“A vida aos poucos vai começando a crescer em volta daquele luto. Ele não diminui, mas sua vida começa a ficar maior que ele, e com mais experiências”. Essa é a afirmação de Mateus Arantes, jornalista, de 23 anos, que perdeu o pai em 2021, vítima da covid-19.
Após três anos do primeiro caso de coronavírus no país, o número de mortes chegou a marca de 700 mil vítimas pela doença no Brasil. Muito mais do que números, há uma série de dores que não podem ser contabilizadas.
Mateus Arantes recorda que esperava todos os dias o pai chegar do trabalho. Ouvia os barulhos da chave balançando. “E aquilo não acontecia mais. Foi muito difícil me acostumar com a nova rotina, e até hoje é.” O pai, Anderson Fernandes, morreu no dia 17 de abril de 2021, aos 44 anos, vítima de sequelas do coronavírus.
A despedida
A carta de despedida que Mateus deixou para o pai em uma rede social retoma cada etapa do sofrimento do luto e como foi o momento de despedida, na cama do hospital Anchieta, em Taguatinga (DF).
“Você partiu enquanto eu olhava atentamente. Com certeza a pior e mais traumatizante experiência da minha vida.
Quando vi os batimentos zerados, fiquei desesperado, não queria acreditar (e ainda não quero).
Nunca senti algo tão ruim. A imponência é amarga e não tem dó. Mas, é com essa visão que me despeço de você, apenas boas lembranças.
Era um cara divertido e querido por todos, fez grandes laços e ajudou muita gente. A vida é assim, imprevisível, mas se houvesse a possibilidade de escrever um roteiro, não deixaria você partir tão jovem, aos 44 anos.
Dia 07/03/2021, final da Copa do Brasil, Palmeiras 2 x 0 Grêmio, mesma data em que você foi internado. Para ser mais exato, aos 18:35 do segundo tempo. Pai, você não viu nosso time ser campeão, mas como grande palmeirense, foi um grande vencedor durante essas seis dolorosas semanas, até o último suspiro.”
Conforto no luto
Mateus conta que uma forma de se sentir perto do pai é fazer visitas ao seu túmulo no cemitério. Ele busca conversar com o pai. “Às vezes, levo girassol pra ele, que era a flor favorita dele, e busco honrá-lo sempre, e dar orgulho para ele.”
Mateus comenta que uma música que lembra muito seu pai e que remete aos seus últimos momentos é “Amigo velho”, do Falamansa. A música diz que a pessoa vai estar com ele até a morte, que foi o que os dois fizeram, e foi cantada em seu enterro.
“Amigo velho
Eu te desejo sorte
Desejo tudo de bom
Tô com você até a morte”
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/Mateus-e-Anderson.jpeg)
O luto
A psicóloga Maria Clara Kubiak explica como lidar com a solidão e as dores do luto, aspectos comentados pelo jovem. “As pessoas se assustam muito pela perda, e esse fator assustador gera muito sofrimento.”
Existem grupos de apoio a pessoas enlutadas ou estão em fase terminal e precisam enfrentar o próprio luto. Quem perdeu um ente querido sente medo de viver essa nova realidade sem aquele indivíduo. Com isso, buscar pessoas que estão passando pelo mesmo processo pode ajudar.
A psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross estudou pacientes que estão na fase final da vida, e identificou cinco fases relacionadas ao luto, negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.
A médica afirma que o movimento do luto é pendular, e não linear, ou seja, passa por todas essas fases ao longo do processo de perda.
Assim como as fases do luto, foram as fases da covid, a grande maioria da população se encontrou nessa situação: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.
Associação de vítimas
A Associação das Vítimas da Covid (Avico) tem sede em Porto Alegre (RS), mas reuniões em 24 estados. A entidade foi fundada em 8 de abril de 2021, em pleno colapso da saúde pública, a partir da indignação de Gustavo Bernardes (advogado) e Paola Falceta (assistente social).
Eles ficaram revoltados com a ineficiência e negligência do Estado diante das consequências da pandemia de covid-19 na vida dos brasileiros.
Gustavo foi internado (e entubado) no final de 2020 para tratamento da doença e sofreu com as graves sequelas oriundas da infecção.
Paola foi infectada enquanto cuidava de sua mãe, hospitalizada primeiramente para uma cirurgia de emergência, mas que também se infectou e faleceu da doença em março de 2021.
Após atuarem juntos na defesa de Direitos Humanos de outro coletivo da sociedade civil, sempre acreditaram que, diante da inação (intencional ou não) do Estado, somente a mobilização social e o enfrentamento comunitário poderiam minimizar os diferentes impactos da pandemia no Brasil.
