
Comerciantes no Distrito Federal e pela internet ainda driblam a vigilância para vender o medicamento Cytotec (proibido no Brasil desde 2005 por ser abortivo). A reportagem chegou a flagrar a venda em por R$ 500 em ponto comercial popular, no centro de Taguatinga. Na ocasião, no final de 2016, o proprietário do negócio negou qualquer envolvimento com o comércio ilegal. A Polícia Civil já encontrou o mesmo remédio sendo vendido clandestinamente na Feira dos Importados e atua na área de inteligência para evitar o crime. No entanto, na internet, não é rara a venda sem qualquer camuflagem. Segundo a professora e ginecologista Flávia Neves, o uso do medicamento sem qualquer acompanhamento pode até levar à morte da gestante. No Brasil, o aborto é proibido (salvo algumas exceções previstas em lei) e esse fator também alimenta o mercado clandestino que vende produtos para mulheres sem o amparo do sistema de saúde.
O vendedor é funcionário de um ponto comercial em Taguatinga, uma Kombi, onde são vendidas ervas medicinais legais, temperos e garrafadas. Uma entrevistada, que preferiu não ser identificada, afirmou que é comum as pessoas comprarem o Cytotec com o homem no local e que, além disso, ele comercializa também outros medicamentos, vendidos em farmácia apenas sob apresentação de receita especial, como a Sibutramina (utilizado no tratamento da obesidade).
Ao ser questionado sobre ervas abortivas, o suspeito disse que elas são eficientes até quarta semana de gestação. “Daí em diante, só com Cytotec”, afirmou. Ele contou que tem o produto em estoque: “aqui não falta, não”. O preço cobrado é semelhante ao custo oferecido na internet: R$ 500. “Vem com 4 comprimidos. Ela toma 2, os outros 2 ela enfia (introduz na vagina) e depois espera seis horas para digerir (o medicamento)”, encerrou.
Posteriormente, para a reportagem, o homem negou a acusação e alegou que a Kombi onde trabalha pertence a outra pessoa.
O proprietário do negócio tem 73 anos, há mais de 40 mora em Brasília, vende ervas medicinais há quase 30 anos no mesmo local e é conhecido na região por seu negócio pacato. Questionado, negou ter conhecimento do comércio ilegal praticado pelo funcionário em seu estabelecimento.
Durante a entrevista, o dono da Kombi garantiu que são raras as pessoas que já foram àquele local com o intuito de comprar ervas abortivas. Ele foi categórico ao afirmar que nunca vendeu quaisquer produtos quando seus clientes demonstravam indícios de que os utilizariam com esta finalidade. Em relação a seu funcionário, o dono do comércio disse que ele era vigia dos carros que ficavam próximos à sua Kombi. Eles tinham um bom relacionamento. Foi quando a demanda cresceu que ele convidou o ex-vigia para ajudá-lo em seu negócio. Ele não lembra exatamente quando o contratou, mas afirmou que o funcionário sempre foi muito solícito, apesar de estar agindo de maneira anormal ultimamente.
A experiência de Carla
Dados do projeto Nascer no Brasil, realizado pela Fiocruz, apontam que 45% das mulheres que engravidam no Brasil planejam de fato a gravidez. No ano de 2013, Carla*, 25, ficava com Ricardo*, um rapaz mais velho e estável financeiramente – funcionário público do GDF – e, apesar do uso constante de preservativos, virou estatística: passou a fazer parte do grupo majoritário de mulheres que não planejaram dar à luz. No primeiro momento, a moça cogitou ter a criança, mas entregá-la à adoção assim que nascesse – possibilidade refutada pelo homem, que logo sugeriu o aborto.
“O cara com quem eu me relacionava não era alguém com quem eu tinha um relacionamento sério, além de não querer depender só dele. Já passei por muitas coisas ruins na minha vida, acho que esse seria um problema a mais”, desabafou. Carla pressupôs que não podia contar com o apoio da mãe, pensava que, por ser uma “religiosa fanática”, dificilmente compreenderia a filha por engravidar nas condições em que a moça se encontrava; tampouco apoiaria entregar o bebê à adoção; rechaçaria a possibilidade de abortá-lo.
Carla teve a própria experiência de vida como fator agravante: foi fruto de uma gravidez não planejada. Viu o pai não mais que quatro vezes durante toda sua vida. Assim que ela nasceu, o genitor arrumou uma outra família e foi embora. “Não queria isso pra uma criança. Se um dia, por ventura, eu tiver um filho, será com alguém com quem eu tenha um relacionamento seguro. Queremos para o nosso filho o que não recebemos dos nossos pais. Não quero dar para o meu filho um pai ausente, mas sim uma família”, ponderou.
“Não tenho essa consciência, não quero ser mãe. Não estou pronta para abrir mão de coisas na minha vida por outra pessoa. Sou incapaz de colocar outra pessoa acima de mim, sou muito egoísta. Quando vejo minhas amigas com filhos pequenos, os deixando em casa para ir ao bar, percebo que não sou a única. E acho ridículo. Uma pessoa, quando tem um filho, deve abdicar das ‘paradas’ e viver pelo filho, dar tudo de melhor para o filho; e eu não tenho essa capacidade, não teria nem condição financeira. Não gosto de criança, não tenho vocação materna”, acrescentou Carla, pondo em questão O Mito do Amor Materno, tema de um livro da escritora francesa Elisabeth Badinter.
Sem o apoio do Estado, amparo familiar e insegura com o relacionamento instável, teve a difícil decisão de fazer o aborto. Com o apoio de uma outra mulher, que, além de conseguir o medicamento por R$ 400,00 com um comerciante em Ceilândia, cedeu sua casa para Carla fazer uso do Cytotec. As instruções para autilização foram as mesmas dadas pelo funcionário da Kombi à reportagem.
Duas horas após ingerir o medicamento, em sua terceira semana de gestação, Carla sangrava como se o aborto estivesse ocorrendo naquele instante – e assim se manteve durante um mês inteiro. Contudo, somente na segunda quinzena aconteceu de fato. No ônibus, durante o trajeto de sua casa até a faculdade, o sangramento se intensificou. Chegou em seu destino, se dirigiu ao banheiro e sentou-se no vaso sanitário: o feto desceu. “Foi traumático, bizarro ver o feto ali. Me senti muito mal. Por mais que eu apoie a legalização do aborto – as mulheres vão continuar abortando, sendo proibido ou não -, eu não faria de novo”, rememora.
Questionada sobre como a experiência poderia ter sido menos traumática, Carla não titubeou: “Se o aborto fosse legalizado. Eu poderia fazer tudo direitinho, com acompanhamento médico e psicológico. O Cytotec é vendido como um remédio para gripe. Não houve uma preocupação de quem me vendeu com a minha saúde. Eu poderia ter alergia ao medicamento, poderia ter morrido”.
“A lei precisa acompanhar a realidade. Temos que estar a serviço das mulheres, porque para uma mulher que tem dinheiro é muito fácil: ela tem acesso à informação, tem instrução o suficiente para, na internet, encontrar algum site internacional que a ajude. Isso a mulher da periferia não tem, ela recorre ao que tiver. Essa questão da instrução é muito básica, é algo que o governo pode prover. As políticas públicas devem existir e devem ser voltadas em peso para as mulheres da periferia”, finalizou.
Efeitos psicológicos após o aborto ilegal
Segundo a psicóloga Lícia Castro, 58 anos, existem duas causas principais para as mulheres, em sua maioria, manterem em silêncio o aborto ilegalmente cometido: sua criminalização e a experiência do procedimento. Por se tratar de um crime, há o constrangimento e a insegurança da mulher em falar sobre o ocorrido. Por outro lado, a experiência, traumática principalmente nos procedimentos abortivos entre as mulheres mais pobres, traz consigo angustias e más lembranças. O segredo guardado, segundo Lícia, acarreta em “interferências nos relacionamentos e no social, que gera uma tensão, uma não transparência e não saber o que fazer em relação a isto”.
A psicóloga ainda conta uma peculiaridade comum entre as clientes consultadas por ela: “Não é pelo aborto que as mulheres vêm parar aqui (consultório). Mas, trabalhando com o sofrimento, o assunto emerge. Emerge geralmente com culpa, sentimentos de auto depreciação, baixa autoestima, depressão”. Ainda conta que inicialmente a mulher pode ter ido pela depressão, mas, conforme o avanço do tratamento, revela-se o histórico de aborto, segredo guardado, como uma das causas desse sofrimento.
Este sofrimento citado por Lícia se manifesta de diversas maneiras: psicossomatizações (dor de cabeça, gastura no estômago), fobias e pânico são alguns dos sintomas comuns entre as mulheres tratadas pela psicóloga.
Confira, na íntegra, a entrevista feita com a professora e ginecologista Flávia Neves
Pergunta: Quais são os efeitos colaterais do Cytotec?
Flávia Neves: O nome genérico do Cytotec é Misoprostol, e ele é na verdade análogo da prostaglandina E1. É uma medicação utilizada com a finalidade de dilatação do colo do útero e seu efeito colateral principal é provocar contrações. Então, o principal efeito colateral do Cytotec é a dor, uma dor que é vinculada com a dilatação do colo. Além disso, ele tem uma relação dose-efeito. Quanto maior a dose, mais fortes serão os sintomas: a contratilidade, consequentemente, o próprio processo em si pode ser mais agressivo, apresentar uma maior quantidade de sangramento e isso também seria um efeito colateral.
Pergunta: Em caso de legalização do abortamento, o uso do Cytotec seria a forma mais indicada para realizá-lo?
Flávia Neves: Eu acredito que sim. O Misoprostol é utilizado em casos de abortamento legal. A restrição quanto ao Misoprostol é que ele seja utilizado no começo da gestação. No final, quando o feto já está acima de 30 semanas, já tem muito conteúdo uterino. É bem provável que evolua com um trabalho de parto prematuro, mas que o feto sobreviva. Seria complicado de duas formas: não seria a finalidade do caso (abortar) e geraria um problema, porque nasceria um feto prematuro, o que geraria a necessidade de toda uma assistência diferenciada.
Pergunta: De que forma, na prática, a realização do procedimento com Cytotec clandestinamente se distingue do mesmo procedimento com acompanhamento médico? Como poderia um médico amenizar os impactos dos possíveis efeitos colaterais fisiológicos?
Flávia Neves: Fisicamente, tem a questão da dose do remédio, da forma como ele é utilizado e de toda a estrutura hospitalar, para oferecer uma assistência a essa paciente. Você tem como contornar os efeitos colaterais físicos mais graves. A paciente teria, por lei, o direito ao atestado médico, podendo ficar afastada do trabalho por conta desse processo do abortamento em si. O problema desses abortamentos ilegais, seria não só a questão psicológica, mas também o risco de morte, porque o que acontece: se você faz um procedimento e fica algum material dentro do útero (resto embrionário), aquilo pode ser, no futuro, um ambiente de contaminação e de infecção. E também pode, muito remotamente, gerar um distúrbio de coagulação associado. Então a gente tem as duas das três principais causas de morte materna aí.
A criminalização do aborto
Prevê o artigo 128 do Código Penal brasileiro que a prática do aborto é crime em todo território nacional, exceto em três casos: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, quando a gestação resulta de um estupro ou quando o feto é anencéfalo. A criminalização do aborto é a causa de mais de um milhão de mulheres ao ano recorrerem à clandestinidade no Brasil.
Segundo pesquisa feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com o Guttmacher Institute entre os anos de 1990 e 2014, o número de mulheres que abortam por ano no mundo cresceu de 50,6 milhões entre 1990 e 1994 para 56,3 milhões entre 2010 e 2014. Porém, devido ao crescimento populacional mundial, mesmo o aumento na quantidade de abortos entre os 15 anos observados não contabiliza acréscimo da média anual de abortos.
Segundo pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013, 8,7 milhões de brasileiras entre 18 e 49 anos abortaram ao menos uma vez. Destes, 1,1 milhão de abortos foram provocados pela mulher. O IBGE estima que pela criminalização do aborto, há um grande número de casos de abortos provocados não notificados na pesquisa.
A advogada Ilka Teodoro afirma não existir um perfil da mulher que aborta no Brasil. “O aborto é uma questão que une mulheres de todas as idades, de todas as etnias e de todas as classes sociais. A mulher aborta desde criança, 8, 9 anos de idade, até quando a mulher tiver idade fértil”, afirma.
“A mulher que não deseja seguir na gravidez deveria ter, num primeiro momento, um amparo de uma equipe multidisciplinar. Uma assistência social que avalia toda sua condição socioeconômica, uma assistência psicológica para avaliar a sua condição pessoal, saber se está em um elevado estágio de sofrimento, ou se é apenas uma questão de resolver uma estrutura familiar. É criada toda uma estrutura para saber se de fato aquela mulher deseja abortar, porque muitas vezes a decisão do aborto é uma decisão de impulso, de desespero”, propõe Ilka Teodoro. Segundo a advogada, com uma rede de amparo à mulher que seja sólida, o número de abortos seria compatível com a desigualdade social vigente, pois haveria maior sobriedade na escolha de prosseguir ou interromper a gravidez.
A promotora de justiça Teresinha Teles, 53, em sua tese do doutorado apresentada em dezembro de 2015 defende a inconstitucionalidade na criminalização do aborto. Ela escolheu categorias e liberdades previstas como direitos fundamentais da Constituição de 1988 para contrapor o artigo 128 do Código Penal de 1940. A promotora afirma a “legitimidade do Supremo Tribunal Federal de descriminalizar o aborto, de modificar a redação do Código Penal”, e pretende demonstrar que “está no âmbito da atuação da corte constitucional a garantia dos direitos fundamentais, dos direitos constitucionais das liberdades individuais, dentre elas a liberdade reprodutiva e autonomia procriativa”.
* Nomes foram alterados para preservar identidade de entrevistados
Repórteres: Cézar Feitoza e Paulo Gonçalves
Imagens produzidas por Arthur Menescal
Colaborou: Karina Berardo
Material originalmente produzido para a Revista Novo Olhar