Entenda o que é crime de responsabilidade; professores de direito explicam

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Após a aprovação do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, no Senado, no último dia 31 de agosto, ainda existem dúvidas e questionamentos sobre o processo. Para esclarecer o que será feito daqui em diante e alguns quesitos a respeito de como o país chegou a conjuntura atual, a reportagem conversou com os professores de Direito  do UniCEUB Bruno Espiñeira Lemos e Eduardo Mendonça.

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Lemos é também advogado da ex-presidente Dilma. Ele acredita que, nesse caso, não houve crime de responsabilidade e que o impeachment foi uma medida exagerada. Por outro lado, o jurista Eduardo Mendonça, apesar de não se denominar “pró-impeachment”, afirma que não houve golpe. Confira as entrevistas completas dos professores.

Brasília - A presidenta afastada, Dilma Rousseff, faz sua defesa durante sessão de julgamento do impeachment no Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
A ex-presidenta Dilma Rousseff, durante defesa na sessão de julgamento do impeachment (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O que é crime de responsabilidade? Dilma era culpada realmente nesse processo?

 

Bruno Espiñeira Lemos: Essa pergunta todas as pessoas que se envolveram nesse processo, acusação ou defesa, não vão conseguir lhe responder satisfatoriamente. Ou seja, é uma expressão aberta, na minha leitura uma expressão equivocada e que para que você impute a um presidente da República ou até ao ministro do Supremo (STF), que está submetido ao impeachment, você não deveria ter essa possibilidade de tanta flexibilidade na hora de imputar uma sanção tão grave quanto a perda de um cargo. Então o que é um crime de responsabilidade? É um crime no sentido técnico e jurídico que está no código penal, que não necessariamente pode ser uma infração administrativa? Aí como é que eu convenço alguém, um leigo, de que crime de responsabilidade na verdade não é crime no sentido penal da palavra?

É um número aberto que traz uma insegurança, uma instabilidade na própria leitura e cria um espaço de flexibilidade para aplicar uma sanção grave e traz uma insegurança jurídica, naturalmente. Na minha opinião, enquanto jurista, estudioso do tema, e agora mais do que nunca, em função de estar advogando na equipe de defesa da presidenta Dilma, na minha leitura ela não cometeu um crime de responsabilidade.

Sessão deliberativa extraordinária para votar a Denúncia 1/2016, que trata do julgamento do processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff por suposto crime de responsabilidade. Mesa: primeiro secretário do Senado, senador Vicentinho Alves (PR-TO); presidente do Senado, senador Renan Calheiros (PMDB-AL); presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski;  secretária-geral da Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), Fabiane Pereira de Oliveira Duarte; economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo (testemunha de defesa).  Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Dia do julgamento do impeachment; o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, comandou os trabalhos. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Eduardo Mendonça: Crime de responsabilidade é um ato que viole a Constituição em algumas das questões pré-definidas pelo artigo 85. É lógico que qualquer ato inconstitucional viola a constituição, mas a própria constituição reserva algumas questões que são especialmente sensíveis, e atribui a elas a consequência mais séria do afastamento de chefe do executivo, logo não é uma violação qualquer, é uma violação relevante. A peculiaridade sobre o juízo de ter havido uma violação é atribuído ao poder Legislativo, a Câmara que admite a denúncia, e ao Senado que julga a denúncia. Na visão atual do Supremo, o Senado também pode não admitir a denúncia, tem uma fase de admissibilidade embutida, mas de toda forma, é o poder legislativo que diz que existe ou não. Por isso, eu não me colocaria exatamente como um professor a favor, porque eu reconheço o papel do Senado nesse aspecto. Se fez uma dualidade no Brasil muito radical, muito simplista, se você acha que a Dilma violou a Constituição, então você é a favor do impeachment, e não haver impeachment, seria um golpe. Se você acha que ela não violou a Constituição, que aquilo era secundário, ou não era suficientemente relevante, então não pode haver impeachment, e se houver, é golpe. Então, as pessoas estão se taxando de golpistas mutuamente sem deixar, sem reconhecer o espaço normal da interpretação jurídica.

Eu entendo que as condutas imputadas a ela têm materialidade suficiente, tem caracterização suficiente, pra que o Senado pudesse condenar se assim entendesse, não acho que era uma acusação artificial ou forjada, eu não acho isso porque as imputações eram basicamente sobre a Lei Orçamentária, em questões sensíveis. Existem duas questões: uma acusação de que ela teria aberto crédito suplementar, que é uma complementação, uma dotação orçamentária, fora da previsão legal. A segunda é de que ela teria usado os bancos públicos, basicamente a Caixa, o Banco do Brasil e o BNDES, nessa discussão mais atual, o Banco do Brasil, como um agente financiador do Governo, teria contraído empréstimos disfarçados, fraudulentos com o Banco Público.

Dilma cometeu crime de responsabilidade

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Dilma pode ser enquadrada na lei de ficha limpa e isso pode impedi-la de se candidatar?

 

Bruno Espiñeira Lemos: Hoje nós temos uma decisão do Senado que a mantém habilitada a participar de qualquer eleição ou mesmo ocupar qualquer função pública. Há controvérsia na interpretação do artigo 52. É possível que o Supremo seja chamado a se pronunciar? Sim, é possível.

Mas na minha leitura, a decisão como está posta não a enquadra na Lei de Ficha Limpa.

 

Eduardo Mendonça: Eu entendo que não, porque você não dá à interpretação extensiva ou analógica a normas que restringem direitos. Tem uma explicação para isso, que é o fato de que, em relação à pessoa ocupante da presidência, a Constituição prevê mais do que inelegibilidade. O artigo 52, parágrafo único, que é esse que está na berlinda agora, prevê que no caso de impeachment, ocorre inabilitação para o exercício de função pública por oito anos, portanto é mais do que inelegibilidade, porque isso seria não poder concorrer a nenhum cargo eletivo, no caso do presidente é função pública, então mesmo função não eletivas.

Você não precisava da lei da ficha limpa por esse efeito automático de impedir o acesso a qualquer cargo ou função pública, decorria diretamente da Constituição.

Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa extraordinária para votar a Denúncia 1/2016, que trata do julgamento do processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff por suposto crime de responsabilidade.  Participam:  jurista Janaína Paschoal;  senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB);  senador Ronaldo Caiado (DEM-GO);  senador Waldemir Moka (PMDB-MS);  senadora Simone Tebet (PMDB-MS)  Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Senadores conversam com a advogada de acusação, janaína Paschoal. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Existe alguma forma de reverter ou recorrer da decisão do Senado?

 

Bruno Espiñeira Lemos: Sim, nós vamos recorrer, nós já estamos preparando isso. Tem mandados de segurança sendo preparados, um deles inclusive sendo impetrado hoje, que tem a ver justamente com a questão formal e não questão de fundo, questão de mérito, isso na verdade é competência do Senado. Mas tem a ver, sim, com pronúncia recebida de forma equivocada, tipo específico de crime de responsabilidade na lei específica que trata do impeachment, que na verdade não teria sido recepcionado pela constituição de 88, que pode gerar uma nulidade da pronúncia  e por conseguinte, também, nulidade do processo como um todo.

Outro ponto a ser direcionado à parte formal do rito: ao final do processo, ou antes do final, quando houve o relatório do Senado, houve o que a gente chama no direito penal, de mutatio libelli. Ou seja, o cidadão, diante de um enquadramento prévio que deveria ser mantido, modificou esse enquadramento e trouxe fatos diferentes a serem debatidos durante o processo. Isso pode gerar uma nulidade do processo. Se politicamente o Supremo vai ter coragem de enfrentar isto, eu não posso lhe afirmar. Mas que tecnicamente são precisos esses argumentos, são.

 

Eduardo Mendonça: Existe uma corrente que entende que a inabilitação é automática. Ela decorre da condenação, essa corrente é baseada da textualidade da Constituição, porque se você ler o artigo, ele vai dizer que o presidente afastado “com”inabilitação para o exercício de função pública. Então não seria uma alternativa a disposição do Senado, seria uma decorrência direta do artigo. A discussão agora é se podia ter feito separação das duas coisas, existem ações questionando no Supremo, alegando que essa cisão foi inconstitucional. Não sabemos como o Supremo vai decidir esse assunto. Quer dizer, já teve declarações na imprensa de alguns ministros que acham que não podia ter separado.

Pessoalmente, eu concordo, acho que a Constituição é muito clara com inabilitação. Não é uma opção a dispor do Senado. O Senado argumentou que se ele pode condenar em tudo, pode absolver em tudo, ele podia fazer um certo equilíbrio, um juízo de proporcionalidade, acharam excessivo afastar, é um argumento respeitável. O Supremo pode entender que a ação do Senado foi inconstitucional, se ele entender assim, ele tem duas opções: ele pode dizer que o afastamento é automático e estender, ou ele pode dizer que como o Senado votou a menor, tem que votar de novo.

 

Eles podem votar de novo, não porque eles podiam fazer isso de início, mas por um certo vício de vontade, eles votaram achando uma coisa, e era outra, então eu tenho direito de votar de novo pra saber o que eu quero mesmo.  É difícil saber qual vai ser a decisão do Supremo, nessas questões políticas, O Supremo tende a ser minimalista, interferir o menos possível porque se teve um processo complicado, muito desgastante, é um pouco invasivo o Supremo anular tudo nesse momento, mas temos que esperar.

O ministro do STF Gilmar Mendes cometeu crime de responsabilidade

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Em relação a direitos políticos, o que Dilma perde ou ganha?

 

Bruno Espiñeira Lemos: Na verdade, Dilma não perde. Quem perde é a democracia. O grau de maturidade que nós estávamos alcançando enquanto a democracia se solidificava foi direcionado para um caminho de golpe. Hoje não se trata mais de golpe no sentido armado. Os europeus não entendem o que está acontecendo aqui porque se fossem aplicar a mesma medida que estão aplicando aqui, não tinha governo que resistisse lá. Nós estamos em um presidencialismo, não estamos num parlamentarismo, em que a perda da confiança num primeiro momento gera a perda do cargo. E é isso que se está tentando aplicar no Brasil, de forma anômala. Então nós temos o quê?

Um processo viciado na sua gênese por desvio de poder, em função do Eduardo Cunha, que foi aquele que chantageou o governo quando não conseguiu apoio do PT contra a sua cassação.

 

Em seguida, nós temos um governo interino empenhado em ceder cargos e benesses para conseguir votos de senadores. Então em qualquer lugar do mundo, há uma forma de encarar o nosso país como um país imaturo do ponto de vista democrático. Nessa perspectiva, não perdeu Dilma, perdeu você, perdi eu, perdemos nossos filhos e netos. Porque esse não é, com clareza, um cenário para uma democracia que estava em solidificação. Perceba que nós temos uma trajetória de perfis partidários que trabalham nas sombras e que nós tivemos vices que assumiram sistematicamente na história do nosso país. Uns em função de algo comprovado, que não poderíamos denominar como golpe. Mas outros casos, como esse, na verdade fica claro que a gênese não se sustenta. E não adianta dizer que é só político. Um processo dessa dimensão é político-jurídico. A parte jurídica é morta, é um arremedo de processos formalmente perfeitos. Nós temos o devido processo legal assegurado na sua forma não material, e sim formal. Mas do ponto de vista material, nós estamos diante de uma tremenda injustiça. É desproporcional a condenação. Outrora, a leitura de golpe estava direcionada ao apoio das forças armadas e o uso efetivamente de força, uma força física.

Hoje nós temos golpes com a sutileza  do uso da máquina, do uso de acordos políticos. E na verdade, um indivíduo que tem uma visão republicana não pode pensar em interesse imediato, ele tem que pensar na solidificação da democracia. Se a presidente cometeu equívocos operacionais, ela tem que ser advertida. Mas é desproporcional culminar com a perda do cargo. São práticas que eram exercitadas em governos passados, do presidente Fernando Henrique e do presidente Lula. São práticas que são executadas até hoje, então a gente teria que desencadear um processo sistemático de impeachment pelo país afora.

 

Eduardo Mendonça: Se ficar como está, ela não teve nenhuma restrição nos seus direitos políticos pela decisão que foi tomada até aqui, portanto, em tese, ela está como qualquer outro cidadão em relação à inelegibilidade, ela não poderia concorrer à presidência em 2018, não por causa do impeachment, mas porque no artigo 14, parágrafo 5° da Constituição, veda que se exerça três mandatos sucessivos, mesmo que tenha exercido em parte. Não é consequência do impeachment, é consequência da eleição, em relação a qualquer outro cargo eletivo.

Ela pode concorrer, e poderia ser nomeada para qualquer função pública. Se ficar como está, mas se tiver alguma mudança, e haja outros processos de responsabilização contra a presidente, porque as condutas pelas quais ela foi condenada, em tese, podem gerar outros processos de responsabilização, como uma ação de improbidade, e nesse caso teria consequência nos seus direitos políticos, mas hoje ela tem a mesma situação de nós todos, salvo em relação ao cargo de presidente, que ela já exerceu duas vezes seguidas.

 

Por Bruna Maury, Renata Angoti, Tácido Rodrigues e Carolina Sousa.

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