Assim, nasceu um coletivo social que luta por justiça e memória às vítimas fatais e também pela garantia e acesso aos Direitos Humanos constitucionais dos sobreviventes da covid-19.
A presidente da entidade Paola Falceta, fundadora do grupo, explica que atuação que era para ser regional, se expandiu para o Brasil inteiro, uma associação que era para ser pequena, hoje tem 24 núcleos nos estados brasileiros. Somos todos voluntários, toda nossa luta começa política.”
Paola afirma que o intuito do grupo é garantir os direitos humanos, e que trabalham em três eixos:
- Apoio psicossocial: trabalha o processo do luto, perda ou adoecimento em relação à doença.
- Jurídico: Contribuição para o ajuizamento de ações em defesa de família das vítimas e dos sobreviventes com covid longa, contra a União. Em busca de indenizações para essas famílias.
- Mobilização e controle social: Garantia de legitimidade como coletivo no Brasil, espaço político, de exercício da cidadania, em que o grupo tenta estar presente em todas as partes do país.
“Não falamos em superação, já que os psicólogos dizem que não há como superar o luto. Falamos em transformação. Conseguimos transformar o sentimento em relação ao luto. A grande maioria consegue transformar a sua dor”, afirma a fundadora da entidade.
Luto da sociedade
Nos primeiros casos, em janeiro de 2020, a população do mundo via a pandemia como algo distante e irreal, continuavam sua vida de forma normal e ignoravam a doença, como é o caso da primeira fase do luto, a negação.
“É muito comum as pessoas sentirem raiva, culpa ou negação. A pessoa fica com raiva do mundo, às vezes a pessoa tem uma crença e começa a duvidar do que acredita.”
Já com os casos frequentes, a partir de março de 2020, a raiva tomou conta da população. Era difícil aceitar uma realidade distante e solitária, em que todos precisavam estar em casa, longe do trabalho, da diversão e da família.
“Quando acontecem perdas muito difíceis, a raiva toma conta da pessoa, raiva de Deus e dela mesma.A pessoa se questiona se poderia ter feito algo e ainda não sabe como é viver sem essa pessoa.”
A partir disso, se instaurou a terceira fase do luto, a negociação. Esse período pode ser caracterizado, segundo a psicóloga ouvida pela reportagem, pelo momento em que a pessoa enlutada conversa consigo mesma a necessidade de superar a dor e seguir adiante.
Ela avalia que ocorre entendimento e compreensão sobre a situação que estavam vivendo, e precisavam passar por ela.
Depressão
Na fase que perpassa a depressão, ocorre que o enlutado está em reclusão para o seu mundo interno, onde ela passa a se isolar e a se considerar impotente frente ao ocorrido.
Por fim, ocorre a fase da aceitação. A perda começa a parecer mais “tranquila” e até “aceita”. O que ocorreu quando a população entendeu o que era o coronavírus, seus riscos e a real necessidade de se manter em reclusão e aguardar o momento de voltar à rotina.
Não necessariamente essas fases se dão na ordem, cada pessoa pode passar por elas em uma ordem diferente, de acordo com o sentimento e o período que está vivendo, seja ao pensar em pessoas enlutadas ou na sociedade ao longo da pandemia e volta à rotina.
Amor de adolescência interrompido
700 mil mortes, 700 mil vidas perdidas, mas, para Elisângela foi seu primeiro e grande amor.
“A gente se conheceu na adolescência, desde os 12 anos moramos na mesma rua e estamos juntos, namoramos por 8 anos, casamos e tivemos dois filhos, hoje tenho três netas, e nosso casamento era de muito companheirismo e união.”
Esse é o relato de Elisângela Carla, de 41 anos, que perdeu o marido, vítima da covid-19 no ano de 2021.
Emocionada, Elisângela comenta que não sabe os motivos que levaram à internação de seu esposo, o hospital não ligou para ela informando o que havia acontecido, e após isso, ela não conseguiu mais falar com ele.
“Ele estava bem na manhã do dia que foi entubado, até 13h45 da tarde estávamos conversando normalmente, depois de 14h40, não consegui mais conversar com ele.”
Depois da intubação foram dias terríveis: ansiedade, medo, esperança e angústia. Mas, por obra do destino, a união física entre os dois teve fim, no dia 18 de março de 2021.
Com lágrimas nos olhos, ela comenta que sua vida era perfeita, família completa, filhos criados, aposentadoria próxima, planos de viajar e morar em outro lugar.
“Mas infelizmente esse vírus veio e o levou. Ele foi uma das melhores partes da minha vida, e hoje, ficaram apenas lembranças.”
