A febre parecia não ter fim. Em julho de 2024, Pietra, uma menina de apenas sete anos, começou a apresentar sinais de infecção urinária recorrente. O organismo já demonstrava uma resistência considerada incomum aos antibióticos e vivia um sofrimento que ninguém conseguia explicar. Era somente o começo do desafio do tratamento que eles não sabiam ainda. Mas o diagnóstico seria de lúpus, uma doença silenciosa, de sintomas comuns e mais agressiva na infância
Durante semanas, a mãe Adria Luzia Gomes Alces ia ao pronto-socorro, buscando respostas para a dor da filha, que agora era acompanhada de uma febre insistente, sem causa aparente.
Foi no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) que elas encontraram a primeira profissional que admitiu o impasse.
“Fomos atendidas por uma médica que falou: ‘já entramos com antibiótico e fizemos o que podíamos fazer. Agora, o que podemos fazer é monitorar essa febre’.”

Durante trinta dias, a rotina da casa foi tomada por um ritual angustiante: medir e anotar a temperatura, todos os dias, várias vezes ao dia. “Toda segunda-feira a gente voltava ao HMIB”, conta a mãe. Na última segunda-feira de acompanhamento, o corpo de Pietra gritou de vez: ela começou a urinar sangue.
“Eu fiquei desesperada porque não sabia o que estava acontecendo com a minha filha.”
Naquele dia, Pietra foi internada às pressas. O que antes era apenas uma suspeita de infecção urinária se transformava em um enigma clínico. “A essa altura, já nem era mais urina com sangue, era só sangue mesmo”, diz a mãe.
Foram dias de exames intensos e medicamentos fortes. Um dos antibióticos aplicados na veia deveria ser usado por dez dias. No terceiro, foi suspenso. “Perguntei por quê, e o médico me respondeu: ‘O quadro dela está tomando outra direção. A gente está investigando uma possível outra doença, que talvez não seja apenas infecção urinária’.”
Com a ajuda de exames específicos e análises laboratoriais mais detalhadas veio o diagnóstico: Pietra tinha lúpus eritematoso sistêmico (LES), uma doença autoimune rara em crianças, mais comum entre mulheres adultas de 20 a 45 anos, mas que representa cerca de 20% dos casos entre crianças e adolescentes.
O caso de Pietra é mais do que uma estatística: é um retrato dos desafios do diagnóstico precoce de uma doença crônica, silenciosa e devastadora especialmente quando afeta os mais jovens.
Lúpus
Segundo o Ministério da Saúde, o Lúpus é uma doença inflamatória autoimune, que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos, como pele, articulações, rins e cérebro. Em casos mais graves, se não tratada adequadamente, pode matar.
O lúpus é mais comum em mulheres do que em homens, mas pode se manifestar em ambos os sexos, na faixa etária de 15 a 40 anos. Pessoas afro-americanas, hispânicas e asiáticas são as mais afetadas. Além disso, a incidência do lúpus chega a ser três a quatro vezes maior em mulheres negras do que em mulheres brancas.
“O lúpus em adultos já é uma doença relativamente rara, e quando falamos da forma infantil, ela representa menos 20% dos casos totais”.
A reumatologista Licia Maria Henrique da Mota, do Hospital Universitário de Brasília (HUB) explica a gravidade da doença em casos infantis.
Ela ressalta a importância do diagnóstico e o tratamento precoce.
“São fundamentais, já que, em crianças, a doença costuma ser mais intensa e agressiva, com maior risco de comprometimento de órgãos como os rins, o sistema nervoso central e o coração”.
Os sintomas em crianças podem variar muito a cada caso, mas os mais comuns são: febre persistente, cansaço extremo, perda de peso, dores nas articulações, manchas na pele (como a conhecida mancha em forma de borboleta no rosto), queda de cabelo, aumento dos linfonodos, entre outros.
“O problema é que esses sinais também aparecem em outras doenças, como infecções virais ou problemas reumatológicos mais comuns, o que pode atrasar o diagnóstico”, complementa a reumatologista.
Mistérios
Não se sabe ao certo o que causa o Lúpus, tendo em vista que o sistema imunológico atacar e destruir tecidos saudáveis do próprio corpo é um comportamento anormal do organismo. No entanto, os estudos nacionais e mundiais da comunidade científica e médica apontam que as doenças autoimunes, o que inclui o Lúpus, podem ser uma combinação de fatores, como: hormonais; infecciosos; genéticos e ambientais.
Existem alguns gatilhos para desencadear o Lúpus, o mais comum é a exposição à luz solar, mas também pode ser por medicamentos ou infecções graves.
O tratamento do Lúpus, assim como para outras doenças crônicas como câncer, hipertensão e diabetes, é mais paliativo e tem por objetivo controlar os sintomas, melhorando a qualidade de vida da pessoa. Isso porque, até o momento, Lúpus não tem cura.

