“O amor é o ridículo da vida
A gente procura nele uma pureza impossível
Uma pureza que está sempre se pondo
A vida veio e me levou com ela
Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraíso que nos persegue
Bonita e breve
Como borboletas que só vivem 24 horas
Morrer não dói.”
Cazuza escreveu esses versos quando estava em seu leito de morte, após uma extensa luta contra a Aids. Uma cura impossível naquele tempo. Cazuza teve que aceitar a morte. Ou, pelo menos, aprender a lidar com a certeza dela. Com aquela vaga ideia de paraíso que nos persegue, aceitar o fim da vida parece ser fácil. Mas como seria ter que se conformar com a morte do seu melhor amigo? E, ainda pior que isso, ter que levá-lo para ela?
“Eu não queria, mas precisava ser feito”
Já faz mais de 12 anos que o Urso morreu. Mas nas lembranças da tutora, parece que o tempo não passou. Até hoje, quando tocamos no assunto, Maria do Socorro Pereira se emociona. A professora aposentada me recebeu em seu apartamento da Asa Sul, onde mora desde os primeiros anos da inauguração da capital. Foi lá que ela criou dois cachorros.
Shayna, uma mistura de pequinês com vira-lata, foi encontrada pela família abandonada na rua, no fundo de uma caixa de sapatos. Socorro conta que ela sempre foi muito brava, não deixava ninguém encostar, se não mordia. Mas isso nunca foi um problema. “Era só deixar ela quieta no canto dela”.
Os dias de Shayna ganharam uma nova cara quando Rodrigo, filho de Socorro, trouxe um filhote para casa. Ele resolveu dar o nome de “Urso”. Quando pergunto à aposentada o porquê, ela não sabe me responder, mas conforme conversamos, entendo a motivação. Apesar de ser um pitbull, raça conhecida por ser agressiva, ele era um ursinho carinhoso, muito dócil e amoroso.
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Dores
O Urso começou até a ter medo da Shayna, mesmo depois que cresceu. Deve ser por isso que eles conviveram bem por tanto tempo. Ela morreu de velhice, com 19 anos. “A gente sentiu, mas não sentiu tanto quanto a perda do Urso”. Ele desenvolveu uma doença aos 10.
Socorro relata que Urso começou a mancar, e quando levaram ao veterinário, descobriram que o cachorro ficaria paralítico e, com o avanço da condição, todo o seu corpo ficaria paralisado. Uma doença sem cura. O único tratamento seria para retardar a evolução da doença.
Com 11, já na cadeira de rodas, o pitbull começou a ficar tetraplégico. “É muito triste você ver um animal grande, que adorava caminhar, passear, que pulava na gente, deitado, se arrastando para se locomover, com dor”. A aposentada acrescenta que não teria como cuidar dele sozinha, já que era necessário carregá-lo para todos os lugares.
Quando o veterinário foi na casa dela, apresentou a eutanásia como alternativa. Rodrigo e Socorro concordaram que seria o melhor para ele, acabando com o sofrimento. E foi assim que eles optaram pelo sacrifício. O que foi um alívio para o cachorro se transformou em uma grande tristeza para os tutores. “Choramos muito, muito mesmo. Eu não queria que ele fizesse isso, mas era o que precisava ser feito”, emociona-se.
Confira um trecho da entrevista:
Um gesto amoroso
“Quando você opta pela eutanásia, você faz o que é melhor para o seu pet e isso não necessariamente é o melhor para você. É um gesto amoroso embora seja doloroso”, declara o psicanalista, doutor em psicologia clínica e cultura, André Teixeira. Nesse cenário, o tutor tem que lidar com o ônus da decisão. E nem sempre a decisão certa vai te fazer feliz.
Isso porque a nossa relação com os animais vem se transformando ao longo do tempo, e os nossos laços, ficando cada vez mais fortes. De acordo com o especialista, o ser humano e os animais domésticos estabelecem uma relação de colaboração, na qual modificam uns aos outros pela convivência direta.
“Hoje a gente já vive na lógica do pet. A gente estabelece um tipo de parceria, de relação afetiva que coloca inclusive em tela a discussão de uma organização familiar multiespécies, transformamos o pet em algo da família”, diz André Teixeira
Quando temos uma relação amorosa, que demanda investimento afetivo, carinho e cuidado constante, é gerado um vínculo. “O ato de cuidar é um ato amoroso que colabora subjetivamente para o campo de enriquecimento da saúde mental”, explica o psicanalista. Incluir o outro no seu leque de preocupações tem um potencial protetor da saúde mental.
É por isso que a perda dói tanto. Já que o seu “objeto amoroso” te modificou. Perdê-lo é como perder um pedaço de si.
Eutanásia
Professor de medicina veterinária, Bruno Alvarenga, da clínica-escola do Centro Universitário de Brasília (CEUB), explica que as normas para realização da eutanásia em animais no Brasil estão descritas na resolução nº 1000 do Conselho Federal de Medicina Veterinária. O procedimento considera, antes de tudo, o bem-estar animal.
Bruno aponta hipóteses em que a eutanásia é legalizada:
- Quando o animal está em uma condição que não é mais passível de cura e nem possível controlar a sua dor por meio de alguma medicação analgésica;
- Animais que possuem zoonoses;
- No caso de animais de produção, quando o custo para o tratamento seja incompatível àquela atividade produtiva;
- Animais que conferem ameaça à sociedade.
Assim como todo procedimento invasivo, com administração de medicação, a eutanásia só pode ser realizada por médicos veterinários ou estudantes sob supervisão. “O paciente vai ter uma indução ou sono de forma confortável que vai ser seguida de uma dose que vai levar uma parada da atividade cardíaca pulmonar”, informa Bruno Alvarenga sobre os aspectos técnicos. Esse procedimento pode ser efetuado em clínicas, consultórios ou na casa do paciente.
É impossível não sentir
Para o veterinário, essa situação também não é fácil. É impossível não sentir. Muitas vezes você é o profissional que tira o animalzinho do ventre da mãe e anos depois, infelizmente, tem que realizar a eutanásia. “O veterinário também se apega ao animal”, garante Bruno Alvarenga.
O professor contextualiza que a profissão com maior índice de suicídios é a de veterinário. Com crescente responsabilidade social atribuída à profissão, Indicadores do Sistema Único de Saúde e da Universidade Southampton School of Medicine apontam que a taxa de risco entre médicos veterinários é de 10,6 para 1 frente à população em geral.
O professor Bruno Alvarenga afirma que não há iniciativas legais para o acompanhamento psicológico dos médicos veterinários. Porém, o fortalecimento da saúde mental na profissão já é abordado em sala de aula. A única medida relacionada ao tema é o rodízio entre os veterinários que realizam o procedimento, prevista pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária.
O profissional não pode indicar a eutanásia, apenas apresentá-la como uma possibilidade quando não há impedimento técnico para essa opção. Antes, durante e depois do procedimento, o respeito pelo tutor e pelo animal são prioridade.
Nesse momento, ser médico veterinário transpassa os limites da profissão e o ser humano também se torna objeto de cuidado. Pela delicadeza da eutanásia e por terem consciência do forte vínculo entre tutor e pet, os veterinários, segundo o professor, buscam acolher a dor daquela pessoa e confortá-la.
Sempre ao seu lado
As crenças do jornalista Ricardo Torres foram um alento para minimizar o sofrimento da perda de Apolo no ano passado.
Assim como no filme “Sempre ao seu lado”, o personagem da vida real encontrou o Akita abandonado e decidiu adotá-lo. Ele e os outros pets de Ricardo se deram muito bem. Foram 11 anos de diversão em família, até Apolo ficar doente.
Era um câncer na boca que não tinha perspectiva de cura. “Quando soube que o tumor era maligno e que existia a possibilidade de ter metástase para outras partes do corpo, fiquei bem triste”, disse Ricardo. O jornalista, que sempre viveu rodeado de animais e que tem a prática de resgatar aqueles em condição de abandono nas ruas, já sabia que, a partir dali, a vida de Apolo seria curta.
Mesmo com os remédios, o tumor crescia. Para tratamento, a indicação cirúrgica era de retirar metade da mandíbula de Apolo e fazer quimioterapia. “Com essa perspectiva, ele não ia durar muito, seria muito difícil o cachorro ficar sem mandíbula, a qualidade de vida dele ia ficar muito ruim e depois ele ainda ia morrer.”
Foi com muita tristeza que Ricardo teve que optar pela eutanásia, pois se ele escolhesse fazer cirurgia e quimioterapia, só estaria prolongando o sofrimento dele. Apesar da dor, hoje ele vê que essa foi a melhor decisão para Apolo.
O nome dele também não era por acaso: Apolo, o deus da beleza. O Akita sempre foi muito vaidoso, o pelo branco brilhava na luz do sol após um belo banho. “Ficava todo metido”.
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Alegre e interagindo com os outros animais, nem parecia mais aquele cachorro que deixava várias mordidas em Ricardo logo após a adoção. Foi difícil ganhar a confiança do bichinho.
Com a doença, o jornalista percebeu que Apolo entristeceu. Não só percebeu, sentiu. “Como eu sou reikiano, eu aplicava Reiki nele e parecia que ele estava pedindo para eu acabar com aquele sofrimento dele”, recorda Ricardo.
Espiritualidade essa que também ajudou a lidar com o luto. Ele acredita que a alma é eterna, esse é o ciclo da vida e o cachorro nascerá novamente, em outro corpo.
“Por mais que tenha todo esse apego, a despedida e a morte fazem parte da vida, tanto de nós humanos, quanto dos outros animais. Eu já estava bem conformado com esse processo da eutanásia porque não foi algo do dia para a noite, marquei com duas semanas de antecedência”, relata o jornalista.
Luto que precisa ser reconhecido
Pesquisador em psicologia clínica e cultura, André Teixeira explica que, quando é necessário realizar a eutanásia, o tutor começa a viver o processo de luto mesmo antes da morte do seu pet. Assim, começa a despedida.
Após a morte, o psicólogo destaca um ponto importante do luto quando falamos de animais de estimação: o reconhecimento do sofrimento.
“Sem reconhecimento, você tem um processo de luto mais difícil porque você deve achar que você não deve sentir. Se você não tem essa acolhida pelo campo social, se você tem uma pressão de repressão externa disso, pode ter um luto não reconhecido por si mesmo, no sentido da negação”, explica.
“É só um cachorro! É só um gato!”
As frases acima são usadas muitas vezes para desmerecer o sofrimento após a perda de um pet. Para muitas pessoas não é só um animal, é um indivíduo, um membro da família. Ele diz que é importante não julgar a dor do outro.
Saúde animal
O médico veterinário Bruno Alvarenga alerta que eutanásia está relacionada a doenças.
“É sempre importante fazer o acompanhamento e prevenir para não ter o desenvolvimento de uma doença silenciosa ou então descobrir quando for tarde. É importante ter o cuidado com a saúde do pet, existem várias doenças que dá para prevenir e, quando tratadas no início, dá para curar muito mais pacientes.”
Por Maria Tereza Castro
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira