Pacientes em tratamento do câncer têm ainda custos elevados para preservar fertilidade

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No Brasil, preservar a fertilidade antes da quimioterapia ou radioterapia ainda é um privilégio de poucos.

O avanço da ciência tornou possível congelar óvulos, espermatozoides ou até tecido ovariano, permitindo que pacientes oncológicos mantenham o sonho da maternidade ou paternidade após o câncer.

Imagem: Agência Brasil.

Mas os custos elevados e a falta de políticas públicas estruturadas criam um abismo entre quem pode pagar e quem não pode.

Saiba mais sobre como o tratamento para o câncer pode gerar infertilidade na primeira reportagem desta série: https://agenciadenoticias.uniceub.br/saude/especialista-explica-como-salvar-a-fertilidade-durante-tratamento-para-cancer/ 

O médico Roberto de Azevedo Antunes, diretor da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), diretor da Fertipraxis Centro de Reprodução Humana e responsável pelo Ambulatório de Infertilidade Conjugal do HUCFF-UFRJ, enfatiza que, embora decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça tenham obrigado planos de saúde a cobrir a criopreservação de óvulos para pacientes em tratamento oncológico, essa proteção é limitada.

“Embora o tratamento de congelamento de óvulos não seja tipicamente coberto pelos planos de saúde suplementar, recentemente, o STJ decidiu que a operadora deve custear a criopreservação de óvulos como prevenção da infertilidade até a alta da quimioterapia (a partir daí, os custos de manutenção recaem sobre a paciente)”, afirma o doutor.

Gratuito

Na rede pública, o cenário é ainda mais restrito. “Hoje, os tratamentos reprodutivos no geral não são amplamente contemplados pelo SUS e pelos planos de saúde, o que limita o acesso da maioria das pacientes”, afirma a ginecologista Paula Araújo Bortolai, que faz parte do programa Os Frutos da Vida, do IPGO.

Criado em 2012, o projeto oferece atendimento gratuito e acompanhamento médico sem cobrança de honorários, mas depende de parcerias para reduzir custos com medicamentos e insumos.

“Infelizmente neste momento a paciente tem que arcar com os custos das medicações e da parte laboratorial, o que já é algo dispendioso, num momento em que paciente tem diversas outras preocupações.”

O projeto funciona como uma rede de apoio que vai além da técnica.

As pacientes recebem orientação individualizada e suporte durante um momento delicado de suas vidas.

“Nosso foco é tornar o menos burocrático possível e a paciente conta com toda a equipe do IPGO, contatos de emergência e acompanhamento médico sem cobrança nenhuma de honorários”, afirma Paula.

Ela acrescenta que a infertilidade pode ser um impacto muito grande, assim como o diagnóstico da doença.

“Sabemos que a infertilidade pode ser devastadora e os tratamentos oncológicos, tanto cirúrgicos, quanto os protocolos de quimioterapia e radioterapia podem comprometer de forma irreversível a reserva ovariana, impedindo essas pacientes de realizar o sonho da maternidade no futuro”, diz Paula Bortolai.

Entre tantas histórias, uma em especial marcou a equipe. Era uma jovem de 35 anos com o diagnostico de cancer de mama. “Ela chegou desesperada após receber o diagnóstico. Em menos de duas semanas conseguimos preservar seus óvulos e a resposta dela foi ótima.”, lembrou a médica.

Cinco anos depois, ela foi liberada pelo oncologista e estava curada e com o desejo de engravidar.

“Hoje, é mãe. E nos lembra todos os dias de por que esse trabalho é tão essencial. Acompanhar estes casos é um aprendizado para mim. Nos momentos de fragilidade não existem máscaras, não tem rodeios, todo mundo é igual; o ser humano revela o que tem de mais bonito, o que é essencial. Cada pequena conquista tem um valor imenso. Quem ganha sou eu com pílulas diárias de gratidão e coragem”, relata Paula.

Para ela, o problema vai além da clínica. “Programas como Os Frutos da Vida surgem justamente para preencher essa lacuna, mas sabemos que o ideal seria uma política pública estruturada, capaz de garantir esse direito a todas as mulheres. Acreditamos que saúde oncológica e saúde reprodutiva devem caminhar juntas.”

Contraste

Diversos países consolidaram ou avançaram em políticas públicas que reconhecem a preservação da fertilidade como parte essencial do cuidado oncológico. A análise de modelos internacionais revela diferentes abordagens, mas um movimento comum em direção à ampliação do acesso.

No Reino Unido, o NHS England já tem a preservação da fertilidade como parte de sua rede de atendimento.

As especificações de serviço de 2023 exigem que adolescentes e adultos jovens com diagnóstico de câncer sejam informados e encaminhados para essa opção quando há risco de infertilidade.

A segurança dos procedimentos é validada por órgãos como o NICE, que em avaliações publicadas em 2023 (IPG772) confirmou a eficácia do reimplante de tecido ovariano.

A França, por meio de sua seguridade social, reembolsa procedimentos de autoconservação de gametas e tecidos reprodutivos por motivo médico (como antes da quimioterapia).

Essa cobertura está prevista na legislação de bioética de 2021, que modernizou o acesso a tratamentos de fertilidade.

Em casos sem indicação médica, no entanto, o armazenamento não é coberto. 

Antes de tratamentos que podem causar infertilidade (como quimioterapia ou radioterapia), a lei reforça o direito do paciente de preservar seus gametas para um projeto parental futuro.

O tratamento oncológico é a “indicação médica”. A lei veio para solidificar e organizar essa prática, garantindo que ela seja oferecida dentro de um quadro legal claro e que os custos do procedimento (coleta e congelamento) sejam cobertos pela seguridade social.

Sem uma política federal padronizada, a cobertura nos EUA varia por estado. Segundo a Alliance for Fertility Preservation, 21 estados já garantem algum nível de cobertura para preservação da fertilidade em pacientes oncológicos, beneficiando cerca de 40 milhões de pessoas.

Embora as diretrizes clínicas da NCCN e da ASRM recomendem que a infertilidade seja discutida antes da terapia, o acesso efetivo depende das legislações locais.

O Canadá ilustra um modelo de cobertura provincial desigual: Quebec se destaca por oferecer a preservação da fertilidade integralmente pelo sistema público.

Já em British Columbi, o governo anunciou que, a partir de 2 de julho de 2025, financiará um ciclo completo de fertilização in vitro (IVF), incluindo medicação, com valores de até CAD 19.000 para residentes elegíveis, com base na renda.

E em Ontario, além do programa provincial existente, a província implementou em 2025 um novo crédito tributário de até 25% das despesas com tratamento de fertilidade para ampliar o acesso.

A esperança como direito

No Brasil, onde a maioria dos pacientes ainda depende de iniciativas filantrópicas ou da capacidade de arcar com altos custos, o contraste internacional escancara a desigualdade.

Para Antunes, o encaminhamento precoce é essencial: “O encaminhamento precoce (no diagnóstico) é o fator mais importante para o sucesso e para não atrasar a terapia oncológica.”

Para Bortolai, preservar a fertilidade é mais do que congelar gametas… é uma forma de dar perspectiva em meio ao caos do diagnóstico.

“Muitas relatam que se sentem mais fortes, porque sabem que estão protegendo não apenas sua saúde, mas também um sonho de vida futura. Isso traz esperança, alívio e motivação para atravessar a fase difícil da quimioterapia e da radioterapia, mesmo que elas não venham a utilizar estes óvulos no futuro”, afirma.

Por Maria Clara Britto

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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