“Estupro é utilizado como forma de controle”, diz ucraniana vencendora do Nobel da Paz

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Vencedora do Nobel da Paz em 2022 e ativista pelos direitos humanos, a jurista ucraniana Oleksandra Matviichuk denunciou, na semana passada, quando esteve em Brasília (DF), que o estupro tem sido utilizado como forma de controle de mulheres do seu País.

A jurista ressalta que os efeitos da violência sexual ultrapassam o sofrimento individual. Esse tipo de violência rompe laços sociais deixando marcas profundas de medo coletivo e transformam a intimidação em um mecanismo de controle duradouro. 

Oleksandra Matviichuk sentada ao lado do 1º secretário da Embaixada da Ucrânia, Oskar Slushchenko

Em evento acompanhada pelo Primeiro-Secretário da Embaixada Ucraniana, Oskar Slushchenko, durante a entrevista, a jurista enfatizou que as violações cometidas por tropas russas contra civis ucranianos trazem à tona testemunhos de violência extrema registrados ao longo da guerra.

Entrevistei centenas de pessoas que me relataram como foram agredidas,  violentadas, colocadas em caixas de madeira, tiveram os dedos cortados, as unhas arrancadas e perfuradas, e sofreram choques elétricos nos seus órgãos genitais”, disse em entrevista à Agência Ceub.

Violência Sexual 

Ela ressalta que os sentimentos de vergonha, culpa e medo, provenientes desse abuso, contribuem para o controle russo sobre as regiões ocupadas, visto que a comunidade se sente mais vulnerável em retaliar.  

“Muitos casos de abuso sexual ocorreram na vida de crianças e outros membros das famílias. E, trabalhando nesses casos, entendi que os russos usam violência sexual para passar uma mensagem a população.”  

Ela considera que os sobreviventes de violência  sexual sentem vergonha. “Suas famílias, vizinhos e  parentes sentem culpa por não terem conseguido impedir isso. E para os outros membros da  comunidade, ainda sentem medo porque podem ser sujeitos ao mesmo tratamento.”

Infâncias roubadas

Entre um dos grupos mais afetados pela guerra estão as crianças ucranianas, segunda avalia a ativista. Ela disse que que enfrentam não apenas a separação de suas famílias mas também processos de adoções forçadas e militarização.

Em dados revelados pela laureada, cerca de 1,6 milhão de crianças ucranianas vivem em áreas de ocupação russa, e mais de 20 mil crianças foram separadas de seus pais.

Quando levam crianças ucranianas para a Rússia,  elas são colocadas em campos de educação russos, onde lhes dizem: ‘vocês  não são ucranianos,  são crianças russas, suas famílias, seus pais abandonaram vocês. Agora serão adotados por famílias russas que os criarão na Rússia.’

Outra preocupação levantada por Oleksandra Matviichuk tem sido a inserção de crianças e jovens em campos militares russos, onde são doutrinadas a seguirem códigos de vestimenta e comportamento semelhantes aos de soldados russos.   

Crianças ucranianas estão marchando, fazendo fila, vivendo em quartéis, usando uniformes militares e aprendendo a usar armas. Aos 18 anos, serão forçadas a se mobilizar para o exército russo, o que significa que lutarão e morrerão em qualquer país para onde a Rússia enviar.

Tortura 

Entre as diversas vítimas da repressão russa, também estão jornalistas que arriscaram as próprias vidas para documentar violações de direitos humanos. Foi o caso de Victoria Roshchyna, colega e amiga de Oleksandra.

“Eu tinha uma amiga e colega, a jornalista ucraniana Victoria Roshchyna. Ela, como jornalista, decidiu que tinha que coletar materiais sobre abdução ilegal, e fazer uma matéria sobre a tortura e assassinato de civis nos locais de conflito. Infelizmente no verão de 2023 ela desapareceu.”

Após o desaparecimento, Oleksandra Matviichuk afirma que, por meses, foram conduzidas investigações de busca até que se descobriu que Victoria havia sido transportada ilegalmente para Rússia, onde fora detida sem acusação legal e torturada até a morte. 

O assassinato brutal não apenas silenciou uma jovem repórter, mas também expôs, mais uma vez, a gravidade das violações cometidas em contextos de guerra e ocupação.

“Quando os russos devolveram seu corpo, ele estava horrível, torturado, e vários de seus órgãos internos estavam faltando. Olhos e cérebro também. Ela morreu apenas uma semana antes de completar 28 anos”.

Drones de caça

Os drones de caça emergem como protagonistas silenciosos na guerra, capazes de vigiar e atacar alvos específicos com precisão inimaginável, essas máquinas transformam não apenas o curso da guerra, mas também a rotina de quem vive sob o risco constante de um ataque aéreo.

A jurista detalha como esses dispositivos são usados para fins que vão além do combate militar.

“Os russos usavam drones para caçar civis. Parece realmente uma caçada porque quando eles guiam os drones. Podem ver quem é o alvo e matam deliberadamente pessoas em bicicletas ou pessoas que só vão passear com seus cachorros.”

Um dos casos que mais a marcou foi o assassinato de um bebê de apenas um ano, morto por um drone enquanto brincava no quintal de casa. A avó da criança teria visto o equipamento se aproximando, mas não teve tempo de socorrer o neto.

“Esse menino tinha apenas um ano de idade. O militar russo que guiava o drone, estava claramente ciente de que se tratava de um bebê, ele sabia na hora de atacar”, diz Oleksandra inconformada. 

Casos como esse não são apenas tragédias individuais são reflexos de uma lógica de guerra que transforma civis em alvos e máquinas em instrumentos de terror psicológico. 

O uso deliberado de drones para vigiar e matar pessoas comuns revela uma face ainda mais sombria do conflito: a tentativa de dominar pelo medo constante e silencioso.

“Sem apoio”

Em meio à destruição da guerra, o povo ucraniano resiste. Não por ter o apoio que merece, mas justamente pela ausência dele.

É a falta de ação global, de resposta à brutalidade da ocupação russa, que obriga civis a se tornarem agentes da própria sobrevivência. 

Nós ucranianos temos um hábito de não esperar por ações do Estado. Por séculos, nossas organizações estatais foram controladas e organizadas por Moscou. Então quando vemos algo acontecendo, nos organizamos por si só”, explica.

É nesse instinto de sobrevivência herdado de séculos de dominação e abandono que os ucranianos encontram força. Longe da imagem de um país fragilizado, o retrato é de um povo resiliente, que aprendeu que esperar pode custar a vida.

O povo na Ucrânia sonha com a paz, mas a paz não impede a luta, isto é, a ocupação.”

Não é uma guerra apenas militar. É simbólica, cultural e ideológica. O inimigo, explica ela, não é apenas um exército é uma lógica imperialista:

“Os russos atacaram a Ucrânia porque eles podiam, porque no mundo atual eles são um império e impérios sempre buscam se expandir.

A estratégia da ocupação é clara: o medo como controle, a repressão como aviso.

“Eles exterminam as minorias para mandar uma mensagem para a maioria: se você for desleal, isso acontecerá”.

É uma política de terror. A ausência de liberdade e o silêncio forçado são impostos com sangue. E o abandono internacional só amplifica essa impunidade.

A ucraniana explica que para quem vive sob ocupação, a realidade é feita de camadas de limitações financeiras, vínculos familiares, medo e, acima de tudo, abandono.

“Por que as pessoas não saem das áreas ocupadas? Primeiramente é difícil sair de um lugar pelo qual você trabalhou para ter a vida inteira. Muitos ucranianos não têm dinheiro para sair e pensam ‘eu vou ser um morador de rua ou vou me adaptar à situação.’”

Trajetos longos de viagem e familiares com necessidades especiais também são fatores que complicam a saída de refugiados – que não possuem garantia de segurança no caminho ou perspectiva de amparo ao migrarem para outros locais.

