Falta de regulação da internet mantém violência homofóbica, avaliam especialistas e vítimas

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A falta de regulação da internet pode ser um dos fatores encorajadores que mantém números de casos de homofobia tão altos. É o que avaliam especialistas e também vítimas.

A presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, Jade Beatriz, por exemplo, lamenta que foi vítima de uma agressão ao entrar em uma padaria com sua namorada e ser hostilizada por serem um casal.

O vídeo do acontecimento foi compartilhado na internet e Jade diz que sentiu medo “mas sabia da importância de ser forte naquele momento”.

Uma pesquisa realizada pela Organização Não Governamental (ONG),  Grupo Gay Bahia, aponta que o Brasil registrou 257 vítimas de LGBTfobia em 2023, o maior número de homicídios e suicídios da comunidade no mundo.

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Do número total de vítimas, 127 eram travestis e transgêneros, 118 eram gays, 9 lésbicas e 3 bissexuais. Em todos os anos de dados adquiridos pela organização, é a primeira vez que o número de trans e travestis ultrapassa o de gays.

Jade afirma que essa não foi a primeira vez que foi vítima de LGBTfobia. Comentários de ódio acerca de sua sexualidade são comuns e já os escuta há muito tempo, mas reforça que não podemos normalizá-los.

A função da internet como ferramenta facilitadora é algo que hoje se tornou parte do cotidiano. Porém, a internet se tornou um meio de as pessoas fazerem aquilo que seriam reprimidas se fizessem em pessoa. Atitudes que dentro do mundo virtual conseguem ser mascaradas e escondidas por trás de nomes de usuários sem identificação. Pessoas usam dessa, muitas vezes identificada como, “terra sem lei” para propagar ódio e cometer crimes.

A psicóloga clínica de LGBTQIAPN +, Jussara Prado, explica sobre as dificuldades que podem vir a partir de um único comentário, mesmo que de uma pessoa desconhecida, nas redes sociais. “Discursos assim invisibilizam, oprimem e violentam as pessoas trans e suas identidades. É uma das coisas que eu mais encontro dificuldade até para trabalhar com a pessoa dentro da terapia”, conta ela.

Lucas Santos

Casos de cyberbullying por conta da sexualidade e identidade de gênero podem levar a graves consequências, de dentro para fora da tela. Um caso que ganhou muita notoriedade, foi o de Lucas, de 15 anos, filho da cantora Walkyria Santos. Após postar um vídeo na rede social TikTok, no qual fingia beijar seu amigo. O vídeo repercutiu e surgiram comentários homofóbicos contra o garoto, que apagou o primeiro vídeo, a pedidos da tia, segundo ele.

Segundo a Revista Quem, o menino foi encontrado morto após cometer suicídio, no dia 3 de agosto de 2021, em sua casa. Sua mãe se pronunciou nas redes sociais afirmando que o filho era heterossexual e que o vídeo era apenas uma brincadeira, mas que mesmo que se ele fosse gay, nada mudaria, “seria meu filho do mesmo jeito”.

A LGBTfobia no Brasil

Desde 2019 a LGBTfobia é crime no Brasil. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, os crimes contra pessoas da comunidade LGBTQIA + se encaixaram na  Lei n° 7.716/89, a Lei do Racismo. Porém em 2023, quatro anos após a criminalização, atos de violência contra pessoas LGBTs ainda são recorrentes.

Desde a criminalização, houve uma queda no número de pessoas LGBTs assassinadas, segundo uma pesquisa do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+. Em 2017, antes da criminalização, 445 pessoas foram mortas como resultado de LGBTfobia, maior número registrado desde o início da pesquisa (2000). Em 2022 o Brasil registrou 273 mortes, ou seja, uma morte a cada 32 horas, sendo delas 83,52% por assassinato. Dentro da comunidade, quem mais morre são as mulheres trans e as travestis, representando 159 das mortes de 2022 (58,24%).

No âmbito virtual, dados da Safernet registraram 8.136 denúncias online contra o crime de LGBTfobia em 2022. Esse número é 52,16% maior que o do ano anterior e o maior número desde o início da pesquisa, em 2017. Em 2019, ano em que esse ato de violência foi criminalizado, o total de casos denunciados caiu de 4244 (2018) para 2752. Porém, após a queda, em 2020 o número ultrapassou os registros anteriores, contabilizando 5293 casos, em uma alta de 92,30%.

“A gente nunca acha que vai ser com a gente, até acontecer”

No dia 23 de setembro de 2023, a ativista Jade Beatriz ia a uma padaria na cidade de São Paulo com sua namorada quando um homem, ao ver as duas juntas, “se sentiu no direito de questionar nossa sexualidade”, nas palavras de Jade.

Jade Beatriz. Foto: Reprodução/ Rede social

O homem as agrediu verbalmente, afirmando que as duas eram lésbicas por falta de relação sexual com homens. Jade filmou o acontecimento com a câmera de seu celular. “Eu estava com medo e em choque que aquilo estava realmente acontecendo, mas me dei conta na hora de filmar tudo, para que houvesse provas”. Ela conta que abriu um Boletim de Ocorrência na delegacia e que pretende tomar as medidas judiciais cabíveis contra o agressor.

“A gente nunca acha que vai acontecer com a gente, até acontecer.É muito bizarro pensar que a gente não pode ir na padaria e ter um minuto de paz”, conta ela. Segundo a presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, a ocorrência de atitudes como essas nos fazem regredir com pautas relacionadas a luta LGBTQIA +, como por exemplo, a proibição do casamento homoafetivo, que está em andamento na Câmara dos Deputados.

Ajuda real para combater o virtual

A delegada da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual, ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (DECRIN), Angela Santos, destaca a importância de se denunciar estes crimes, e afirma que as vítimas são recebidas na DECRIN com “acolhimento: sem julgamento e com escuta ativa”. 

A delegada também comenta a importância de se denunciar ataques cibernéticos com rapidez, antes que estes possam ser apagados das redes sociais. Isso porque, segundo Angela, é necessário comprovar que as provas, sejam prints ou links para postagens, são autênticas. 

“A pessoa foi vítima de um crime cibernético: o que ela precisa fazer? Primeiro ela precisa fazer um print, registrar aquilo que está aparecendo para ela, com o URL (link), de forma que apareça tudo, para não acharem que aquilo é uma montagem. Precisa ter essas provas”, afirmou a delegada.

Angela destaca, também, o 197, número para a realização de denúncias anônimas junto à polícia. De acordo com a delegada, denúncias por este canal ajudam os policiais a solucionar muitos crimes homotransfóbicos, já que muitas das vítimas não têm coragem de ir até a delegacia para prestar queixas.

Outra maneira de combater uma violência sofrida é aprendendo a lidar e a combater tragédias consequentes de discursos de ódio.  A psicóloga Jussara Prado conta como pode ser feito o processo de enfrentamento dentro da terapia.

“Nós fazemos um trabalho de empoderamento da identidade LGBTI+ dessa pessoa, de integração dessa identidade e fortalecimento da autoestima. Esse trabalho não fará o preconceito na sociedade acabar… Mas é um trabalho para ajudar essa pessoa LGBTI+ a viver uma vida mais leve… empoderá-la para se defender e buscar pelos seus direitos”.

Outra questão que a psicóloga defende é a importância de uma rede de apoio, que muitas das vezes as pessoas não têm e são obrigadas a enfrentar isso sozinhas. Segundo ela, esse apoio pode vir da própria internet, que a conexão a distância gera uma facilidade em achar pessoas passando pela mesma situação. “Uma das coisas que mais auxilia no fortalecimento da identidade e saúde mental LGBTQIAPN+ é que a pessoa LGBTI+ possa ter acesso à histórias de outras pessoas como ela”, explica Jussara.

Além do mais, conta sua própria experiência vivendo em uma cidade pequena e que a maneira de “O que mais fornecia a possibilidade de entrar em contato com outras pessoas LGBTQIAPN+, ou pessoas com os mesmos gostos musicais e estilos que eu, foi a internet”

Afinal, a internet é segura para LGBTQIAs +?

A ativista Jade Barbosa acredita que a internet traz uma liberdade sem controle às pessoas. “Na internet todo mundo pode falar sobre o que quiser, esse costume, sem filtro ou regulamentação, fazem elas pensar que suas atitudes não tem consequências. A internet acostuma a pessoa a agir de certa forma e com certeza, se for uma pessoa homofóbica, isso dá forças a ela.” 

A psicóloga Jussara Prado, por outro lado, pontua que a internet é um mecanismo importante para o enfrentamento e pode ajudar na questão do empoderamento.

“É um “local” onde a visibilidade e representatividade também se faz muito mais possível. Temos influencers LGBTQIAPN+ que… representam identidades, que transgridem as normativas sociais de gênero e orientação sexual”, explica. Para ela, há riscos na internet e em fazer uso dela, mas todos estão propensos a isso, independente de gênero ou orientação sexual.

Por Nana Adnet

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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