Crônica: “O Eco”

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Crédito: Anncpictures / Pixabay

“Tic-tac.” O relógio indicava mais um minuto que se passava. “Tic-tac.” Minhas pernas tremiam; eu sabia o que estava por vir. “Tic-tac.” As lágrimas já brotavam em meus pequenos olhos. “Tic-tac.” Era a hora da vergonha. Vergonha essa que conheci antes mesmo de saber como dividir e multiplicar. “Tic-tac.” O professor havia liberado para o intervalo.

O sol, naquele dia, queimava com uma força jamais vista. E, naquela pequena quadra, era possível ouvir o eco das risadas e dos comentários que preenchiam o ambiente. Para quem via de fora, talvez até parecêssemos bons amigos. Mas não — eu nem ao menos sabia os nomes das pessoas que me cercavam, mesmo que convivêssemos há algum tempo. Eu era apenas mais uma vítima; ouso dizer que era a favorita. “Vai chorar, baleia?” — eles me perguntavam, como se não soubessem a resposta.

“Tic-tac.” O despertador da minha mãe tocava em uma altura desumana. Minha garganta ardia, meu corpo parecia estar cada vez mais fragilizado. Na noite anterior, havia colocado todos os meus demônios para fora, mas, de alguma forma, eles ainda pareciam estar na minha barriga. Meu estômago implorava por comida — mas, sabem como é, “a beleza tem um preço”, e eu já o conhecia muito bem. Eu pagava esse preço desde a infância.

“Tic-tac.” A visão do espelho me amaldiçoava. “Tic-tac.” A puberdade me destruía. “Tic-tac.” A vergonha me consumia. “Tic-tac.” O choro era inevitável. “Tic-tac.” Minha mente era minha maior inimiga. “Tic-tac.” Cada refeição era um campo de batalha. “Tic-tac.” Minha identidade e alegria haviam sido roubadas pelo transtorno alimentar, assim como mais de 70 milhões de pessoas no mundo.

“Tic-tac.” O tempo passou, mas o eco ainda mora em mim. Por muito tempo, acreditei que era feita de fragmentos partidos, que meu valor era medido em números — na balança, no espelho, nas piadas que carregavam veneno disfarçado de brincadeira.

Mas hoje, aos poucos, tento reaprender no silêncio entre os “tic-tacs”: tentar me ouvir sem os gritos do passado, sem os julgamentos que não eram meus. É um processo — às vezes lento, às vezes cruel —, mas também é um ato de resistência.

Porque sobreviver, nesses corpos que aprendemos a odiar, é mais do que existir: é gritar contra o eco. E eu ainda estou gritando.

Por Maria Eduarda Fava

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