“Há milhares de razões. Uma das famílias que eu conversei disse que demora sete dias para sair de onde eles moram para ir para qualquer país da europa e voltar para a Ucrânia. Outra questão é que muitas pessoas têm familiares idosos ou com deficiência”, pontua Oleksandra. 

89 mil crimes. Nenhuma resposta

Até agora, 89 mil episódios de crimes humanitários foram registrados em uma base de dados ucraniana, números que representam vidas perdidas, corpos violados e famílias destruídas.

Mas sem ação, os dados são só estatísticas. Por isso, o apelo de Oleksandra de auxílio internacional é direto.

“Nós temos gravado em nossa database 89 mil episódios de crimes humanitários. Nós, enquanto pessoas, devemos empurrar as comunidades internacionais para fazer algo”.

Até o momento, Oleksandra Matviichuk diz que ela, assim como outros defensores dos direitos humanos, trabalham com organizações nacionais e internacionais na troca de informações sobre os crimes humanitários que ocorreram na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. 

As principais instituições destacam-se como o Tribunal Penal Internacional (TPI), comissões humanitárias da ONU e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). 

“Estamos abertos à cooperação com quaisquer instituições internacionais e nacionais que possuam um mandato oficial para investigar o que ocorreu ou para fornecer uma atribuição”, ressalta. 

Um exemplo de uma iniciativa organizada por Oleksandra foi a criação do site Tribunal for Putin (T4P)  – Tribunal para Putin, em tradução – que visa documentar os crimes de guerra ocorridos nas áreas de conflito para que possam ser utilizados, posteriormente, como provas de julgamento.  

Imagem do site “Tribunal for Putin”

A jurista disse, desde o início da invasão russa, são produzidos relatórios com detalhes de sequestro, execuções, tortura, e desaparecimentos forçados de civis em territórios ocupados. 

Apesar da gravidade das denúncias, a reação da comunidade internacional tem sido, em muitos casos, marcada pela omissão e envolvimento político com a Rússia.

“Não é a primeira vez que um belo relatório foi apresentado durante a Assembleia Geral da ONU. Mas muitos estados não se importam, apesar de serem membros. Eles cumprimentam Putin lhe oferecem honras”.

Apelo ao Sul Global

A ativista, ao ser perguntada que tipo de proatividade humanitária espera que os países realizem, lança um apelo direto a nações com influência diplomática, incluindo o Brasil.

O que desejo do Brasil, dos Estados Unidos, da África do Sul, da Índia e de outros países do mundo é que nos ajudem nesta fase a solucionar problemas humanitários urgentes.”

Ela alerta que o Brasil, especificamente, tem um canal de diálogo com Moscou que pode e deve ser usado a favor da vida.

Sabemos que o Brasil mantém boa comunicação com a Rússia. Pode utilizá-la para levantar uma questão sobre o a deportação ilegal de crianças. Seria de grande ajuda e assistência.”

Oleksandra finaliza com uma mensagem ao povo brasileiro na qual reitera a gratidão que sente aos apoiadores da assistência humanitária e mais uma vez solicita atenção do governo Brasileiro à população ucraniana.  

Tenho duas mensagens para as pessoas do Brasil. Primeiramente, é uma mensagem de gratitude às pessoas que têm demonstrado suporte a nós. Segundamente, nós precisamos da sua ajuda. Por favor, nos ajude a colocar a Ucrânia na agenda da política brasileira. Nós [ucranianos] precisamos.

“A liberdade prevalecerá”

No encerramento da sessão de debate, foi brevemente mencionado o lançamento do livro “Mulheres e Guerra: Cartas da Ucrânia para o Mundo Livre”, escrito pela geopolítica Aurélie Bros. 

A obra, cujo prefácio fora escrito por Oleksandra, reúne uma série de cartas escritas por mulheres ucranianas vítimas das atrocidades cometidas durante a invasão russa.

De acordo com os editores, o dinheiro obtido com a vendas serão integralmente dedicado ao Centro de Liberdade Civis, organização que luta à favor dos direitos humanos, fundado e dirigido por Oleksandra Matviichuk.

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Por Maria Paula Valtudes e Riânia Melo 

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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