“Por poucos dias, meu pai não teve acesso à vacina”
Rômulo Bezerra, 56 anos, chegou em casa em uma terça-feira, em maio de 2021, com sintomas de covid 19, mas sem saber que já estava com a doença.
Ele e a esposa, Vilma Maria, testaram positivo, mas estavam bem. Na quinta-feira, Rômulo começou a tossir de forma recorrente e sua saturação começou a diminuir muito.
“Chegou um momento, que por conta da tosse, ele não estava aguentando de dor, ele chegou a ir ao hospital, mas o médico receitou remédios e visitas diárias ao hospital para o tratamento, já que era uma época que todos estavam lotados. Ao longo dos dias, o quadro dele piorou e ele foi internado”, relata Amália Bezerra, 23 anos, estudante de medicina.
Desde a internação do pai, Amália não o viu mais. Ele foi intubado, mas ao longo dos dias estava aparentemente bem, ligava para a família e fazia questão de manter contato.
Após a internação decorrente do coronavírus, Rômulo Bezerra desenvolveu uma pneumonia, e com o avanço da doença, ficou uma semana internado e faleceu, terça-feira, 11 de maio de 2021.
No domingo, 9 de maio, Amália recebeu uma ligação de seu pai, a jovem vê como uma despedida.
“Meu pai nos ligou pelo telefone do fisioterapeuta dele, ele se despediu, mas sem imaginar que estava se despedindo. Ele disse que conversou com a equipe médica e indicaram que ele fosse intubado, era como se fosse uma intubação de proteção, estava muito ruim pra respirar, ele não conseguia falar. No dia da intubação, foi o dia que eu mais tive medo de perdê-lo.”
Para a jovem, perder o pai foi como se ela tivesse levado um tiro. “Uma semana eu estava bem, em casa, vivendo minha vida, e na outra meu pai tinha morrido”, relata Amália ao relembrar o dia de sua perda.
“Meu pai, que sempre lutou tanto politicamente pelo certo, na hora de descansar não teve o cuidado que devia. A liminar já tinha saído e sabíamos que essa transferência estava perto, então estávamos de casa rezando e nos preparando pra voltar pra porta do hospital no dia seguinte, e aí eu recebo uma ligação por volta de 22h40 pra correr pro hospital com os documentos dele”.
Era um misto de medo e esperança. Amália recorda que perguntou se era sobre a transferência dele para UTI. “Só repetiu que precisava dos documentos. Daí, meu inferno que já estava no começo, se concretizou”. O pai havia falecido.
- “Ele amava a gente. Ele descansou” era o que minha irmã repetia pra mim incansavelmente enquanto me consolava.”
A vida de todos em sua casa mudou, mudanças de rotina, de funções, de casa. Mas Amália se inspirou em seu pai para encarar o luto, acreditava que se aquilo aconteceu, eles precisavam seguir em frente, que a vida precisava continuar. E isso a trouxe muita força.
“Por poucos dias, meu pai não teve acesso à vacina”. Esse é um tópico que mexe com as emoções de toda a família e surge sempre o questionamento.
“Se ele tivesse tido acesso, qual seria o desfecho, o que teria mudado?” Essas dúvidas atrapalham o processo da perda, em especial por envolver uma questão política que ocorreu no país e por ter um método de prevenção que não pode ser utilizado.
Amália conta que após a perda ficou muito revoltada. Não tinha mais motivação nem vontade de seguir seus objetivos e passou a “viver no automático”. “Eu era uma pessoa muito bitolada com covid, mas não importava mais, já tinha perdido a pessoa mais importante da minha vida”.
Há anos, a jovem se dedicava ao vestibular de medicina com o apoio incondicional de seu pai. No entanto, lidar com a ausência dele e retomar esse sonho sem sua presença foi uma jornada dolorosa e extensa.
“Foi muito difícil viver novas coisas sem ele aqui, procurar apartamento, mudar de cidade, não poder apresentar pra ele a minha nova vida, é uma culpa constante de viver e ser feliz sem ele.”
Datas comemorativas, momentos em família, acidentes, hábitos diários tornam a superação do luto cada vez mais difícil, a sensação de vazio é constante.
“O luto é uma forma cruel de aprendizado, Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Não sabia que a gente chorava com os músculos. A dor não me causa espanto, mas seu aspecto físico sim.”
Para mais informações sobre a AVICO Brasil, acesse o site: https://avicobrasil.com.br/ e se se torne um associado ou voluntário.
Essa reportagem é inspirada na música Travessia, de Milton Nascimento
“Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito o que viver”
Travessia, Milton Nascimento.
Por Júlia Clara
Fotos: Arquivo pessoal dos entrevistados
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira