Conselheira tutelar alerta que situações vexatórias são consideradas crime pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
O sinal tocou para anunciar o início da aula. A professora Martha Moraes junta o material de trabalho, pega a pilha de provas e segue da sala dos professores em direção à aula. O ano de 2014 ainda estava no início e a docente tinha acabado de tomar posse na Secretaria de Educação do Distrito Federal, mas aquele dia marcou para sempre sua vida profissional. Era dia de provas bimestrais no Centro de Ensino Fundamental 01 do Núcleo Bandeirante e na turma de CDIS – Correção e Distorção de Idade e Série os alunos, com idade entre 14 e 15 anos, seguiam concentrados nas avaliações quando um grupo de policiais chegou na porta da sala e avisou que tinha que revistar os alunos: “Eu tentei pedir mais explicações, disse que eles estavam fazendo prova, mas disseram que não poderia deixar para depois. Eles já foram entrando”, relata a professora. A abordagem policial, que altera a rotina de professores e alunos e divide opiniões, não é um caso isolado e faz parte da Operação Varredura, uma das ações programadas pelo Batalhão Escolar do DF. Docentes já foram processados e alunos, detidos, mas a polícia garante que há necessidade.
No caso descrito por Martha Moraes, a prova foi interrompida e os meninos, chamados para fora da sala, enfileirados com a mão na parede, e revistados pelos policiais homens. As meninas ficaram dentro da sala e foram orientadas a colocar as mãos no quadro para serem revistadas pelas mulheres. Enquanto isso, outros policiais olhavam as mochilas. A professora conta que ficou muito assustada, se sentindo completamente impotente e constrangida pois os policiais, mesmo as mulheres, foram bem agressivas: “Elas gritavam: ‘Mão na parede, mão na parede’, olhavam os sutiãs das meninas e apalpavam os peitos na frente de todo mundo. Achei de um constrangimento enorme.” A revista terminou e… nada foi encontrado. Os policiais avisaram que a turma poderia continuar a avaliação. Mas os alunos, nervosos, preferiram abandonar a prova.

Mais de dois anos se passaram e o estudante Bruno* ainda se lembra do ocorrido: “Eu nunca tinha levado um ‘baculejo’ na vida e levei nesse dia. Acho que só revistaram a gente pois nossa turma era a “turma de atrasados”. Éramos visto como os “pesados” da escola. Enfim, me senti mal pois eu era ‘de menor’ e estava em um ambiente educacional. Não procurei saber se isso era correto, pois na minha opinião não achei correto.”
Após a abordagem a professora foi até a direção da escola para entender o que tinha acontecido. A direção disse que o celular de um aluno, que não era do CDIS, tinha sumido e havia suspeita de que poderia ser um aluno de lá o responsável pelo roubo. Martha argumentou que a situação tinha prejudicado os alunos e a direção alegou a existência de uma parceria com o batalhão escolar, que os alunos e pais estavam cientes da possibilidade daquelas abordagens e não reconsiderou a prova.
Prevenção
Policiais do Batalhão Escolar do DF recebem uma formação específica dada em três meses de curso onde são abordados conteúdos relacionados aos direitos da criança e adolescente: “Você vai fazer uma operação na escola. Ela é totalmente diferente de um show, por exemplo”, conta o tenente Eron Dias Borges.
De acordo com o tenente as ocorrências mais graves são relacionadas ao uso de drogas, porte de armas brancas e brigas. O oficial conta que as direções das escolas têm contato tanto com o Batalhão Escolar quanto com os batalhões normais e que, quando é necessário, os policiais de área também atuam nas escolas.
“Em uma emergência os policiais que não fazem esse curso têm a formação básica da PM então só tem que adequá-la para as escolas”, afirma o tenente .
Criado em novembro de 1989 por meio do Decreto nº 11.958, o Batalhão Escolar, unidade especializada da Polícia Militar do Distrito Federal, atua no policiamento ostensivo de escolas. O Batalhão conta com um efetivo de cerca de 380 policiais que desenvolvem um trabalho em três eixos: o Preventivo, que envolve ações como palestras; o Comunitário, que aborda atividades educativas como campanhas de trânsito na porta das escolas; e o Repressivo, onde se enquadra a Operação Varredura.
Por todo o DF estão espalhados 16 pólos do Batalhão Escolar, que funcionam geralmente dentro das escolas consideradas mais violentas de sua regional. Do pólo os policiais atendem chamados de todas as escolas da região.
O Centro de Ensino Fundamental da quadra 102 da Asa Norte cedeu uma de suas salas para sediar um pólo do Batalhão Escolar desde o ano passado. A diretora France Rose afirma que a atuação da polícia diminuiu bastante a violência dentro da escola.
“Foi tudo um processo. Trabalhamos com palestras, fizemos um trabalho preventivo, então, essa ação de fazer revista, pegar drogas e levar para a DCA (Delegacia da Criança e do Adolescente) diminuiu muito. Mas ainda há algumas ocorrências nos arredores da escola”, afirma France.
Devidamente fardados e munidos de armas, como um policial militar comum, os policiais que se concentram no pólo da 102 norte circulam pela escola como qualquer funcionário, mas a diretora afirma que o Batalhão só entra em ação com a sua autorização.
“Quando tem punir e agir como polícia eles agem, mas só com a minha autorização. No resto do tempo a sala deles fica aberta para conversas e eles também dão palestras e conselhos”, conta a educadora.
Quando solicitados os policiais também atendem chamados de outras escolas da Asa Norte. Para Rosilene Corrêa, diretora do Sindicato dos Professores, a presença da polícia no ambiente escolar e seu papel preventivo de combate à violência devem ser vistos com cautela. De acordo com ela, o sindicato recebe muitas denúncias por parte dos professores que relatam abusos, constrangimentos e violências: “Muitas vezes eles chegam direto para fazer essa varredura e isso causa um mal-estar muito grande, coloca todo mundo na mesma condição de suspeito, e isso não é legal”.
Constrangimentos
Relatos de situações constrangedoras como aquela vivida pela professora Martha e seus alunos em 2014, no Núcleo Bandeirante, são comuns em diversas regiões administrativas do Distrito Federal. A presença de viaturas e ‘batidas’ policiais, é considerada natural pela comunidade escolar, porém intimidatória.
Em junho de 2015, no Centro de Ensino Fundamental 316, de Santa Maria, a professora Fátima* viveu uma situação parecida. Fátima recebia seus alunos do 6º ano “H” quando dois policiais chegaram na porta da sala e sem pedir licença entraram e começaram uma revista: “Eles revistaram uns três ou quatro garotos nesse dia e esses meninos ficaram marcados. Durante todo ano esses garotos foram revistados, em sala ou no pátio, na frente de outros colegas”, conta Fátima.
E as revistas não ocorrem só em escolas da periferia. Atuando como professora de artes em uma escola pública do Plano Piloto nos anos de 2013 e 2014, Cíntia* presenciou algumas abordagens: “Eu ficava dividida porque entendia que tínhamos uma responsabilidade com as famílias de zelar pela segurança dos alunos, mas ao mesmo tempo queria protegê-los do constrangimento e do sentimento de repressão”, relata a docente. Na escola de Cíntia as revistas ocorriam com frequência e embora os alunos fossem avisados, havia um clima de desconforto: “O que me deixava realmente triste é que a repressão não era seguida por um trabalho de acolhimento dos alunos e reintegração nas atividades escolares. Ao contrário, o maior objetivo era transferir o aluno ‘problemático’”, lamenta a professora de artes.
O tenente Eron nega que o objetivo das revistas seja reprimir ou constranger e que o batalhão só entra em sala com a autorização dos professores: “Em momento nenhum o aluno é exposto ou ridicularizado. Só que essa coisa de revistar é uma ação enérgica, então muita gente vê como algo ruim. Mas estamos sempre adequando nosso trabalho e orientando os policiais para que não causem nenhum constrangimento”, afirma o oficial.
Porém, a professora Fernanda*, que teve seus alunos do 6º ano de uma escola pública do Itapoã revistados dentro da sala no ínicio desse mês de setembro, conta que não teve escolha: “Eles disseram que a coordenação havia chamado e eu tive que acatar”. Na sala de Fernanda foi encontrado e recolhido apenas um isqueiro.
Segurança
Na escola de Martha as abordagens policiais viraram tema de uma peça de teatro no final daquele ano. O espetáculo “Violência gera violência” foi a forma que os alunos encontraram para discutir a segurança no ambiente escolar e a ação da polícia. Naquele mesmo ano, várias outras revistas ocorreram dentro de salas de aula do Centro de Ensino Fundamental 01, do Núcleo Bandeirante.
Embora esteja amparada por um decreto, a presença dos policiais no cotidiano das escolas foi muito questionada pelos professores entrevistados: “Talvez algumas escolas até precisem recorrer à polícia. Mas ali, numa escola de ensino fundamental, no turno diurno, onde eu nunca tinha me sentido ameaçada, ali naquele contexto era extremamente desnecessário”, afirma Martha Moraes.
O Comando do Batalhão Escolar afirma que as operações varredura, onde acontecem as revistas, são realizadas somente quando há algo suspeito e com a autorização da direção da escola, e que a repressão é relativa: “Achar que é violento porque é uma criança, isso é muito subjetivo. Muita gente acha isso violento, mas cabe a direção da escola julgar e nos reportar”, completa o tenente Eron.
Entretanto, a assistente social e Conselheira Tutelar Clementina Bagno, alerta que abordagens e revistas que coloquem os estudantes em situação vexatória é considerado crime pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: “A polícia militar muitas vezes esquece que o papel dela é de proteção e não de punição”, afirma.
De acordo com Clementina, as escolas devem entender que prevenção ao crime se faz com políticas educativas e não com política de segurança repressiva: “Temos casos de algumas escolas que chamam a polícia militar em todas as situações, até mesmo problemas que deveriam ser resolvidos pela própria escola. E isso é muito ruim”, comenta a Conselheira.
Clementina reconhece a existência de escolas onde os índices de criminalidade exigem mais do que ações preventivas, mas acredita que é necessário buscar soluções conjuntas amplas, com outras entidades, e não apenas deixar nas mãos da polícia.
A diretora do Sindicato dos Professores também defende a busca por soluções conjuntas: “É claro que tem aqueles que acham que basta ter a polícia e as coisas se resolvem mas a gente precisa ir além disso. Nós precisamos de polícia, mas também precisamos de políticas públicas e de melhores condições dentro das escolas”, completa Rosilene Corrêa.
*Os nomes verdadeiros foram trocados a pedido dos entrevistados, para preservar suas identidades.