“Maconha, lá em casa, nunca foi droga, sempre foi remédio”

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Mães relatam a importância do uso medicinal da cannabis no tratamento das comorbidades dos filhos

“Maconha, lá em casa, nunca foi droga, sempre foi remédio”. É o que diz Tatyane de Camargo, 44, mãe de Ricardo Augusto, 11. Para ela, o uso medicinal da cannabis fez de seu filho uma criança livre, que foi diagnosticado com Síndrome de Sotos com apenas 1 ano e 3 meses de idade e com epilepsia refratária aos 4 anos. 

Ricardinho, como chama a mãe, tomava quatro medicamentos anticonvulsivantes por dia, e, ainda assim, as crises não cessavam. Em 2016, Ricardinho precisou ser internado na UTI, devido às crises epilépticas constantes: chegou a ter mais de 100 convulsões em um dia. À época, ele já tomava o óleo de canabidiol. 

Tatyane de Camargo e Ricardinho. Foto: Arquivo pessoal

A planta Cannabis sativa possui mais de 100 fitocanabinoides. Entre eles, o Canabidiol (CBD), Canabinol (CBN) e o Cannabigerol (CBG) e Tetrahidrocanabinol (THC). A extração full spectrum é a forma de extração que preserva todos os compostos da planta. E foi apenas com o óleo integral que Ricardinho cessou as crises de epilepsia. “Foram testes e mais testes. Ele não controlou com o CBD somente. Quando usou o full spectrum, deu bom”, recorda Tatyane. Hoje, Ricardo está há um ano e meio sem nenhum episódio convulsivo.

O canabidiol atua no sistema nervoso central e interage com a maioria das células do corpo humano, enquanto o THC, apesar difundido no meio recreativo, apresenta resultados promissores de patologias principalmente quando estão relacionadas a dores.

De acordo com a neuropediatra Ellen Siqueira, estudos mostram que o canabidiol é o componente que tem maiores efeitos benéficos. No entanto, “composições com canabidiol e porcentagem baixa de THC podem ser usados”, diz a especialista.

“Mãe de autista aprende a estudar sobre tudo”

O filho de Simone Leal, 37, Davi, 8, estava atingindo todos os marcos quando bebê. No entanto, por volta dos 17 meses de idade, as coisas começaram a mudar. Ele parou de falar, de olhar nos olhos, não interagia e começou a andar nas pontas dos pés. 

Aos 2 anos de idade, Davi recebeu o diagnóstico de transtorno do espectro do autismo. Com o passar dos anos, o filho de Simone passou a apresentar outros sintomas, como irritabilidade e dificuldade para dormir. 

Em linhas gerais, quem procura pela cannabis já tentou muitos outros tratamentos, como foi o caso de Davi. Simone recorreu a tudo que estava ao seu alcance: óleos essenciais, óleos florais, aromaterapia, medicamentos alopáticos, e outros fármacos. 

Ela explica que já estudava sobre o uso do óleo de canabidiol para pessoas com autismo, e foi instruída pela médica responsável pelos tratamentos do filho que a indicação para o óleo de canabidiol vem depois de esgotar outras opções de fármacos disponíveis no mercado – o que já havia ocorrido com Davi. Diante disso, ela obteve a prescrição e Davi pôde começar o tratamento com o óleo de CBD.

Óleo de canabidiol. Foto: Divulgação

A neuropediatra Ellen Siqueira explica que, até o momento, existem estudos que apresentam melhoras comportamentais de pessoas dentro do espectro autista, com menor irritabilidade e agressividade, mas que ainda são necessários mais estudos para analisar os efeitos a longo prazo.

 “Por isso, o canabidiol ainda não é a primeira escolha nestes casos, mas pode ser usado se outras alternativas não forem eficazes, a depender da avaliação do médico assistente”.

De quem é a conta final?

Ainda que com a autorização em mãos, os pacientes que dependem do tratamento com referidos fármacos enfrentam algumas barreiras: o preço do medicamento e a burocracia da farmácia de alto custo. 

No caso de Davi, a mãe relata que ainda vale a pena comprar no Brasil. “Mas se a dosagem aumentar, preciso importar, devido à concentração”, diz. Ele toma uma gota duas vezes ao dia. Um frasco com a concentração de 20mg dura um mês, e custa R$ 250, segundo Simone. 

Além disso, Simone se queixa das burocracias, já que o governo entende que só deve ser obrigado a pagar tratamento que exista comprovação científica. “Essa é a dificuldade. Pra importar e pra comprar o nacional, já não tem tanta. É você que vai pagar com o seu dinheiro”.

Tatyane, mãe de Ricardinho, só conseguiu retirar o medicamento na farmácia de alto custo duas vezes, e, nas duas, precisou acionar a Defensoria Pública. Em outras ocasiões, para obter o óleo, ela importava com a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A cada mês, iam-se mais de R$ 1,5 mil. 

“Depois eu fui ver, e era bem mais, porque era em dólar”, diz. “E pela farmácia de alto custo, muito burocrático e nada regular, porque tinha mês que tinha, tinha mês que não tinha”.

Segundo um estudo feito pela Medicina In, o preço médio de um tratamento com canabidiol no Brasil varia entre R$ 250 a R$ 2.199 por mês. Ou seja, o custo para o tratamento é incompatível com o padrão de renda da maioria da população, e, consequentemente, da maioria das famílias dos pacientes que dependem do uso do medicamento à base de cannabis. 

No entanto, a entrega de remédios pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não seria tão eficiente, por conta da problemática relatada por Tatyane: a falta de regularidade na entrega do medicamento, por conta do alto custo e procura. Além disso, existem atrasos na distribuição de medicamentos mais baratos do que os que precisam ser importados, devido à falta de regulamentação de estudos do uso medicinal da cannabis no Brasil.

Habeas Corpus

Está previsto, na Constituição Federal, o Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. 

O cultivo de cannabis para fins medicinais se enquadra no conceito do Habeas Corpus preventivo. Isto é: quem tem autorização judicial para o plantio, não se enquadra em nenhuma forma de prisão.

Os pais de Ricardinho estavam enfrentando grandes questões, como o valor gasto com a importação do óleo full spectrum e a burocracia da farmácia de alto custo. Foi quando eles arriscaram e fizeram uma plantação ilegal da cannabis.

 “A gente conseguiu algumas sementes, e a gente resolveu a gente mesmo cultivar”, diz Tatyane. A extração integral do óleo zerou as convulsões, e, a partir daí, começou a luta na Justiça para cultivar a planta legalmente. “Nós entramos com o pedido na Justiça Federal para plantar. Nosso salvo conduto saiu em 2020”.

Tatyane de Camargo e Ricardinho. Foto: Arquivo pessoal

Hoje, a família de Ricardinho tem um cultivo orgânico de cannabis e plantam dentro do apartamento que residem. “A gente tem, em média, de quinze a vinte plantas, e hoje a gente cultiva e extrai o óleo”. Tatyane relata que aprendeu a fazer a extração com o presidente da Aliança Verde, Rafael Ladeira. 

Esse cultivo, no entanto, precisou passar por várias etapas burocráticas com o governo até ser aprovado. O deputado distrital Max Maciel explica que o paciente (ou o responsável) precisa declarar o laudo médico comprovando a necessidade do uso e do cultivo. 

Além disso, a família do paciente passa por uma série de investigações feita pela Polícia Federal, e o cultivador recebe visitas esporádicas de órgãos de controle para atestar que o plantio está sendo feito apenas para uso medicinal.

O deputado ainda pontua que existe um problema na questão do cultivo e no acesso ao medicamento para pacientes que precisam do medicamento e enfrentam os mesmos problemas que a família de Tatyane e de Simone: a regulamentação. “A judicialização é quando falta alguma coisa. Mas se faltando acesso à saúde, que é um direito humano, tem uma coisa muito errada”, diz.

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Esta reportagem foi inspirada na música ‘A ciência em si’, de Arnaldo Antunes.

Por Evellyn Paola
Fotos: Arquivo pessoal dos entrevistados
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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