Sem holofotes: a história do time da Samambaia, xará de alemão, que trabalha por uma comunidade

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Schalke 04 é um clube da cidade de Gelsenkirchen, um distrito na Alemanha, que possui cerca de 260.126 mil habitantes (dados do órgão internacional City Population de 2021) e é dividido em cinco regiões e 17 bairros. Nesta história, é como se fosse um vizinho de Samambaia, no Distrito Federal. E o motivo tem a ver com esporte e algo mais. 

Gelsenkirchen é marcado pelas mais diversas ofertas de museus, teatros, arquitetura e por construções imponentes, que levam a cidade do moderno ao clássico. 

Uma das culturas mais importantes da cidade é o esporte e o Schalke 04, considerado um dos maiores clubes da Alemanha. Com sete títulos nacionais, o clube não anda bem das pernas nesta temporada e no momento que essa reportagem foi escrita, o time estava na penúltima posição do campeonato alemão (Bundesliga). 

Do outro lado do Oceano Atlântico Norte e a cerca de 9.186 quilômetros de Gelsenkirchen, tem o Shalke 12, que é um projeto social voltado à prática do futebol por meninos, meninas, crianças e adolescentes, localizado em Samambaia, a 12ª região administrativa do Distrito Federal, capital do país. Samambaia possui uma população de mais de 254 mil habitantes (dados do Governo do Distrito Federal do ano de 2021) e está a 35 km do centro de Brasília. 

Criada em 25 de outubro de 1989, a região é a terceira do DF com mais famílias em situação de extrema pobreza, com 8.255 pessoas (dados da Secretaria de Desenvolvimento Social do DF). Por isso, projetos como o Shalke são tão importantes para uma localidade carente como essa. O idealizador da ação social é Farion Lima, professor de educação física, nascido em Ceilândia e que chegou em Samambaia aos sete anos. Tudo isso começou em 2008, ano de fundação do Shalke 12. 

“Fico até arrepiado” 

Na comemoração do Dia das Crianças do Shalke 12. Depois de muitas tentativas, o local escolhido para ser a sede do projeto foi um grande campo de gramado sintético, na Samambaia Sul. A festa aconteceu em um sábado, dois dias após o dia oficial da data comemorativa. Fazia muito calor, mas nada que impedisse de meninos e meninas se divertirem por todo campo jogando futebol.

Farion estava no meio do campo, organizando as crianças em uma brincadeira de “vivo ou morto”. Muito feliz, ele chegou pra conversar comigo. Com camisa e short oficial do Shalke e um boné branco, também do projeto, é até difícil conversar com ele pela quantidade de pessoas querendo falar com o idealizador. 

“Em 2008, o (time alemão) Schalke estava em evidência e, quando eu fui pesquisar a história, eles queriam ter repercussão mundial. Naquele ano eles participaram da Champions League, aí me chamou a atenção, porque eu fui ler um pouquinho […] Quero ser igual ou melhor que eles”, diz com orgulho ao conseguir chegar ao patamar de poder ajudar crianças por sua cidade. 

Ele fala de um sonho “Viajar pra Alemanha pra conhecer a sede do Schalke 04 […] Eu tenho certeza que quando a gente chegar a conhecer a sede Schalke 04 é porque é um trabalho realmente realizado” diz viajando mentalmente a Gelsenkirchen. 

O Shalke dá certo, principalmente, pela força de vontade das pessoas da comunidade. Ao ser indagado por histórias que marcaram a vida do projeto, Farion mostra o braço com pelos arrebitados e bolinhas pela pele, sinais de emoção. “Ave Maria, fico até arrepiado”. 

Farion se emociona ao falar do projeto (Foto: Marco Feitoza) 

No dia mesmo, havia copos personalizados com o nome e emblema do Shalke 12, cheios de doces. Um copo que, para muitos, é apenas um objeto, um pedaço de plástico, mas para aquelas crianças poderia ser o único presente recebido em meses. Cada um que pegava o

copo laranja saia com um sorriso de orelha a orelha. Os meninos eram divididos por faixa etária para receberem seu presente e tirar fotos para registrar o momento, a ansiedade até ser chamado era evidente. 

Farion conta sobre a história do dia das mães. “Eu ganhei 100 rosas de uma artesã, amiga minha. Toda vez que antecede um dia dos pais ou das mães, a gente faz um evento. Eu recebi essas cem rosas”, disse. 

“Chegando lá tinha mais de cem meninos. A ideia era entregar essas rosas para eles, mas lá tinha mais menino do que rosa”. Com o problema da quantidade, o professor conta de que maneira orgulhosa como resolveu a questão. “Tive que montar algum critério, que foi um torneio. Montei tudo e, a medida que as equipes iam tendo o melhor desempenho, eu ia entregando as rosas, só que chegou no final e tinha menino chorando porque não tinha levado a rosa”. Era apenas uma rosa, mas era a forma das crianças demonstrarem o carinho a suas mães. 

Futebol feminino 

Andando pelo grande campo da quadra da QN 311, em Samambaia Sul,a auxiliar de dentista, Lilian Barbosa e sua filha, e a pequena Anna Esther Barbosa, de 9 anos, estão entusiasmadas com a festa. Com uma camisa preta de uma marca alemã, um short jeans e chinelo, Lilian lembra das dificuldades que passou até chegar em Samambaia. “Eu cresci num lar que era só a minha mãe. Eu tenho pai, só que não presente. Eram minha mãe e quatro irmãos, ela criou a gente tudo sozinha. Três já são formados, a outra só não se formou porque não gosta”, conta ela caindo na risada. 

“A gente teve que sair aqui para Samambaia porque minha mãe perdeu a casa. Ela não conseguia pagar IPTU e dar comida, aí perdeu a casa. A gente vendeu lá e comprou uma aqui na Samambaia”, completa a auxiliar de dentista. O que chamou a atenção foi a união entre mãe e filha, as duas passaram a entrevista inteira abraçadas e era perceptível o amor entre as duas. 

Lilian se emocionou ao destacar a importância do projeto para sua filha e para a comunidade. “Aqui é uma história que chega a embargar a voz porque acolhe muitos meninos. Tem criança que chega aqui no sábado, eu mesmo peguei uma cartinha de uma criança que não tinha o que comer. Eu peguei essa criança, levei ela pro carro e fiz uma compra pra ela. Foi pouca, mas eu sei que foi de coração. Não é só um que chega sem tomar café, que chega sem nenhuma orientação”. 

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Já a filha de Lilian era só alegria. Completamente uniformizada, com as vestimentas do Shalke 12, um chinelo branco e roxo e de cabelos amarrados com um prendedor rosa, Anna Esther, com seu jeito de boleira, se divertia muito pelo grande campo de grama sintética do lugar. Mesmo com a alta temperatura, a menina corria de lá pra cá o tempo todo e parecia incansável. 

Anna chegou ao projeto há mais de oito meses, após decidir que também queria jogar futebol. Apesar de gostar de praticar outros esportes, o que faz a garota de nove anos brilhar os olhos é a redonda.

A menina gosta mesmo é de fazer gol. “Meu sonho é chegar no profissional e ir para Seleção Brasileira, ajudar nosso país, né?”. 

Além do sonho de vestir a amarelinha, a garota impressiona pela personalidade. “O que eu acho é que eu não tenho que me inspirar em alguém, eu tenho que ser eu quem eu sou”, disse ela, arrancando risadas de quem estava em volta. 

Na minha visão “Me sentia inferior” 

Em meio a diversas brincadeiras ligadas ao futebol pelo campo, como cobranças de pênalti, uma menina chama atenção pela batida na bola. Era Elizandra Vieira dos Santos, de 14 anos, mais conhecida como Eliz. A menina alta demonstrava felicidade, estando no meio de meninos e meninas, cobrando as penalidades. Com um cabelo curto e cacheado, além do futebol, parece levar jeito para a dança, fazendo coreografias de um aplicativo famoso de vídeos curtos junto de sua amiga. 

Quando perguntada sobre o motivo de estar ali, a menina abriu o coração e revelou um problema que ela enfrentou “Me ajudou na questão da depressão, né […] Antes eu ficava muito sozinha, agora eu venho para os treinos na semana e no sábado, eu consegui fazer mais amigos” diz ela, com uma amiga ao seu lado, esperando terminar sua entrevista. Agora inserida no projeto, a menina relata como foram duros os momentos que passou antes de chegar até ali. 

O sorriso da garota contrasta com os momentos de angústia de antigamente. “Eu desenvolvi depressão por conta de um abuso psicológico que eu sofri na minha infância, entre 7 e 12 anos, por parte de um padrinho meu. Eu era abusada tanto fisicamente, quanto verbalmente […] Eu me sentia muito inferior às pessoas, cheguei a pesar 38 quilos com 12 anos”. 

Incentivada pelo irmão mais novo, que também joga no Shalke e que naquele dia estava disputando uma competição de futebol a quilômetros dali, Eliz começou a se reerguer e está cada dia melhor. “Para minha filha foi muito importante, ela chegou aqui e eles abraçaram ela”, relata o avô Francisco, que chama, carinhosamente, seus netos de filhos. 

De óculos escuros e com a blusa e o boné do projeto inspirado no time alemão, Francisco da Aparecida Alves da Cunha, ou seu Francisco, é só felicidade em ver sua neta superando esse momento tão complicado. 

Agora Eliz é capaz de viver e sonhar. Ao indagá-la sobre o seu maior desejo para o futuro, a menina dos cabelos cacheados diz que quer ser advogada e servir na Marinha. Mesmo com todos os percalços vividos para uma garota de apenas 14 anos, a vida sorriu para a menina, que sorriu de volta para a vida.

Eliz achou no futebol uma cura para a depressão (Foto: Marco Feitoza)

Diagnósticos 

A psicóloga Daiane Ribeiro, que já auxiliou Farion nos atendimentos psicológicos no projeto, contou como o esporte pode ajudar em casos como o de Eliz “No caso de diagnósticos de depressão, o esporte entra como uma base fortalecedora”. O esporte ele vem, de alguma forma, potencializando e intensificando a produção de serotonina, que é a sensação de bem estar, a sensação de prazer”. 

A profissional acrescenta que a serotonina e a dopamina são neurotransmissores que são fundamentais para o equilíbrio emocional. 

“Na comunidade, o esporte entra como um mecanismo de fuga, o mecanismo de fuga seria o que? Ao realizar aquela atividade, acaba se esquecendo ou tornado distantes os problemas que talvez existam no ambiente familiar, no contexto social a qual é inserido. Então, acaba de alguma forma trazendo uma fuga e desenvolvendo outras habilidades, como: o contexto social é ampliado,a interação, raciocínio lógico. O ambiente a qual a criança está inserida no área do esporte acaba trazendo pensamentos mais saudáveis e projetando, de alguma forma, um futuro de qualidade”, acrescentou Daiane, sobre a importância de projetos sociais como o Shalke em comunidades menos favorecidas. 

O lugar no mundo

São mais de 150 crianças que já foram auxiliadas pelo Shalke 12, apesar de não ser o melhor lugar do mundo para se viver, a quadra 311 de Samambaia Sul é um dos locais que traz esperanças à comunidade. 

Diariamente, chegam até lá várias Elizandras, Anna Esthers, Lilians e o que projetos como esse fazem é acolher, dar esperança, novas perspectivas e fazer com que isso se torne um ciclo positivo para a sociedade. 

O tempo que passei lá foi muito importante para o meu crescimento pessoal e profissional, ao redor de várias crianças batendo uma bola, rindo, interagindo entre si. Cada uma que ganhou o copo personalizado do dia das crianças, para muitos seria apenas um copo laranja, mas, com toda certeza, aquele dia e aquele objeto vão ficar marcados na cabeça de muitos que estavam presentes naquele momento.

Por Jorge Agle

Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

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