Borboleta
Durante a entrevista, Pietra estava ao lado da mãe, com um olhar tímido. A mancha em formato de borboleta nas bochechas, característica do lúpus, deixava seu rosto ainda mais ruborizado. Tentei fazer perguntas diretas para ela, mas a menina, vestida com um moletom rosa e cinza do personagem “Stitch”, respondia apenas com sorrisos tímidos, deixando a mãe falar por ela.
Após o diagnóstico, Adria Luzia contou que começou uma investigação para ter mais informações sobre a doença para trazer conforto para a filha, pois os sintomas se mostraram um desafio para a infância de Pietra. “Tudo isso ainda é muito novo pra mim. A gente está correndo atrás de conhecimento, tentando entender como lidar com a doença, como tratar, como fazer com que ela sinta menos os impactos.
“Por várias vezes, por exemplo, a escola onde ela estuda já me ligou pedindo para ir buscá-la porque ela estava sentindo dor. E isso é algo que a gente ainda enfrenta até hoje”.
Além do tratamento físico, Pietra tem acompanhamento psicológico para lidar com a saúde emocional e mental.
Mudança no comportamento
Antes mesmo do diagnóstico, sinais discretos já alteravam o comportamento de Pietra na escola e em casa. A menina, que costumava ser ativa e falante, começou a se fechar.
“Primeiro vieram as infecções. Ela sentia muita dor para ir ao banheiro, mas tinha vergonha de pedir para sair da sala. Também não bebia muita água, porque pensava: ‘Se eu beber muita água, vou ter que ir mais vezes ao banheiro’. Então ela evitava beber, e quando precisava ir, sentia dor e tinha vergonha de contar para as amiguinhas ou para a professora”, relatou a mãe.
A doença começou a marcar o corpo de Pietra com manchas avermelhadas no rosto, sinal típico do lúpus. Ela mesma percebeu que algo não estava certo.
“Depois, começaram a aparecer umas manchinhas vermelhas no rosto. Logo no início, eram muitas, e ela já veio me perguntar: ‘Mãe, o que será que eu tenho? Será que é alguma coisa mais grave?’ E eu disse: ‘Não, filha. A gente vai descobrir o que é’.”

Impactos
Com o tempo, o peso do diagnóstico foi além do físico. Pietra deixou de brincar, passou a se isolar das amigas e a demonstrar cansaço extremo no fim do dia.
A energia de uma infância inteira parecia escoar junto da dor e das incertezas. A ansiedade, o desânimo e a perda de peso desenharam um novo cotidiano, muito distante do que deveria ser a infância. Hoje, em tratamento com hidroxicloroquina, a menina aos poucos começa a recuperar o peso e também a alegria de ser criança.
Aos poucos, Pietra também foi aprendendo a lidar com a doença e isso refletiu diretamente em sua autonomia e autoestima. A mãe decidiu adotar uma postura aberta e honesta, envolvendo a filha em cada etapa do tratamento.
“Hoje, eu não escondo nenhuma informação da minha filha. Faço questão de deixá-la sempre ciente de tudo que está acontecendo, do que ela tem, justamente para que ela consiga explicar, caso alguma coleguinha pergunte ou mesmo a professora.”
Adria Luzia deu o exemplo da recente mudança de escola que foi mais um passo nesse processo. A rotina em período integral, com barulho excessivo e alimentação inadequada, agravava o estado emocional da menina. Agora, no novo ambiente, Pietra já demonstra maturidade ao lidar com as limitações impostas pelo lúpus.
“Teve um momento em que ela precisou ir ao banheiro. Chegou perto da professora, no cantinho, e disse: ‘Tia, é porque eu tenho lúpus. Eu preciso ir ao banheiro, eu preciso beber água’.”
Mais do que entender a doença, Pietra aprendeu a nomeá-la e, com isso, a se proteger. Para a mãe, ver a filha assumindo essa responsabilidade com leveza e clareza é também um sinal de força. “Hoje ela mesma consegue explicar o que tem, quais são as necessidades dela. E isso, pra mim, é muito importante.”
O impacto é causado tanto pela doença quanto pelos medicamentos que causam mudanças na aparência e exigem cuidados diários, isso afeta a autoestima e o convívio social.
A médica Licia Maria destaca a importância do acompanhamento de uma equipe médica como psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas e professores.
“Eles precisam estar envolvidos para garantir que a criança se sinta acolhida e tenha uma vida plena, apesar da doença. A escola, por exemplo, pode ser uma grande aliada ao adaptar atividades e oferecer apoio emocional”.
Rede de apoio
Diante de uma doença crônica e rara como o lúpus infantil, o suporte familiar e médico se torna essencial para atravessar o desconhecido. No caso de Pietra, o diagnóstico não abalou apenas a rotina da criança, mas também exigiu uma reorganização emocional de toda a família.
“Eu e o pai dela estamos tentando entender melhor a doença, para que a gente também seja assistido e, principalmente, para que ela seja bem assistida, e consiga lidar com tudo isso da melhor forma.”
A notícia do lúpus foi, por algum tempo, guardada até mesmo dos avós. A mãe de Pietra conta que só compartilhou a informação com a própria mãe recentemente. O motivo? Sobrecarga emocional e a tentativa de digerir tantas mudanças em silêncio.
“É tudo muito novo, muita informação… A médica conversou bastante comigo e com a minha filha. Ela é sempre muito bem acompanhada nas consultas. A médica explica que isso não é uma coisa de outro mundo, que ela pode viver com essa condição, que ela pode ter uma vida longa, desde que siga o tratamento corretamente, sem interromper a medicação.”

Em meio às incertezas, o vínculo com a equipe médica tem sido fundamental não apenas para o tratamento clínico, mas para o fortalecimento emocional da família.
“Temos buscado informações, tentando entender o que vamos enfrentar daqui pra frente com o apoio dos médicos que hoje têm sido nosso principal suporte.”
Embora sejam uma família pequena, eles têm se apoiado como podem. O pai, a avó, o irmão: todos se movimentam ao redor de Pietra como um escudo afetuoso.
“Estamos tentando dar força e apoio para que ela se sinta acolhida e consiga passar por isso com mais leveza.”
Desafios e inseguranças
O diagnóstico de uma doença rara e autoimune também é algo novo para a área da saúde, Adria Luzia observou que alguns hospitais, ou até mesmo alguns atendentes da rede pública, não sabem dar as informações necessárias. “Toda vez que a gente chega em um atendimento, precisamos explicar tudo desde o começo: o que aconteceu, qual é o diagnóstico, como ela precisa ser assistida”, relata.

A reumatologista Licia Maria explica que para o diagnóstico precoce do Lúpus Infantil, atualmente a rede pública hospitalar contam com exames laboratoriais detalhistas, como os testes de anticorpos, por exemplo FAN e anti-DNA, que ajudam a indicar a resenha do lúpus no organismo.
“No entanto, nenhum exame sozinho fecha o diagnóstico. O mais importante é a avaliação clínica feita por médico especializado, que vai interpretar esses resultados no contexto dos sintomas apresentados”
Adria Luzia diz se sentir insegura pela falta de informação hospitalar e por isso consome tanta informação sobre o caso da filha.
“Isso faz com que a gente se sinta realmente perdido. Por isso, acabamos buscando informação de um lado e de outro, tentando encontrar algum caminho para garantir o atendimento que ela precisa.”
A reumatologista observa que a medicina ainda enfrenta muitos desafios no diagnóstico de doenças raras.
“Como se trata de uma doença rara e com sintomas diversos, nem sempre os profissionais da atenção básica conseguem fazer o reconhecimento imediato”.
Para ela, mudar este cenário é preciso investir na capacitação de pediatras e clínicos gerais , além de ampliar o acesso aos reumatologistas pediátricos. “Fazer campanhas de conscientização e protocolos de encaminhamento mais ágeis também podem fazer muita diferença”.
Apesar dos desafios, o que move a mãe de Pietra é a esperança de um futuro mais preparado e acolhedor para crianças com lúpus. “Hoje, a minha esperança é que a gente tenha mais informação tanto nos hospitais quanto nos postos de saúde. Que existam mais orientações, mais benefícios, que as pessoas saibam como ajudar quem tem lúpus, inclusive a minha filha.”
A aparência, muitas vezes, engana. O lúpus é uma doença silenciosa, imprevisível, e nem sempre visível aos olhos.
“Não é só dizer: ‘Ah, hoje ela não está sentindo nada’. Às vezes, ela pode parecer bem, mas logo em seguida está abalada emocionalmente, com queda de cabelo, com outras reações.”
Para ela, o diagnóstico não deve ser uma sentença, mas o início de um caminho possível desde que cercado de cuidado, empatia e informação.
“O que eu desejo é isso: mais conhecimento, mais preparo, mais acolhimento. Que a gente possa, com isso, garantir mais qualidade de vida e mais apoio para quem convive com essa doença.”
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Por Danyelle Silva
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira