Era uma vez um casal apaixonado. Era uma vez duas amigas que faziam tudo juntas. Era uma vez mãe e filha confidentes. Era uma vez o emprego dos sonhos. Era uma vez ou “eram tantas vezes” os relacionamentos que temos que lidar diariamente, mas nem todos têm um final feliz. As histórias que vamos contar aqui são abusivas e não chegam nem perto de ser um conto de fadas. Era uma vez…
Louise* tinha 18 anos quando caiu nos encantos de um rapaz. Depois de alguns meses de relacionamento, porém, ele foi se tornando agressivo e “dominador” em suas palavras-GRITADAS e atitudes-rudes. “A situação chegou ao ponto de ele escolher a calcinha que eu iria usar e o batom que eu poderia colocar, pois determinadas cores de batom poderiam ‘chamar a atenção’ de outros homens”, relata. Segundo a jovem, ele sempre a convencia a ter relações sexuais sem preservativo. Medos vários eram calados. Medos de doenças, medos de engravidar. Noites sem dormir para “agradar”. Mesmo sabendo dos temores de Louise, ele desconversava para ter desejos imediatos atendidos. “Por causa disso, ele me convenceu a usar pílula anticoncepcional e do dia seguinte, o que me trouxe muitos efeitos colaterais a curto e longo prazo”. Se fosse só isso…
A partir daí, Louise desenvolveu um quadro de cálculo renal, consequência de uma infecção urinária que evoluiu para uma inflamação na bexiga e precisou ser internada. “Eu ligava feito uma louca, mandava mensagens, mandava e-mails para o meu ‘amado’ namorado, buscando afeto e atenção, como tantas vezes fiz por ele, e ele, mesmo sabendo de como eu estava, não aparecia nem dava notícias”. Louise relembra quando, após uma semana, ele apareceu. Jogou a culpa do sumiço na moça. Era, então, dela a culpa de adoecer. Não teve dúvidas: desculpou-se por tudo… por tudo… por tudo… o que não tinha feito. “Só aí fui perceber que o rapaz havia criado um personagem e, como bom ator que era, conseguiu atuar por um bom tempo me manipulando e me fazendo acreditar que eu era a vilã da história. Já nos primeiros meses do relacionamento ele foi mostrando a cara, mas eu já estava tão envolvida emocionalmente que não tinha coragem de reagir”.
É comum achar que os relacionamentos abusivos se configuram pela agressão física, mas eles estão inseridos em um contexto muito maior que esse. “O relacionamento abusivo é caracterizado pela necessidade de uma pessoa dominar a outra em alguma instância ou em vários aspectos. É a manipulação do outro”, afirma a psicóloga Márcia Teixeira. Segundo ela, além dos abusos mais conhecidos em âmbito sexual, agressões verbais e domínio de comportamento do outro também entram para essa lista.
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Apesar dos maus-tratos entre casais serem o tipo de violência mais generalizado, a psicóloga afirma que esses abusos podem ocorrer em todo o tipo de relações existentes. “Temos os casos de abuso infantil, temos os casos de abuso entre amigos, relações de abusos nas relações conjugais, sejam elas relações homossexuais ou heterossexuais”, afirma.
Abuso de primeiro grau
O abuso também pode existir na união sanguínea. Foi o que aconteceu com Eloá* aos 10 anos. A própria prima colocava a jovem contra as amigas. “Ela fazia coisas erradas e colocava a culpa em mim. Eu era a ‘burra’, ‘desajeitada’, ‘lerda’ que não sabia fazer nada e todas as minhas coisas eram ruins. Ela tinha que se sentir melhor que eu em tudo”, conta a jovem.
A alienação parental, onde o pai ou a mãe da criança a incentiva a romper os laços afetivos com um ou outro, também deixa traumas. Isso cria no filho ou na filha um sentimento de ansiedade e temor em relação ao outro genitor e também é considerado um tipo de abuso. Em enquete aplicada pelo Esquina nas redes sociais, recebemos 13 relatos de filhas ou filhos que se sentiram alienados pelos pais. Esse número corresponde a 22,8% do total de histórias recebidas (73). É preciso falar sobre isso.
Situações como essas podem trazer traumas para as vítimas. “Dependendo do tipo de abuso, o medo é um sintoma que vem desse trauma. Além disso, a vítima passa a ter dificuldades em um modo geral: de fazer escolhas, de seguir adiante de forma autônoma”, afirma a psicóloga Márcia Teixeira. “Não estou generalizando dizendo que todos os abusados vão ser abusadores, mas essa é umas das consequências também”, conclui.
“Tive várias crises de ansiedade e ataques de pânico, além de começar a tomar calmantes pra conseguir dormir. Tudo o que aconteceu me deixou traumatizada e não consegui me abrir pra outro relacionamento depois disso. Acho que essa história me roubou muito do meu amor próprio e ainda vai demorar um tempo pra eu ficar 100%”, relata Lucilene*, de 21 anos, vítima de abuso em relacionamento amoroso.
Com contrato assinado
Keila* sofreu por três anos seguintes. Dos 19 aos 21 ela teve chefes que confundiram a relação de trabalho com a pessoal. “Após várias investidas e convites sem êxito, um deles foi até a minha faculdade com o pretexto de me ver, sem dar margem para que eu dissesse não. Eu fiquei numa situação de absoluto constrangimento”, diz a jovem. “Lembro-me que tiveram contatos físicos pretensiosos, como um abraço mais forte, massagem durante o trabalho, essas coisas. Recordo, inclusive, de ter sido colocada em situações desconfortantes de ciúmes”, relembra.
Keila também é marcada por outro assédio. Ela relata que o episódio aconteceu quando outro chefe insistiu em lhe dar uma carona até o metrô. “No caminho, me disse que ‘se eu quisesse, ele faria coisas comigo que eu até duvido’. Apenas ignorei, pasma. Não consegui falar nada”. A jovem conta que ainda tem dificuldades em superar esses abusos. “Até hoje encontro certa dificuldade, apesar de estar consciente de que é absurdo e injustificável esse tipo de situação no ambiente de trabalho”.
Em janeiro deste ano, uma funcionária de 33 anos de um famoso café de Belo Horizonte denunciou o ex-chefe de cozinha do estabelecimento por tentativa de estupro. Bárbara Quadros, colega de trabalho da vítima, relatou em sua página do Facebook os acontecimentos e como está o estado emocional da amiga. Enquanto era funcionária, a moça foi chamada pelo chefe de cozinha para entrar em seu carro. Segundo ela, o homem puxou seu avental e a forçou a colocar as mãos nas partes íntimas dele, além de ordenar que fizesse sexo oral. Após relatar o abuso para o dono do estabelecimento, os colegas de serviço passaram a tratar o assunto como brincadeira e o medo de represálias por parte do abusador virou constante.
“O trauma ficou”
Entre amigos, situações de abuso também são comuns. Ameaças, ciúmes excessivo e controle: essa era a vida de Emily*. Aos 15 anos, ela sofria por mãos-amigas. “Eu a considerava minha ‘melhor amiga’, mas ela impunha as vontades dela sobre mim, ditava o que eu deveria vestir, me diminuía e sentia ciúmes excessivo”, declara. De acordo com os números do questionário, dentre as 57 pessoas que especificaram qual tipo de abuso já sofreram, 20 são os que se sentiram abusados em relações de amizade, contabilizando 35,1% dos casos.
Os meninos também sofrem. Daniel* foi vítima de outro rapaz. Ele conta que passou por momentos constrangedores de perseguição por um amigo da turma. “Ele dizia que estava apaixonado por mim e começou a me perseguir, dizendo que um dia iria me agarrar e que eu tinha que dar uma chance para ele”, revela. “Isso me incomodava demais. Até que um dia ele parou, mas o trauma ficou”, diz Daniel.
As meninas também abusam. Manipulação e terror psicológico marcaram a amizade de Guilherme* com uma “amiga” da escola. “Quando estávamos juntos, ela era a melhor de todas, me ajudava com o que eu precisasse e me respeitava. Quando nós estávamos com outros amigos, ela fazia piadas sobre mim para se sentir superior e muitas vezes me expunha na frente deles, me deixava constrangido e tentava me diminuir”, conta Guilherme. “Eu não sabia o que fazer, pois ela era tão boa pra mim quando ficávamos a sós. Eu estava confuso”, desabafa.
(Des)amor
Palavras agressivas e dolorosas; uso de traumas de infância como arma. Essas são as marcas de um relacionamento amoroso do jovem João Victor*, de 17 anos. “Cheguei a precisar me demitir e comprometer algumas amizades por causa das constantes ameaças de suicídio e abandono. Foi um abuso bastante emocional e psicológico”, conta. Panmela*, de 19 anos, também sofreu nos braços do agora ex-namorado. “Ele não me deixava sair, não gostava das minhas amigas, não queria que eu ficasse até mais tarde na faculdade, vigiava minha localização o dia inteiro e lia todas as minhas conversas no Whatsapp”, relata.
Joana*, aos 14 anos, acabou presa em um relacionamento que durou quase quatro anos. “Eu era apaixonada pelo meu namorado, mas com o passar do tempo, ele começou a me tratar com agressividade, criticava minha aparência e me fez pensar que, além dele, ninguém mais iria me querer. Eu estava presa, não podia sair com ninguém, nem com minha mãe. Por fim ele terminou comigo, e ainda descobri que ele namorava outra havia um ano, simultaneamente ao nosso namoro. Demorei dois anos para me envolver novamente com alguém, mas hoje consigo enxergar um relacionamento abusivo, ainda não consigo ouvir o nome dele, não me faz bem”.
A pesquisa realizada pelo Esquina também constatou que 71,9% dos casos de relacionamento abusivo envolvem relação entre casais, sejam heterosexuais ou homoafetivos. A faixa etária das vítimas na época dos abusos varia entre os 17 e 18 anos, com 9,4% dos casos. Em seguida, os adolescente de 15 anos e o jovens de 21 estão empatados com 6,3% dos casos.
Feitiço vs. Feiticeiro
A psicóloga Márcia Teixeira explica que quando alguém sente a necessidade de exercer controle sobre alguma área da vida do outro que não lhe pertence, já é um indício de que uma situação de abuso está em processo. “Exercer controle sobre o outro, seja o controle de trazer para si, de ter a pessoa sempre sob seu olhar, ou sob a sua gestão, ou, quando você percebe que está tirando a capacidade do outro de ser ele mesmo são alguns dos sinais que caracterizam um abusador”.
A psicóloga não percebe um perfil ou maneira de se comportar característico entre os agressores. “Não é padrão. Até porque tem uns que se mostram agressivos e dominadores, enquanto outros estão dominando, mas não demonstram. É uma forma meio passiva de ser agressor. Não tem como você olhar e perceber. É mais na relação que isso vai ser visto”, explica.
A vítima pode ser identificada por situações mais comuns. “São comportamentos de insegurança, muitas vezes até de incapacidade de digerir a própria vida, medo, às vezes também isolamento, afastamento”, destaca. “O próprio abusador acaba levando a vítima para essa direção, buscando isolá-la da sociedade, ou do núcleo familiar até para que o abuso não seja percebido”, ressalta.
A vítima pode também se tornar um agressor. “Não vou generalizar, mas é bastante recorrente”, analisa Márcia. Segundo ela, isso acontece porque a vítima pode estar repetindo um comportamento que aprendeu. “Mas claro que há alguma situação que também está levando ele a ter esse tipo de comportamento, que não é um saudável”. Ela explica que a lógica é simples: “se não é um comportamento saudável é um sintoma; se é um sintoma, há uma causa para isso, que pode ser tratada”.
No questionário, oito entrevistados afirmaram que já cometeram algum tipo de abuso, enquanto 50 marcaram que nunca praticaram atos abusivos. Os outros 15 ficaram na dúvida sobre o assunto, o que evidencia a necessidade de um trabalho de conscientização sobre o tema. Relatos de abusadores que hoje são conscientes de suas práticas abusivas também chegaram até a reportagem da Revista Esquina.
O número de mulheres vítimas de relacionamentos abusivos é muito maior que o de homens. Segundo o estudo sobre violência doméstica realizado pela OMS, em 2015, a violência psicológica é a mais praticada contra elas, além de ser exercida na maioria das vezes pelo próprio cônjuge. Mas a violência física também faz parte do cotidiano de muitas Marias por aí. Uma Maria é vítima de violência a cada quatro minutos no Brasil. Segundo a pesquisa “Percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher”, do Instituto Avon e o Data Popular lançada em 2013, 41% da população diz conhecer um homem que já foi violento com a parceira, porém apenas 16% dos homens assumem ter sido violentos.
Dos homens, 53% já xingaram a parceira; 19% já as empurraram; 9% já as ameaçaram com palavras; 8% já lhes deram um tapa; 7% já impediram as parceiras de sair de casa; 6% já arremessaram algum objeto durante uma briga; 5% já humilharam a companheira em público; 4% já deram um soco nelas; 2% já as obrigaram a fazer sexo contra a vontade; e 1% já as ameaçou com uma arma.
Os estigmas sociais nos levam a crer que o homem é o ser forte, agressivo, e a mulher é o sujeito fraco e sensível da relação. Isso acaba reproduzido dentro do relacionamento, e contribui para torná-lo abusivo.
De acordo com a psicóloga Márcia Teixeira, uma das razões para o aumento do número de atendimentos são as mídias e redes sociais. “Eu acredito que agora as pessoas estão vendo mais possibilidades de buscar ajuda e se sentem mais encorajadas a denunciar”, afirma. Segundo ela, as discussões sobre relacionamentos abusivos na internet podem abrir os olhos de quem está em uma situação de abuso. “As redes sociais podem levar a pessoa a perceber o que ela antes não percebia. Que ela está sendo abusada e não se dava conta. Então ela conhece um outro caso, se reconhece ali e entende que tem a oportunidade de procurar ajuda”, completa.
… “E viveram felizes para sempre” parece agora uma realidade ainda mais distante. Nem todo final é feliz. Nem todo final é fim. Relacionamentos abusivos deixam marcas e cicatrizes que o tempo não é capaz de apagar. Louise, Eloá, Keila, Lucilene, Emily, Daniel, Guilherme, João Victor e Joana são nomes alterados para preservar as vítimas. Os nomes verdadeiros foram substituídos por nomes de pessoas vítimas de violência que tiveram histórias contadas na mídia. As vítimas, por vezes, não têm voz para pedir providências. Choros calados, portas fechadas, desmerecimentos, laços cortados. Era uma vez…
Por Ana Luísa Amaral e Renata Werneck
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Carolina Assunção