todo mundo, que tem alegrias, tristezas, lutos, igual as pessoas que estão aqui”, diz. 

Izabel entende que o voluntariado, a solidariedade e a compaixão estão entrelaçadas em só um.“Aqui estamos fazendo um papel de compaixão mesmo. Eu tô cuidando de alguém que não é parente, não é conhecido. É apenas um ilustre desconhecido. Mas, mesmo assim,  você está ali correndo atrás de qualquer coisa que ele precise para poder compensar aquele estado em que ele está”, reflete a voluntária.

Já a voluntária do artesanato Márcia Vieira Bênia manifesta o desejo de que o trabalho voluntário seja mais valorizado entre os brasileiros. “Existe muita carência de apoio para as pessoas doentes. Não só aqui no Hospital de Apoio, mas em outras tantas instituições também. Se você tem um tempo livre, vamos usar esse tempo livre em favor de alguém que precise de compaixão e solidariedade”, propõe. 

Por Júlia Lopes e Maria Beatriz Giusti

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Vivaldo de Sousa

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