A discussão sobre a implementação de cotas raciais no ensino superior tem ganhado destaque nos últimos anos. Como uma medida essencial para promover a inclusão e a diversidade no ambiente acadêmico.
Porém, dados coletados pelo Instituto Semesp corroboram à análise de crescimento pouco significativo de docentes negros.
Nos últimos 10 anos no âmbito das universidades, tanto públicas quanto privadas. Onde os números de declarados pretos avançaram de 2,1% para 3,3% enquanto o número de declarados pardos avançaram de 19,1% para 21,4%.
Não é diferente para o número de estudantes que também continua em baixa. Havendo uma mudança de declarados pretos de 7,1% para 8,9% enquanto para declarados pardos sai de 28,2% para 37%. Estudantes e docente diagnosticam ser devido a crescente quantidade de fraudes que ocorrem pela falta de bancas de heteroidentificação adequadas.
Olhar acadêmico
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Imagem: Acervo pessoal
“O saldo poderia ser melhor se nós não tivéssemos tantas práticas abusivas e que prejudicam a política”, afirma o professor Nelson Inocêncio, da Universidade de Brasília (UnB). Ele é doutor e estudioso do debate da questão racial, vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e já ministrou aulas como Pensamento Negro Contemporâneo.
“A política poderia ter avançado muito mais se tivéssemos adotado os mecanismos e os procedimentos adequados”.
Deste modo, estudantes negros muitas vezes não se sentem representados e não se veem junto aos seus pares devido à toda essa questão de baixa quantidade e oportunidade de ingressantes negros poderem estar presentes nas instituições, tanto como docentes quanto como estudantes.
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Imagem: Acervo pessoal
O aluno Thiago Ferreira, de 22 anos, entrou por cotas de Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) e por cotas de escola pública na UnB. Afirma que “deveria ter uma maior porcentagem de vagas para alunos cotistas, porque eu acho que é muito pouco”.
Na justificativa da prorrogação da lei de cotas apresentada pela Unicamp, apresenta dados que corroboram com o apontamento do estudante. Onde demonstra que dentre o quadro de graduação da Universidade de Brasília a comunidade negra somatiza 32,30% sendo que no Distrito Federal a população negra é de 52,40%.
Com a aprovação da Lei de Cotas efetivamente, foram destinadas 50% das vagas em cada curso para estudantes de escolas públicas. Sendo fracionadas em percentuais específicos para estudantes negros (declarados pretos ou pardos), pessoas de baixa renda (pela Cota Renda), indígenas (incluídos à cota de PPI) e alunos com deficiência (Cota PcD).
Ele acrescenta que ao perceber que é baixo esse número em um ambiente acadêmico, sente-se às vezes isolado.
“Eu acho que essa falta de representatividade no ambiente acadêmico é algo desesperador para quem é negro, sabe? Enquanto preto, às vezes eu me vejo muito isolado.”
Thiago Ferreira
Dados comparativos
O Instituto Semesp, que possui experiência no levantamento e análise de dados sobre o ensino superior, tem como objetivo disponibilizar informações relevantes e que permitam servir ao público para tomadas de decisões e formulações de pensamento crítico.
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Fonte: Instituto Semesp
Deste modo, foi feita uma pesquisa e análise de resultados perante os últimos 10 anos de vigência na Lei de Cotas nas Instituições públicas e privadas. Levantando tanto o número de docentes quanto o número de estudantes.
Sendo possível observar que o número de declarantes pretos se manteve baixo, comparado ao número de declarantes pardos que houve uma crescente significativa em meio aos estudantes. Enquanto em meio aos professores não houve um saldo tão notável.
Sendo apresentados tais dados aos professor Nelson Inocêncio, ele comenta que concorda haver ligação da implementação da Lei de Cotas ao crescente número de estudantes. Entretanto, como fora apresentado anteriormente, há a questão da fraude nesse sistema, consequentemente, havendo uma dificuldade significativa de negros de fato entrarem nas instituições superiores.
“Acredito que a política de inclusão, a política de cotas raciais tem contribuído para uma presença mais substantiva da população negra no espaço universitário. Eu também concordo que a continuidade da política vai fazer com que a presença negra chegue a um patamar, digamos, próximo do desejável. ”
Nelson Inocêncio, professor
Novamente, o estudante Thiago Ferreira comenta sobre esse apontamento de fraudes. Tornando possível notar que até mesmo os alunos percebem a falta de ferramentas adequadas de identificação. “Acredito que deveria ter uma banca de heteroidentificação mais forte dentro da universidade. E deveria ser estabelecido mais políticas para que não haja fraude dentro desse sistema.”
Baixa representatividade
Ele complementa que esse baixo número de negros no ensino superior, tanto de professores quanto de estudantes, se torna um fator decisivo da permanência do estudante no meio acadêmico.
“Chega um momento que é meio cansativo. Ser um dos dois ou três ou cinco negros numa sala de 45 pessoas. Então seria bastante interessante essa questão da representatividade, porque chega um momento que, além de cansativo, é um fator muito importante para nossa própria desistência.”
