Sônia, uma mulher de 37 anos, viveu uma vida marcada por desafios. Com dois filhos, sendo um deles autista, ela enfrenta uma longa batalha contra o vício. Após um período de oito anos sem usar drogas, Sônia sofreu uma recaída após seu divórcio e a doença de sua mãe, retornando ao uso de substâncias em um momento de fragilidade.
“Meu primeiro contato com as drogas foi quando eu tinha 18 ou 19 anos, começou só como brincadeira de jovem…Aí foi indo, foi indo, até que eu comecei a pegar pesado. E aí eu conheci meu ex-marido, ele sabia do problema e a gente entrou num acordo, porque queríamos casar e engravidar, então eu ia ter que parar, e parei por oito anos”
Quando ela recaiu, percebeu que dessa vez ia precisar de mais ajuda e foi finalmente atendida quando seu irmão mais velho decidiu interná-la em uma clínica para reabilitação, assumindo os cuidados de um dos filhos enquanto o outro morava com o pai.
Internação
A clínica, localizada em uma chácara afastada, parecia ser o refúgio de que Sônia precisava. Nos primeiros dias, a promessa de um ambiente acolhedor e seguro a tranquilizou. “Os primeiros dias para mim foram maravilhosos, eu estava disposta a me tratar”, ela lembra.
No entanto, rapidamente as coisas começaram a mudar. O ambiente acolhedor revelou-se uma fachada e os primeiros sinais de negligência surgiram: um “terapeuta” que tinha apenas um certificado online, que também era interno, ainda não havia terminado seu próprio tratamento e era usuário de drogas. Segundo Sônia, “ele fugia para usar drogas e voltava dizendo que era folga”.
Logo ficou claro que a clínica era mais um cárcere do que um centro terapêutico, segundo ela.
Ao conviver com outros internos e a equipe clínica, Sônia descobriu que as práticas abusivas faziam parte do cotidiano do lugar, como quando a dona da clínica, em um surto de ciúmes, jogou uma garrafa de água em cima dela, acusando-a de “dar em cima” do marido dela. Para muitos internos, os abusos eram ainda piores.
As regras da clínica eram rígidas e punitivas, mas não envolviam nenhum tipo de terapia eficiente ou cuidados especializados. Os internos eram forçados a realizar todo o trabalho manual da chácara, de limpar o local até cuidar dos animais, “Nossa terapia era limpar a piscina,dar banho na cabra, cuidar da cozinha”, conta Sônia.
O ambiente era tão insalubre, que ela, mesmo fora do uso de drogas, perdeu peso, pois não conseguia comer devido à falta de higiene. “Como é que você vai para uma clínica no qual você não está usando droga e chega ainda mais magra?”.
Sônia testemunhou cenas de violência constante. Tentativas de fuga eram punidas com agressões severas.
“Uma das internas fugiu seis vezes e apanhou sempre que traziam ela de volta”, relata. Em uma ocasião, uma das internas, após ser capturada depois de tentar fugir, foi jogada na piscina e amarrada com uma corda do lado de fora da casa durante toda a noite. A ordem dos donos era “descer a porrada” caso alguém desse trabalho. A violência física era acompanhada de ameaças e manipulações psicológicas, com os responsáveis da clínica dizendo às famílias que as internas fugiam para usar drogas ou beber.
Os donos da clínica controlavam todos os aspectos da vida dos internos, monitorando as visitas e as ligações telefônicas. Sônia se recorda das ameaças de agressão caso alguém contasse para as famílias sobre o que acontecia. As ligações eram vigiadas de perto e as visitas, raras, eram permitidas somente sob a vigilância de um monitor. “Se você contasse alguma coisa, você apanhava”, relata.
O isolamento imposto a Sônia foi tão intenso que sua própria família começou a acreditar nas mentiras ditas pela administração da clínica.
Seu irmão, responsável pelo pagamento e pela liberação das visitas, foi convencido de que Sônia estava instável e inventando coisas devido à abstinência.
Ele bloqueou suas visitas e, após sua fuga, cortou o contato. “Eles manipularam minha família. Meu irmão acha que eu sou uma drogada que roubou um carro”, desabafa.
A reportagem buscou contato com a defesa da clínica, mas não obteve retorno até a publicação.
Liberdade
A fuga de Sônia foi uma oportunidade quase milagrosa. Depois de três meses internada, em março deste ano, ela e outras duas internas recebem um carro para buscar uma nova paciente à força, um “resgate” ordenado pela clínica.
No meio do caminho, a mãe da paciente ligou informando que havia desistido. Ao retornarem, deixaram a dona da clínica em casa e, entre conversas e angústia, decidiram não voltar mais. “A gente pensou, ‘vamos voltar por quê? Só sofremos lá”, conta.
Sem um plano concreto, as três mulheres foram para um hotel para conversar e decidir o que fazer, uma delas decidiu se separar para ir procurar drogas.
Então as outras duas passaram o fim de semana mudando de hotel em hotel, tremendo serem capturadas. Elas se escondiam, desconfiavam de qualquer movimento e lutavam para manter a calma enquanto buscavam apoio.
No fim, as mulheres encontraram ajuda com um policial conhecido, que as levou até a delegacia, onde os donos já haviam feito uma denuncia sobre o roubo de um outro carro que nunca esteve com elas.
Na delegacia elas entregaram a chave do carro e denunciaram a clínica. Mesmo após a denúncia, Sônia se viu ameaçada novamente, pois os donos chegaram à delegacia para confrontá-la.
“Eles começaram a gritar e ameaçar a gente na frente dos policiais”, lembra.
Vida após a fuga
Desde que deixou a clínica, Sônia luta para reconstruir sua vida. Impedida de ver os próprios filhos e ainda em busca de estabilidade emocional, ela tenta superar os traumas enquanto faz tratamento. A batalha para retomar o contato com os filhos e recuperar a confiança da família continua. “Eu só quero o direito de ver os meus filhos”, diz emocionada.
Sônia ainda carrega as lembranças dolorosas dos abusos, das agressões e do medo constante que viveu na clínica. Sua história, além de ser uma denúncia de um sistema falho e perigoso, é um grito de alerta para todos que buscam apoio em locais de recuperação. Hoje, ela vê a fuga como um renascimento. “Ou eu estaria morta hoje, ou teria matado alguém ali dentro, eu não aguentava mais nada”, finaliza.
O que diz a advogada
A representação de Sônia alega que os donos da clínica já respondem a ação cível de indenização pelos danos causados.
A advogada acrescenta que, por terem cometido vários crimes, o titular da ação penal é o Ministério Público. “Nossa cliente, assim como os demais ex-internos, é uma vítima”, diz.
A advogada diz ainda que não sabe ao certo se o caso pode se tornar um precedente.
“Estamos aguardando a audiência no processo indenizatório cível. Uma eventual ação criminal fica a critério do Ministério Público”, conta.
Ela chama atenção também para o cuidado que as famílias precisam tomar antes de internar alguém. “É preciso se certificar de que a clínica é regularmente autorizada e devidamente licenciada para prestar tratamentos terapêuticos. Além de saber quem são os médicos e psicólogos responsáveis, e se as instalações são adequadas”, explica.
Por Maria Luiza Castro e Maria Paula Meira
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira