Na melodia do cotidiano brasiliense, entre copos e bandejas, ecoam as vozes dos garçons e garçonetes, protagonistas invisíveis de uma cidade que pulsa histórias. Seus passos traçam caminhos entre as mesas, enquanto suas histórias se entrelaçam, revelando uma jornada exaustiva. Eles chegam a ocupar o papel de ouvintes dos clientes, mas não costumam ter suas histórias ouvidas.
Vestidos de uniformes e sorrisos eles têm histórias de luta e superação, de sonhos adiados.
“Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Trecho de “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada”
Entre dois mundos

João Pedro na entrada no Chefia Culinária Brasileira
O garçom João Pedro Delmondes Ferreira, 22 anos, entrou no mundo da gastronomia não por vocação. Durante o dia, veste avental e carrega bandejas no restaurante do Conjunto Nacional, Chefia Culinária Brasileira. À noite, sonha com a multidão, o palco e o microfone. Há um ano e meio, começou a trabalhar nos bares e botecos de Brasília, mas sua verdadeira paixão é a música.
“Eu trabalhava na hamburgueria de um amigo. Lá eu era atendente, garçom, fritava batata, fazia de tudo. Aí conheci minha mulher. Ela quis me tirar desse emprego que pagava mal e me colocou de garçom numa boate.”
Garçom, João Pedro Delmondes Ferreira
Ser garçom é uma forma de sustento para João Pedro, mas não seu grande sonho. “Gosto muito de ser garçom, mas meu sonho é fazer música. Ser garçom é pra juntar dinheiro, pagar meu aluguel. Não é algo que quero levar pra vida toda.”
A adrenalina dos turnos noturnos na boate o cativava, mas a carga horária intensa dificultava a dedicação à música. O garçom chega em casa tarde, já que mora no Recanto das Emas.
Ele compartilha que sempre teve uma inclinação natural para o serviço ao cliente, pois acredita que a habilidade de se comunicar bem é essencial para o sucesso em qualquer empreendimento. É essa convicção que o motiva a oferecer um serviço diferenciado a cada atendimento.

João Pedro na entrada esperando por clientes
No entanto, como em qualquer profissão, João Pedro reconhece que há desafios a serem enfrentados. Um deles é lidar com clientes que desrespeitam os garçons. Ele relembra uma situação difícil em que foi injustamente acusado por um cliente de pegar o cartão de crédito que estava com a mãe, sem permissão.
Apesar de ser uma acusação infundada, João Pedro teve que lidar com as consequências dessa falsa alegação, se justificando ao chefe e esperando o que quer que o cliente quisesse fazer. Ele recorda como foi difícil enfrentar o caso, mas também destaca a importância das câmeras de segurança que, por estarem espalhadas por todo o local, ajudaram a esclarecer a verdade.
Para João Pedro e seus colegas, cada cliente representa uma oportunidade de oferecer o serviço, mas também um lembrete de que, infelizmente, nem todas as interações serão positivas. No entanto, é através desses desafios que eles crescem e se fortalecem, sempre buscando manter a calma e a compostura diante das adversidades do dia a dia.
“Feche a porta da direita com muito cuidado
Trecho de “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol”
No bar

Josefa de Carvalho Souza, de 48 anos, dedica-se à profissão de garçonete desde 2016, um caminho que encontrou depois de anos trabalhando como empregada doméstica. O sorriso constante e habilidade de lidar com o público são marcas de quem encontrou sua vocação ao servir.
A jornada profissional foi pontuada por desafios como trabalhar antes como doméstica em casa de famílias que eram exigentes com seus pedidos, e assim, compartilha momentos decisivos que a levaram a repensar a trajetória como a exaustão que lhe causava por ter que cuidar da casa da família e depois ter de chegar em casa e fazer a mesma coisa, deste modo, era como se estivesse trabalhando vinte e quatro horas por dia.
A decisão de mudar de profissão não foi tomada de ânimo leve. Foi o resultado de uma reflexão sobre suas próprias ambições e anseios. Josefa reconhece que o caminho rumo à realização pessoal é repleto de desafios e incertezas, mas é também uma jornada de autodescoberta e crescimento. Seu ingresso na profissão de garçonete representou o ponto de partida para uma nova fase em sua vida. Ela diz que enfrentou cada obstáculo com resiliência, transformando adversidades em oportunidades de crescimento.
O primeiro trabalho dela foi na Renata Laporte, um restaurante premiado em Brasília, e logo depois foi para o Royal Tulip, onde ficou por seis anos.
“Aqui eu trabalho de segunda a sexta. E trabalho sábado e domingo à noite no Bife. Eu me encontrei nessa profissão porque gosto de lidar com gente. Gosto até da parte chata.”
Garçonete, Josefa de Carvalho Souza
E qual é a parte chata? Josefa suspira e começa a descrever, com um leve cansaço na voz, a figura do cliente difícil. Aquele que só reclama, que nunca está satisfeito, que parece acreditar que os funcionários têm o poder de realizar milagres.
Há clientes que pensam que podem receber duas doses pelo preço de uma, que reclamam da comida, que reclamam de tudo. No entanto, para Josefa, essa parte desgastante é mais do que compensada pela parte boa: ver o povo feliz. “Somos um pouco de tudo” ela diz, “até psicólogos”. Nessa profissão, ela conta, que se escuta cada história! E é essa diversidade de narrativas que faz o trabalho valer a pena. A cada dia, uma história nova, interessante e única. Isso, para ela, é o que traz uma verdadeira felicidade.
Josefa teve que aturar clientes grosseiros.
“Clientes que acham que a gente não é gente. Acham que a gente tem que fazer tudo que eles querem e ouvirem tudo que eles querem. Já teve um cliente que veio com muitas conversas meio tortas. Falei pro meu patrão atender porque eu ia mandar ele se lascar.”
Garçonete, Josefa de Carvalho Souza
Ela também lembra da vez que um cliente insistiu em tratá-la de forma desrespeitosa: “É uma coisa que eu não vou esquecer nunca. Isso vai ficar na minha mente o tempo todo.”
Josefa se mudou do Maranhão para Brasília há 30 anos e teve uma trajetória de mudança de rumo. Trabalhou como doméstica, onde enfrentou desvalorização e exaustão até encontrar mais tranquilidade na carreira de garçonete. Hoje, mora com suas duas filhas, que têm 16 e 26 anos, e orgulha-se de vê-las prosperar, especialmente na educação.

“Trabalhar como garçonete foi onde eu me encontrei. Já tive ocasiões de ficar cinco dias sem ir em casa. Sair daqui pra hotel, sair do hotel pra cá, voltar pra lá. E a época que eu mais juntei dinheiro foi na pandemia. O povo pagava pouco, mas tinha, porque quase ninguém queria ir. E eu estava lá.”
Garçonete, Josefa de Carvalho Souza
Josefa diz que há diferenças nas atmosferas que permeiam cada ambiente de trabalho dela.
Ao descrever sua experiência nos luxuosos Windsor da Asa Norte e Asa Sul, assim como no prestigiado B Hotel, Josefa afirma que cada hotel possui sua própria aura, suas próprias regras não escritas e expectativas, moldando assim a vivência diária de seus funcionários de maneira distinta.
Contudo, é além dos corredores impecáveis e salões suntuosos que Josefa compartilha uma sabedoria que transcende as fronteiras físicas dos estabelecimentos: o valor do respeito mútuo. Essa é uma lição que ela aprendeu ao longo de sua jornada, uma compreensão profundamente enraizada na noção de que, no mundo do serviço, as hierarquias são fluidas e as posições podem se inverter a qualquer momento. “Eu amo ser garçonete. Acho que mesmo que eu tivesse estudado, eu seria garçonete.”
“Se você ficar limpando a mesa
Trecho de “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa
Não me levanto nem pago a despesa”
O desafio

Aos 17 anos, João Neto Pereira dos Santos deixou para trás as paisagens verdes da Bahia e desembarcou na capital federal com sonhos tão vastos quanto o céu de Brasília. Seu caminho rumo ao mundo do atendimento começou na icônica lanchonete Rockshock, onde, sob a tutela da Dona Neusa, ele mergulhou de cabeça no ofício de servir. “No começo foi só para lavar copos, mas com o tempo fui me dedicando, principalmente no balcão, e com um pouco mais de três meses eu já estava no salão”, relembra João.
A carreira de João, hoje aos 54 anos, foi carregada de desafios. Com mais de três décadas de experiência no ramo, João Neto carrega consigo um repertório de experiências, entre sorrisos e desafios.
Em uma noite de trabalho, aos 18 anos, ele se viu perseguindo três clientes que não pagaram a conta. “Falei com o rapaz. Eu falei assim: oh, vocês esqueceram de pagar a conta, aí o cara ainda estava com um copo, jogou o copo no asfalto, quebrou o copo e eles me derrubaram, me deram um monte de chutes.” Além da agressão física, João ainda teve o valor descontado de seu salário.
Mas a carreira também é marcada por boas lembranças. Clientes que se tornaram amigos e um patrão que surgiu de uma relação cliente-garçom. “Jorge Ferreira, muitos aqui de Brasília conhecem ele. Ele é falecido hoje, mas era um cliente meu no Café Belas Artes. Ele me convidou pra trabalhar com ele”, conta João, que se desenvolveu profissionalmente sob a orientação de Jorge, chegando a gerente e incentivado a fazer cursos do Sebrae.
Hoje, João olha para trás sem arrependimentos. Embora lamente não ter feito uma faculdade, ele é grato por todas as oportunidades e pelo caminho que trilhou. Em cada mesa servida e em cada pedido atendido, ele entende que deixa sua marca, celebrando a diversidade e a riqueza cultural da cidade.
“Hoje eu ocupo cargos de confiança. Todas as casas que passei, sempre fui iluminado por bons profissionais, e isso agrega à nossa função. Para mim, é uma satisfação muito grande.”
Garçom, João Neto Pereira dos Santos
Por Ana Cavalcante, Luiza Freire e Nara Melo
(sob inspiração dos versos de “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa)
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira