O canto dos pássaros, ao observar o movimento ali no pátio, era agitado. Os pés das crianças traziam uma pressa, ao caminhar pelos corredores, esperando chegar até a sala de aula e aprender um novo número ou uma nova palavra. Os papéis espalhados na mesa da professora com desenhos tão ricos em detalhes quanto as folhas das árvores do campo, deram espaço para o vazio. A mesa agora estava vazia. Mas, agora o (en)canto dos professores busca tirar a lacuna que a crise impôs. Antes da volta das aulas presenciais ou depois, o esforço desses professores é de diminuir a evasão escolar.
A escola fica na margem da DF-130, no Café Sem Troco, área rural da região administrativa do Paranoá. São nove salas de aula – que atendem ao todo dezoito turmas, sendo nove no turno matutino e outra nove no vespertino – uma sala de robótica, uma sala dos professores, uma sala de coordenação, secretaria, refeitório, uma sala de recurso, uma para a pedagoga, outra para o Serviço de Orientação Educacional (SOE) e mais uma para a educação integral, que atende 100 alunos, sendo 50 estudantes em cada turno. Nem tão grande e nem tão pequena, mas parecia caber um mundo inteiro quando os alunos estavam ali. A escola era da comunidade.
O eco da pandemia
O ano era 2020. Era – uma quarta-feira à noite, dia 11 de março – e a chegada extasiante das crianças na Escola Classe Café Sem Troco, não seria mais ouvida desde então, de forma presencial. O decreto que duraria cinco dias, 15 dias, durou mais de 365 dias.
“Estamos tentando fazer com que essa perda seja a menor possível”, declarou a diretora Sheyla Cristina Alves Passos. Os 18 professores da escola abraçaram a comunidade Café Sem Troco, mesmo com tudo parando e a equipe da escola se voluntariou para manter as atividades. As escolas da rede pública só retornariam, oficialmente, em julho daquele ano, mas a E.C. Café Sem Troco, ou Cafelândia como é conhecida pelos alunos, continuou suas atividades de forma adaptada desde abril de 2020.
Cerca de 400 alunos compõem a escola, localizada na maior comunidade rural do Distrito Federal. Café Sem Troco tem apenas 22 mil habitantes e sonhos não contabilizados. Em um momento de distanciamento, a comunidade nunca esteve tão próxima da escola, o que auxiliou na surpreendente retenção dos alunos no ensino online. O trabalho de integração sempre fez parte do D.N.A. da instituição. “Trazer a comunidade é importante. A escola é da comunidade”, afirma Sheyla Cristina.
Grupos de Whatsapp, vídeos, Youtube, áudios e fotos já eram trabalhados pela escola. Assim, a transição tecnológica – agora, forçada pela pandemia – teve boa aceitação pelos pais e responsáveis. “Antes era o aluno e o professor, os pais não tinham tempo, e hoje com esse distanciamento, onde a gente precisa contar com o apoio da família, porque sem eles a gente não conseguiria o avanço cognitivo dessas crianças, a educação se tornou mais afetiva”, explicou a professora Tânia de Sousa Rodrigues.
São 7h30 de uma segunda-feira, que poderia ser uma sexta-feira, ou qualquer outro dia de semana. Essa é a hora que a professora Tânia coloca a aula do dia no grupo da turma para os 21 alunos, que formam um segundo ano do ensino fundamental. Os alunos já sabem e os pais já se preparam, e não é segredo que a participação da família na Cafelândia faz diferença no processo de aprendizagem dos alunos, no meio desse período tão turbulento.
Quando a maioria não tem Wi-fi em casa são os dados móveis dos pais que dão conta do recado. “Às vezes, eu recebo mensagem de pai ou de mãe dizendo ‘professora, meu filho não fez a atividade hoje, porque minha internet acabou, mas amanhã cedo eu estou colocando crédito no meu celular’. É um compromisso incrível que eles têm com a educação dos filhos e isso deixa claro para a gente que educação e família andam juntos, escola e comunidade andam juntos”.
Com o acesso limitado à internet, além dos dados móveis, uma das opções que a comunidade possui é a internet via rádio, que é bem instável. “No início da pandemia a nossa Internet não era boa, utilizamos a internet via rádio e assim, ficava mais caída do que funcionando. Tivemos um pouco de trabalho sim, porém trocamos e colocamos a internet 4G aqui e tem dado para todos poderem estudar. Porque eu também estudo, meu esposo estuda, então nós nos vemos com essa necessidade de uma internet boa, por causa do cenário que estamos, todo mundo estudando em casa e graças a Deus, ela não foi prejudicada. Dentro do possível, a internet tem atendido as necessidades”, explicou Gisele Alves da Silva Oliveira, mãe de Maria Cecília Alves de Oliveira, que concluiu os anos iniciais do ensino fundamental na E. C. Café Sem Troco ano passado e Ana Luiza Alves de Oliveira, que está cursando o 4º ano na escola.
Já Joelma Santiago Dias – mãe da Juliana Santiago Rodrigues, de 10 anos, que frequenta o 4º ano na escola e de João Miguel Santiago Rodrigues, de 6 anos, que frequenta o 1º ano – explica que optou pela apostila impressa oferecida como alternativa pela escola, para evitar que os filhos tenham alguma perda no aprendizado.
“A internet aqui tem hora que tá boa, tem hora que tá ruim. Inclusive, meu menino ia estudar online, mas acabou que eu optei pela apostila impressa, porque a internet nem sempre tá boa. Na dúvida, é melhor ele utilizar o material impresso para não perder as atividades”, explicou a mãe.
O Zap não para
O Whatsapp da professora ficou bem movimentado pelo resto do dia, os alunos tiram dúvidas e enviam as atividades para a professora até meia noite, em alguns casos. “O dia de aula que se você for contar em horas, tem mais de 25h, porque a gente não tem hora mais. Tem hora para começar, mas não tem hora para terminar”, disse a professora Tânia – realidade vivida pelos quase 26 mil educadores em cada canto do Distrito Federal, na rede pública, e tantos outros em todo Brasil.
Acorda, liga o computador, posta aula, atende aluno e atende o responsável. Arruma um tempinho para almoçar, corrige as atividades e acompanha uma live de aprimoramento pedagógico. Mais tarde, já tem uma pilha de louças para serem lavadas, e mesmo nesse ritmo, já tem outro aluno para ser atendido, chão para varrer e uma reunião para participar. Bebe água, atende os pais, vai ao banheiro e faz o planejamento do dia seguinte. Já são dez, onze, meia noite e tudo de novo.
“Dificuldade. Palavra que, nesse um ano e meio, faz parte do nosso dia a dia”, afirmou com sinceridade a professora Tânia de Sousa Rodrigues, da E. C. Café Sem Troco
Tantas mudanças ocorreram do lado de fora, no mundo, e mais ainda do lado de dentro, na mente e na alma, dos professores. Toda semana é uma reunião, toda semana é um encontro virtual com alguém e conciliar o trabalho com a casa se torna uma tarefa quase utópica.
“Fora as dificuldades, no meu caso, de lidar com a tecnologia, porque de um nada, você estava numa sala de aula com quadro branco e um pincel, com um livro e de repente, você só tem o seu celular, o seu computador e a coragem para ir correr atrás”, diz a professora Para ela, as dificuldades foram importantes para a consolidação de uma “vitória”.
“Vou te confessar que no começo no ano passado, eu particularmente, quase surtei e quase tive uma crise de pânico e ansiedade. Com medo de não dar conta porque era tudo novo. É tudo novo ainda, porque todo dia é um dia diferente, é um obstáculo que você tem que vencer e um acúmulo de coisas, porque se a gente, se eu cruzar os braços, eu não estaria aqui hoje para te responder essa pergunta e a nossa escola como um todo, não estaria se destacando como ela vem se destacando”, desabafa.
Assim como a professora Tânia, o professor Gledson Araújo Tintino logo pensou nos alunos e como eles seriam prejudicados. Primeiro, veio o choque da realidade. Depois, um desalento com a demora da decisão da secretaria de Educação. “A gente fez vários cursos, como o Google Classroom, Google Meet e isso acabou tardando a ação de atendimento dos alunos, isso no Distrito Federal, porque em Goiás e o pessoal já decidiu logo trabalhar com WhatsApp e o atendimento foi muito mais rápido certo”.
Nos primeiros meses de pandemia, a angústia, a ansiedade e a impotência foram sentimentos reais na vida do professor Gledson, que se viu mergulhado em tanta informação e situações novas, sem avanço a vista para a educação. “Por que não fazem algo que vai dar resultado logo e depois a gente vai ajustando?”. Os alunos do Café Sem Troco possuem uma realidade diferente e dificuldade de acesso a internet, precisavam de uma atenção diferente.
Remédio e angústia
“Eu tive que tirar uns dias para me cuidar, tive que tomar remédio para conseguir dormir, porque não estava conseguindo dormir, muito ansioso Sempre gostei muito de trabalhar olhando no olho do aluno, de estar ajudando, de tá pegando na mão e conduzindo nas atividades, porque esse é o trabalho que nós professores desempenhamos, que faz o diferencial no aprendizado”. Com o coração angustiado, o professor se dedicou a aprender produção e edição de vídeo para ajudar os 100 alunos da educação integral, os quais ele é responsável. “Aí é onde entra a gente tentar buscar um equilíbrio entre essa ideia de saber que estamos fazendo o que é possível nesse momento e que o que é possível nesse momento, não se compara com o presencial”, disse.
O professor Gledson possui um olhar sensível à realidade dos alunos, por isso doeu, e preza por respeitar os limites de acesso à internet, evitando a sobrecarga dos aparelhos dos responsáveis com excesso de material, adequando-os da melhor forma possível. Como professor, ele ouve, ensina e conduz, a pandemia não pôde mudar isso.
Os professores garantem que a equipe da da E.C. Café Sem Troco é envolvida e unida para encarar as limitações e abraçar os diferenciais da comunidade. O desgaste físico e psicológico dos professores existe, mas “em momento nenhum, eu me deixei abater e acho que a nossa equipe também não. Então, por isso, que a nossa escola hoje, apesar dos pesares, consegue se destacar com os poucos recursos que a gente tem, mas com muita garra”, afirmou a professora Tânia.
O mundo da Cafelândia
Paulo Freire defendia que “os homens se educam entre si mediados pelo mundo” e a Cafelândia parece conhecer bem esses princípios. O aluno, alfabetizado ou não, possui uma cultura e na sala de aula, ou no grupo de Whatsapp, não é melhor nem pior do que a do professor. São apenas diferentes e as duas trarão aprendizado aos envolvidos, um aprenderá com o outro e para isso, é necessário que as relações sejam afetivas e democráticas, garantindo a possibilidade de todos expressarem suas ideias e habilidades.
Valorizar a vida no campo é a proposta do projeto “Talentos do campo”, na E.C. Café Sem Troco. Ele surgiu em 2020, e geralmente, dura uma semana, na qual as crianças mostram quais tipos de atividades eles desenvolvem em casa, o que plantam, os animais que cuidam, como ajudam os pais “na lida da vida campesina”. O lugar onde essas crianças nasceram, cresceram pode sim oferecer oportunidades, a vida no campo tem seu valor e os costumes são uma grande herança.
A escola também busca incluir toda a família no processo de ensino, se uma frase pudesse definir a escola, que carrega tantas histórias, seria algo como: A comunidade e a escola andam juntos, a família e o aprendizado andam juntos. “O que mais marcou, tanto para mim como para os meninos, que até eu participei, foi a semana do campo. O livro também foi legal, mas o que eles gostaram mais foi a semana do campo. Porque, aqui tem muita planta, eu gosto muito de cozinhar, essas coisas. Inclusive, eu fiz até um bolo de jatobá pela primeira vez, eu participei”, disse Joelma Santiago, mãe da Juliana e do João Miguel.
As crianças do Café Sem Troco também têm a oportunidade de expressar seu potencial artístico no “Meu Aluno é Show”, um evento em que elas dançam, cantam, recitam poemas, cozinham, encontram seus talentos e “dão um show mesmo”. O criador e coordenador do projeto é o professor Gledson, o envolvimento dos alunos no projeto é grande e vai da educação infantil aos alunos do 5° ano. Levantar a auto estima das crianças, mostrar para elas que mesmo trabalhando, os pais sem muitas condições, eles morando em uma área rural, “na roça’”, o objetivo é ressaltar que eles têm valor. “Eles dão show, viu!? Eu falo uma coisa para você, esses nossos alunos dão show!”, disse a professora Tânia.
O projeto “Eu tenho valor” é desenvolvido com as turmas de 5° ano da E. C. Café Sem Troco, que é a última série oferecida pela escola, então, por estarem saindo da Cafelândia para novas etapas de aprendizagem, os alunos conhecem diferentes profissões. O propósito é valorizar a criança e mostrar diferentes possibilidades, com pessoas que vieram do ensino público, como enfermeiros, professores, bombeiros, policiais, escritores, atletas, jornalistas e muitos outros. Eles compartilham suas vivências com os alunos, dificuldades e conquistas, os olhos das crianças brilham ouvindo imaginando o que as espera. “Eles não dizem mais ‘eu quero ser isso’, mas ‘eu posso ser tudo o que eu quiser’”, disse a diretora Sheyla Cristina.
Papel e caneta
Já o “Pequenos Escritores” é voltado para o incentivo do gosto pela leitura. São trabalhados diversos autores, principalmente brasilienses, e cada turma escreve um livro durante o ano, que é assinado por todos os alunos. Os pais percebem o crescimento dos filhos que estudam desde pequenos na escola, esse projeto possibilita ao responsável acompanhar os livros dos seus pequenos escritores.
Esse projeto foi o que mais aqueceu o coração da família de Gisele, mãe de Maria Cecília de Oliveira e Ana Luiza, e arrancou sorrisos das filhas. “Os que mais me emocionaram e que elas mais gostaram, foram os saraus literários, porque elas escreviam uma história, faziam um desenho. Eles tinham o cuidado de imprimir um mini livro e a criança, no dia da do evento aberto à comunidade, tinham a oportunidade de autografar aquele livrinho para os pais. Para eles aqui dali era um momento de suma importância, eles se sentem muito importantes. A gente sente, a gente se emociona, é muito gratificante”.
Além disso, em 2021, a escola está participando da Jornadinha Literária do DF e realizando encontros com autores de forma remota. Os alunos escrevem cartas para os escritores, constroem as personagens das histórias com massinha de modelar, com lama, com o que tiver e até criam recontos das histórias. “É isso que a gente quer mostrar para ele, você pode ser igual a um escritor que veio aqui”, disse a professora Tânia.
O professor é o início
“Professor é a profissão que inicia todas as outras”. Maria Cecília Alves de Oliveira, que concluiu os anos iniciais do ensino fundamental na E. C. Café Sem Troco em 2020, não conhece pessoas com maior paciência do que os professores para corrigirem, ensinarem, ajudarem, explicarem e apontarem o caminho de oportunidades como a faculdade, o estudo para garantir um bom emprego e a liberdade de sonhar sempre. “O papel do professor é até difícil da gente descrever, porque hoje em dia se tem muita assim ‘Ai que é um advogado, é um médico, é um juiz’, mas não existe juízo médico ou advogado, sem professor. Eu acho que a população brasileira precisava entender isso, o professor é a base de tudo, de todas as profissões”, disse Gisele, mãe de Maria Cecília e Ana Luiza, que sempre ensinou as filhas o respeito aos educadores, é algo básico para a família. “Eu ainda sonho com um dia que professor, vai ter o seu devido valor, mas eu sempre, desde o início, eu sou de família humilde e como a minha mãe sempre me ensinou a respeitar a todos”.
O professor na comunidade Café Sem Troco é respeitado, assim como a comunidade Café Sem Troco é respeitada e ouvida pelos professores. O diálogo é o que sustenta as relações na região, e ao se colocar no lugar do outro, os problemas são resolvidos da melhor forma possível. Mesmo quando o olho no olho foi cortado, pela pandemia, o diálogo se intensificou. Agora, é coração no coração, ensino com afeto e muito mais sentimento. Nem sempre são bons, porque existe desgaste e cansaço.
O que incentiva os professores do Café, do Distrito Federal e do Brasil é ver a evolução de seus pequenos grandes alunos, ver as crianças crescendo e aprendendo a se comunicar, a respeitar, a ler, a escrever, a obedecer, a amar e a se encontrar.
Diversão
Os filhos de Joelma, Juliana e João Miguel, olham para suas professoras e dizem: “Acho ela muito legal!”. Esse adjetivo, assim como a escola, pode parecer pequeno, mas cabe um mundo inteiro quando é dito pelo aluno. É poderoso o potencial de transformação que os professores têm, e o aprendizado se torna tão divertido, que todos querem logo voltar para a Cafelândia. “Assim, a aula online tá boa. Só que não está tão bom, porque eu gostaria de estar indo para escola, mas fora isso, os professores sempre respondem na mesma hora, estão ensinando tudo direitinho, eu só gostaria de estar indo para escola, mas como tem o coronavírus não estamos podendo ir”, disse Ana Luiza do 4º ano, filha de Gisele.
Por Milena Castro