Thiago Ferreira
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Imagem: Acervo pessoal
Já para a estudante Amanda de Queiroz, de 21 anos, que ingressou por cotas pelo Prouni em uma universidade privada.
O desafio foi se entender como mulher negra e de pele clara. Compreender que, mesmo que as pessoas não a vissem desse modo, era preciso uma autoanálise e sentir-se confortável com isso.
Consequentemente, compreender que o espaço que estava ocupando era muito disputado e que por muito tempo não era direito de pessoas negras.
“Se você olhar, assim, um pouquinho com mais delicadeza para o ambiente, você começa a notar que você não é igual aquelas pessoas brancas, que você ocupou um espaço ali muito disputado e que durante muito tempo não eram para pessoas negras.”
Amanda Queiroz
O fator de mudança
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Imagem: Acervo pessoal
O universitário Carlos Henrique Rodrigues, de 20 anos, da UCB, faz um apontamento quanto à origem dos estudantes como um fator determinante no desafio de ingressar em um ensino superior.
“Na minha visão, o principal desafio que um estudante negro enfrenta ao ingressar no ensino superior seria exatamente a sua origem, de onde ele vem, que é majoritariamente do ensino público, que muitas das vezes é precário.”
Carlos Henrique Rodrigues
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Imagem: Acervo pessoal
Guilherme Kauã Oliveira, de 20 anos, entrou por cotas de Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) e por cotas de escola pública na UnB. Concorda que o ensino básico de qualidade faria a diferença na vida do ingressante negro no ensino superior. “O problema é prévio. Porque se a gente tem um ensino básico que prepare a pessoa para fazer o Enem, pode sim ser efetivo.”
Ele acredita que muitos dos estudantes que ingressam no ensino superior advindos das instituições públicas acabam saindo prejudicados e muitas vezes julgando-se impostores no novo meio em que estão inseridos.
“Você percebe que a cota te colocou ali. Mas você de certa forma tem uma síndrome de, não sei se é isso, uma síndrome do impostor. Será que é para eu estar aqui? A galera é tão boa. Não que eu não seja, mas a galera aqui já foi para França, já foi para Disney. E eu vivi muito menos.”
Guilherme Kauã
E por experiência própria, o universitário explica de modo mais aprofundado que acha que é um pouco disso que acontece com quem entra por cota e com quem vem de uma realidade que até então não existia aquela situação. “É a partir do momento que existe, que ele percebe que a cota o colocou ali, mas ele se questiona: Será que ela vai me manter aqui?”
Amanda de Queiroz compartilha desse sentimento, porém já apresenta um ponto de vista mais otimista incentivando a “não cair nessa auto sabotagem de achar que não é capaz”.
O papel do docente negro
Para Nelson Inocêncio, o papel do educador negro na sala de aula é de suma importância não somente para os estudantes negros como também para os brancos. “Eu mesmo já passei por experiências muito interessantes de até mesmo alunos chegarem para mim, tanto alunos negros quanto brancos, dizerem a boa surpresa e o fato de ter um docente negro em sala”.
Porém, claro, é um fator ainda mais marcante e significativo para os estudantes negros. Pois, segundo ele, “só o fato de ele estar ali presente, é uma dimensão simbólica para a população negra, porque é uma referência e um sinal de que é possível chegar neste lugar.”
Ele complementa que um espaço mais diversificado de educadores negros promove uma discussão sobre essa diversidade não ser um demérito e sim, uma qualidade. E somente promovendo essa diversificação que será possível haver tal resultado.
“Isso é uma provocação muito positiva, uma provocação necessária. Se a gente quer pensar, se a gente quer discutir, uma sociedade onde a diferença não sirva como demérito, mas onde a diferença serve como uma qualidade. Então, isso é muito necessário.”
Nelson Inocêncio, professor
Guilherme Kauã Oliveira concorda e complementa associando a presença de um docente negro à uma experiência e sensação de criança. “É muito aquele sentimento de criança. Era como se eu tivesse sete anos de idade e eu visse o meu herói preferido ali, naquele terno, na cadeira que eu sempre sonhei.”
E o futuro?
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Imagem: Acervo pessoal
A estudante Samara Messias, de 19 anos, do Centro Universidário do Distrito Federal (UDF), pontua que, além de ser importante o papel do docente negro em sala. Também é necessária uma ação conjunta dos educadores juntamente com a direção e coordenação das instituições para promover ações como palestras, incentivo aos estudos acadêmicos e projetos integradores, afim de conscientizar e incluir.
“Eu acredito que o papel dos educadores e administradores na promoção da representatividade são importantes para fazer e sugerir palestras, atividades, projetos inclusivos e conscientes.”
Samara Messias
E complementa que os benefícios da diversidade étnica no ensino superior de maneira geral é “contribuir com uma sociedade mais igualitária e justa, diminuindo a desigualdade e combatendo, principalmente, o racismo estrutural”. Tornando possível a formação de profissionais que também serão referências no futuro.
Por Ana Beatriz Cabral Cavalcante
Supervisão de Vivaldo de Sousa