Uma história de violência e de diferentes violações aos direitos humanos enterrada sob os escombros do silêncio aconteceu a 43 quilômetros de Brasília.

A interdição da Clínica Planalto, em Planaltina (DF), que atendia pacientes com prováveis transtornos mentais, completa, em março de 2018, 15 anos. Mesmo com uma série de denúncias de violações e crimes, até hoje ninguém foi punido. Pessoas que sofreram violências, familiares delas e também quem investigou e acusou a violência e a situação degradante do lugar convivem com os vestígios da dor. A clínica, que era particular, funcionou durante 33 anos, inclusive com aporte de recursos públicos. Sobre o assunto, a Secretaria de Saúde local não respondeu questionamentos da equipe de reportagem.
Quem passou pela Clínica Planalto não conseguiu esquecer de nada. “Quando eu pedia água, um guarda me agredia com cassetete em minhas costelas. Faltava pouco para quebrar. Quando eu pedia comida, a mesma coisa. Foi quando eu me vi em uma situação em que não dava mais conta porque, por mais que você esteja transtornado, a fome, a sede: você sente. Foi aí, então, que me vi necessitado de me alimentar das minhas próprias fezes e da minha urina. Foi quando eu, por várias vezes…”. Ao recordar da dor, repousa o cotovelo no joelho. Os dedos de José Alves acariciam o próprio rosto. Silêncio. Os olhos inquietos são de quem procura palavras. Quando, por fim, se fixam em um ponto, se fecham por um segundo em milésimos de vida. Abrem-se, vagarosamente. Uma lembrança do inferno que completa mais de 20 anos, mas segue latente, viva, à sombra da dor do trauma que não passa.
O homem, paciente da extinta Clínica Planalto, na cidade de Planaltina (DF), tem hoje os cabelos grisalhos. Sentado sobre o degrau da escada de cimento, ajeita a postura, levanta a cabeça. Tenta se recompor. “Quando eu falo disso, eu fico… pesa muito”. O cotovelo, agora do braço direito, repete o primeiro movimento. A mão leva os dedos à testa. “Essa parte é que me engasga, toda vez que eu vou falar sobre (o assunto). Eu não consigo acreditar…”. Com as vistas marejadas e respiração mais profunda do que as lágrimas iminentes, retoma: “Eu não consigo acreditar que um ser humano possa fazer isso com outro. Você morrer de fome dentro de um ambiente e, quando você pede água, pede comida, apanhar bastante para não pedir mais”.
A interdição
Quinta-feira, dia 20 de março de 2003. Às 9h da manhã, em uma área rural próxima a Planaltina (DF), carros que transportam uma equipe técnica do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) passam por uma estrada de terra. Percorrem pelo menos cinco quilômetros. Desembocam em frente a um prédio grande, de cor rosa-salmão, isolado em meio ao verde da mata que o circundava.
Não dava mais para deixar a poeira baixar. Depois de apresentado ao Ministério Público o relatório das irregularidades constatadas, o nomeado “Grupo de Trabalho” foi encarregado de tomar as devidas providências no local. Esse grupo foi constituído por seis promotorias das áreas criminais e sociais, acompanhado de profissionais da saúde, psicólogos, assistentes sociais, peritos, policiais; além de outras instituições, como o Núcleo de Inspeção de Planaltina da Diretoria de Vigilância Sanitária do DF e uma equipe da Secretaria de Estado de Saúde do DF (SES/DF).

Os condutores estacionam os veículos. Os passageiros desembarcam. Eles são recebidos pela (então) diretora médica e psiquiatra daquela instituição, Yeda Rabello. A equipe, então, se divide: uma parte fiscaliza o setor administrativo; outra, avalia as condições das instalações físicas; psicólogos entrevistam os funcionários. “Minha missão, como conhecia bem a clínica, era dizer onde ficava localizada cada ala, o refeitório, a área de lazer. Como se fosse um guia”, relembra Elisa Midori, 54 anos.
Elisa, na época, fazia parte da equipe técnica da Promotoria de Justiça e Defesa da Saúde (PROSUS), órgão do MPDFT responsável por acompanhar e fiscalizar o atendimento oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ela ocupou o cargo entre os anos 2000 e 2007 e era responsável por fazer relatórios acerca das vistorias que realizava nas instituições de saúde do Distrito Federal.

A Clínica de Repouso do Planalto, mais conhecida como Clínica Planalto, estava sob a mira das autoridades e causava incômodo em movimentos sociais engajados na luta antimanicomial havia pelo menos oito anos antes de ser fechada em 2003. Quando a clínica foi interditada pela Diretoria da Vigilância Sanitária, por falta do Alvará de Funcionamento e da Licença Sanitária, havia um total de 127 pacientes custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com alguns dos relatórios elaborados na ocasião por Elisa Midori, a PROSUS instaurou Procedimento de Investigação Preliminar para apurar o desaparecimento de um paciente em março de 1995 – o caso só foi comunicado à polícia cinco meses depois.
Além disso, pesava contra a clínica uma série de denúncias, resultados de fiscalizações que apontavam deficiências estruturais, técnicas e profissionais no atendimento – já no ano de 1998. Houve outras acusações, à época, de pelo menos 61 pacientes desaparecidos, somente entre os anos de 1991 e 1996. Ações ajuizadas por familiares de pacientes resultaram em indenizações por dano moral, incluindo pacientes mortos, como no caso de uma paciente que faleceu em fevereiro de 2003, em decorrência de insuficiência cardíaca. O exame toxicológico feito na paciente apresentou resultado positivo para consumo de cocaína durante período de internação na clínica.
“É difícil impedir a fuga de pacientes, sendo que muitos abandonam o tratamento e aproveitam algum descuido dos funcionários e fogem dali, geralmente pulando o muro, que não é muito alto”. Foi como o diretor presidente da antiga clínica, Regis Benes Soares de Andrade, à época, se defendeu frente às autoridades. A médica Yeda Rabello atribuiu as denúncias das famílias e os desaparecimentos dos pacientes a uma “transferência de responsabilidade” para as instituições de saúde mental. “De um modo geral, são os pacientes rechaçados, desamados, são os que fogem das clínicas. A fuga significa a não aceitação, recusa ao tratamento, rebeldia contra a imposição. A internação desses pacientes nunca é voluntária, e sim, imposta pela família”, defendeu a médica, no ano de 1998, em carta ao promotor de justiça de Planaltina.
Uma espécie de muro dividia a clínica. De um lado, ficavam pacientes em tratamento particular. Do outro, aqueles custeados pelo SUS. A clínica era separada em quatro alas, sendo três ocupadas por internos financiados pelo Estado: uma delas era destinada aos homens; a segunda, para o alojamento das mulheres. Na terceira, ficavam homens e mulheres com quadro de saúde mental mais estável em relação às duas primeiras alas.
O Grupo de Trabalho do Ministério Público registrou falta de acompanhamento psicológico nos prontuários, pacientes em um setor isolado por portões trancados com cadeados, “péssima alimentação” e “higiene precária”. Faltavam, por exemplo, shampoo, roupas, pasta e escova de dente, ao ponto das vítimas compartilharem os objetos de uso pessoal. Além disso, foram registrados maus-tratos, falta de água potável e de medicamentos, e número insuficiente de funcionários. Em relação à infraestrutura, não existiam extintores de incêndio o bastante, além de problemas com instalações elétricas e hidráulicas suficientes para provocar curtos-circuitos e inundações nas áreas usadas pelas vítimas.
Do outro lado, segundo as denúncias do Ministério Público, os pacientes da ala particular dispunham de luxos como piscina, sauna, academia de ginástica, banheiro próprio, campo de futebol, tratamento médico adequado e refeitório separado. A maioria, porém, permanecia boa parte do tempo tomando sol no pátio, deitada no cimento. Alguns dos internos da clínica recebiam o benefício de prestação continuada (recurso garantido pelo governo aos aposentados e às pessoas com alguma deficiência). Os cartões eram administrados pela própria clínica. Não há esclarecimentos sobre como eram gastos esses valores.

Últimos dias
No dia do fechamento da clínica, o trânsito intenso de pessoas pelos corredores da unidade, somado às pancadas de chuva que reverberavam nos telhados da construção, causava estranhamento e conturbava os internos. “O ambiente estava bastante tumultuado. Eles (internos) não estavam acostumados. Ouvi relatos de uma mulher que tentou escalar as paredes”, diz Elisa Midori.

A visita do dia 20 de março de 2003 seria a última. A instituição não possuía, também, alvará de funcionamento. Não havia registro da clínica no Conselho Regional de Psicologia (CRP) e, segundo os relatórios do PROSUS, apenas duas psicólogas trabalhavam em regime de 20 horas semanais. A unidade de saúde ocupava, irregularmente, um imóvel de propriedade da Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto de Brasília (Caesb), pois não pagava aluguel, conta de água e ainda sonegava impostos públicos e federais – imposto de renda – e INSS.
Impunidade
Regis Benes Soares de Andrade, diretor presidente da Clínica Planalto, e o irmão, Carlos Benes Soares de Andrade, diretor tesoureiro, foram processados criminalmente pelo MPDFT e foram condenados, em primeira instância, a seis anos de reclusão em regime semiaberto, “tendo em vista o concurso formal de crimes entre os maus-tratos e os maus-tratos com resultado morte”, diz o documento.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), no entanto, absolveu os réus sob o argumento de que os crimes pelos quais foram acusados requerem “evidência da vontade consciente do agente de causar o resultado nas vítimas” – o que não foi provado, de acordo com o Tribunal, que levou em conta a falta de condições financeiras que a Clínica tinha de oferecer melhores condições aos pacientes.
O advogado Vitor Paulo Vieira afirmou que, apesar da comoção que causa e da indignação que sente em relação à violação dos direitos humanos, a decisão, do ponto de vista técnico, foi correta. “Os crimes praticados (pelos diretores da Clínica Planalto) não comportam a modalidade culposa, somente a dolosa”. Depois da decisão do Tribunal, o Ministério Público não entrou com novo recurso, por não conseguir provar que os dirigentes da clínica agiram com dolo. Ninguém foi punido.
Para onde foram os ex-pacientes da Clínica Planalto
“Eles resistiam a viver com roupas. Se recusavam a escovar os dentes, a tomar banho. Alguns deles não tinham hábitos de se alimentar com talheres… pegavam a ‘comidinha’ com a mão”, diz com a voz carregada de compaixão. Muitos tinham nome nenhum. Quem dirá um sobrenome. Para alguns deles, meses depois, foi devolvida a identidade, a dignidade, a existência. Daniela Martins Machado, 46, acompanhou a transição dos internos da clínica para o Instituto de Saúde Mental (ISM), onde era enfermeira.

Daniela conta que se encantou com as disciplinas específicas da área de saúde mental e enfermagem psiquiátrica já nos tempos de graduação. “Antes de escolher a enfermagem, eu já havia escolhido trabalhar com saúde mental. Eu sempre pensei: ‘quero cuidar das pessoas que têm sofrimento mental’”, relembrou. Ela começou a trabalhar na instituição no ano de 1995.
A enfermeira conta que, nos anos 2000 – antes do fechamento da Clínica Planalto -, o ISM era um Hospital-Dia. De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Hospital-Dia “é o regime de assistências entre a internação e o atendimento ambulatorial”; isto é, se trata de uma casa de saúde indicada para pacientes que necessitam de atendimento por um período de, no máximo, 12 horas.
“Depois passou a ter outra designação, que era Centro de Atenção Psicossocial, e também tinha o trabalho ambulatorial. E aí a lógica do trabalho no Instituto (de Saúde Mental) era bem diferente. A gente tinha equipes multiprofissionais que faziam os atendimentos dos usuários. Eles (pacientes), então, iam pela manhã e voltavam para casa no final do dia. Ao longo desse período, eles tinham inúmeras oficinas e atividades terapêuticas que eram desenvolvidas”, acrescenta.
No mês de março de 2003, a enfermeira foi convidada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa para fazer parte do processo que culminaria com a interdição da Clínica Planalto – uma vez que se identificasse, fatalmente, os maus-tratos e as condições precárias de assistência. “E foi isso que aconteceu”, confirma. Nos dias um e dois de abril de 2003, os internos da Clínica Planalto foram resgatados de um pesadelo real. No dia seguinte, não havia mais ninguém alojado no prédio.
Segundo o relatório de intervenção do MPDFT na Clínica Planalto, dos pacientes ali custeados pelo SUS, 60 foram distribuídos entre outras três instituições de saúde de Brasília: Hospital São Vicente de Paulo (25 pacientes), Instituto de Saúde Mental (25 pacientes) e Hospital de Base (10 pacientes). Os demais – ainda em conformidade com o que foi relatado no documento – receberam alta médica e ficaram sob os cuidados da família.
A profissional lembra o estado de deterioração em que os ex-internos daquela instituição chegaram ao ISM. Para a ex-enfermeira do Instituto de Saúde Mental, o modelo manicomial acentua o sofrimento psíquico de qualquer pessoa. “Em uma instituição totalitária como essa (Clínica Planalto), a única coisa que ele (paciente) tem é o sol se pondo todo dia e a noite chegando. Essa repetição vai roubando a identidade dele. Essa ‘indiferenciação’ que vai se dando, das pessoas se vendo no pátio, em que momento ele vai se identificar? Em que momento ele vai dar sentido e significado para os seus dias numa rotina tão “esvaziadora” como é a de um manicômio? Então, nesse sentido, todos eles estavam muito graves, “cronificados”, embotados afetivamente”, analisou.
“Ficavam perambulando”
A enfermeira relata que todos os pacientes eram ociosos porque não havia um “projeto terapêutico” de atividades. “A maior parte dos pacientes (quando ainda estavam na Clínica Planalto) ficava perambulando nos quartos ou no pátio, porque em algum momento também os quartos eram fechados para que se preservasse a limpeza ali e não se bagunçasse, então eles não tinham muita opção. E muitos, justamente por estarem tão desorganizados, acabavam tirando as roupas, perambulavam nus. Não havia um cuidado com essa questão da integridade do paciente, da privacidade mesmo”. Daniela Martins lamenta que o número de profissionais da equipe de enfermagem daquela clínica era “muito restrito”, o que fazia com que o tratamento ficasse por conta da administração dos medicamentos e da contenção em casos de surto.
“Então, de fato, era muito triste. Seres humanos eram tratados como animais”.
A enfermeira recorda que havia um rapaz, remanescente da Clínica Planalto, que tinha em sua ficha o nome de Fernando. Ele negava ser chamado por esse nome, e isto também estava no prontuário. Para Daniela, assim como tantos outros, “Fernando” estava sem identidade. Quando o ISM chamou a polícia para identificar os internos que estavam em situação parecida e, finalmente, descobriram o verdadeiro nome dele, a reação foi instantânea: “Então você me conhece? ”. Ele agora lembrava o próprio nome, reconquistava sua identidade. “Foi uma das coisas mais marcantes que nós presenciamos durante o processo”, comenta com um nó na garganta e um sorriso no rosto.
O recomeço
Daniela lembra de outra paciente. Os hábitos incomuns eram o retrato da perda da dignidade violada pelo período de cárcere nos corredores da loucura. “Uma vez, nós presenciamos ela escarrando no chão e, antes que a gente pudesse impedi-la, ela lambeu o próprio escarro”. A comoção ao relatar aquele tempo é denunciada pelo embargo na voz. A inserção dos pacientes no meio social era o objetivo principal do tratamento. Com o passar do tempo, os usuários começaram a sair, sempre acompanhados de uma equipe. Iam ao cinema, teatro, passeavam no shopping. A cada passeio, uma redescoberta.
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A enfermeira, ao ser questionada sobre a reação dos pacientes, não pestaneja: “Extraordinária! Eles iam muito orgulhosos, muito faceiros, as meninas muito arrumadas, de bolsa, com seus documentos. Eles ficavam com algum dinheiro, e nós comprávamos o lanchinho. Eles iam ao caixa e compravam o seu lanche, isso era muito significativo também”, sorri.
O Instituto de Saúde Mental foi sugerido como um local provisório no acolhimento dos pacientes remanescentes da Clínica Planalto. Quem afirma é a assistente social aposentada Maria da Anunciação Soares, 68, que fez parte do grupo selecionado pelo secretário de Saúde para retirar os pacientes da clínica. “Disseram que ia ser provisório, apenas por três meses; que iam “agilizar” uma Residência Terapêutica (RT) e até hoje não tem RT”, diz rindo para não chorar. “As camas vieram do hospital de Samambaia. No mesmo dia, levaram as camas paro o Instituto. O ISM mandou o ônibus (para o transporte dos ex-internos da Clínica Planalto) às cinco horas da tarde”.
“Pareciam bichos”
“Quando nós entramos na Clínica Planalto, tinha um quarto escuro com todos os pacientes juntos, pareciam bichos. Estavam chorando, agarrados nos chinelos e nas mãos dos outros”.
Segundo ela, a equipe só pôde entrar no local depois de uma longa negociação. Os profissionais de enfermagem da Clínica Planalto estavam dificultando o acesso, discutiam questões trabalhistas e pagamentos atrasados. Naquele dia primeiro de abril de 2003, a equipe foi até a clínica pensando em como seria a distribuição dos pacientes, já que não houve, segundo Anunciação, um planejamento de fato. Em conversa com profissionais da clínica, descobriu que os serviços estavam parados. “O pessoal da enfermagem disse que os pacientes estavam sem comer nada desde o dia anterior. Sem medicação, cozinha fechada”.
As discussões acerca da transferência continuavam. Todos concordavam que o local adequado para os pacientes era com a família, mas alguns não tinham laços familiares ou condições de ficar fora de um ambiente médico. “Temos que mandar essas pessoas para a família, não para o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP). Só levaremos para o São Vicente os que não puderem ir para a família”, sugeria Anunciação, que apesar de não trabalhar na Clínica Planalto, conhecia a situação e sabia que havia pacientes em maior dificuldade.
Alguns internos eram de outros estados. Nestes casos, a busca era ainda mais longa, pois envolvia os familiares e, noutros casos, um local para o paciente ficar em sua cidade natal. Maria da Anunciação lembra de um caso que, depois de muitas buscas, encontraram o irmão de um paciente em Belo Horizonte. O rapaz conseguiu voltar para casa, mas, segundo Anunciação, muitas famílias não quiseram buscar seus parentes.

Reflexos
Os ex-internos da Clínica Planalto chegaram ao HSVP, assim como no ISM, com sequelas do período que passaram na clínica. O desafio, agora, era a humanização não só do tratamento, mas dos pacientes. No HSVP, a ideia foi dar assistência aos pacientes sem necessidade de internação. Nascia aí o Programa Vida em Casa. A proposta, idealizada por Anunciação, era de acabar com as internações e montar uma equipe para acompanhar os pacientes e dar a eles uma chance de ter uma vida fora de qualquer tipo de encarceramento. “O projeto começou com plano de assistir 50 pacientes e, em três meses, atendíamos 350 pessoas”, conta Maria da Anunciação, citada como “a pessoa mais humana do HSVP” por alguns entrevistados.
Anunciação se lembra de um remanescente da clínica “muito difícil”. Ela conta que uma vez ele “tirou a roupa e deitou no meio da rua”. A equipe começou a trabalhar com ele e, com certo tempo de tratamento, pegou o dinheiro que recebia do benefício e disse que queria ir à feira de Ceilândia comprar uma calça jeans. Ela, a irmã do paciente e a equipe foram acompanha-lo. “Ele queria comprar toda calça que via”, ela comenta e acha graça. O rapaz comprou e já foi embora usando sua calça nova. Eles ainda mantêm contato. “Até hoje, quando ele me encontra, lembra da calça”.
O Programa Vida em Casa ficou ativo de 2003 até este ano. Maria da Anunciação acredita que o motivo do encerramento foi a falta de profissionais na internação. Por meio da assessoria da Secretaria de Saúde do DF, a diretoria do HSVP disse que “embora o hospital não tenha mais o programa, o serviço é prestado atualmente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que recebem verba para esse serviço” e, ainda, que “o programa, do hospital, não foi interrompido de um dia para o outro. Ocorreu gradativamente”. A instituição não quis falar com a reportagem sobre a Clínica Planalto.
Memórias do inferno
“Toda noite a gente se unia para deitar. Quando a gente levantava no outro dia, tinha pessoa que a gente não via mais. Esses aí a gente não tinha notícia: se essas pessoas morriam lá dentro ou se eram levadas para outro ambiente”. O relato é do ex-interno da Clínica Planalto José Alves.
O homem contou que os casos de violência, porém, eram mais recorrentes. “O que me traumatizou foi apanhar demais sem saber de quem. Tinham servidores que não se identificavam. Eles não eram pagos para cuidar da gente, eles eram pagos para bater na gente”.
Sobre o assunto, Daniela Martins revelou que os prontuários aos quais teve acesso não especificavam a natureza das agressões. “Paciente foi encontrado ensanguentado no chão do banheiro” e “paciente encontrado com um hematoma”, são exemplos do que os funcionários da extinta clínica registravam nos documentos.
Daniela Martins, apesar de repudiar os maus-tratos, não responsabiliza os funcionários da Clínica Planalto. “O que nós víamos ali eram profissionais que dispunham de poucos recursos e nenhum tipo de orientação institucional para uma prática diferenciada, então eles se restringiam ao mínimo”.
Elisa Midori era profissional da PROSUS, responsável por fiscalizar as condições das instituições de saúde do DF e formular, a partir disso, relatórios das visitas realizadas. Em determinada oportunidade, ela flagrou um paciente contido, com braços e pernas amarrados com cordas, “de forma totalmente inadequada”, no leito de uma das alas da Clínica Planalto. O fato está registrado no relatório do MPDFT de visita feita à clínica no dia 20 de setembro de 2002.
Além da violência, o ex-interno da clínica, José Alves, durante entrevista, se queixou da alimentação precária. “No dia que a gente se alimentava era com angu de milho, e era só aquilo ali mesmo. Se você aguentasse comer, você comia. Se não aguentasse comer, passava o dia com fome”, se lembra.
Os documentos escritos por Elisa registram reclamações de pacientes referentes à “alimentação insuficiente e pouco variada”. Foi relatado, inclusive, que aconteciam brigas por comida durante as refeições. Maria da Anunciação fala em “alimentação diferenciada” ao comparar a dieta dos pacientes da ala privada com a dieta das três alas destinadas aos pacientes do SUS. Os primeiros, aliás, usufruíam de um refeitório particular, enquanto aqueles custeados pelo Estado, em número consideravelmente maior, dividiam um outro em comum.
A SES/DF informou que o contrato com a Clínica Planalto é muito antigo e que não iria se pronunciar sobre o caso.
José Alves ficou internado no local entre os anos de 1990 e 1993, com possibilidade, segundo ele próprio, de idas e vindas posteriores. Os usuários do sistema público de saúde mental, até o fechamento da clínica, há 14 anos, costumavam ser transferidos do Hospital São Vicente para a Clínica Planalto.
Uma outra denúncia feita pelo ex-paciente se refere às instalações da Clínica Planalto. “Eu dormi, muitas vezes, em cima de caixa de papelão. Me enrolei muito com jornal também. Às vezes eles abriam aqueles sacos de açúcar para gente se cobrir”, afirma José Alves. Em visitas anteriores ao fechamento da clínica, o Ministério Público já alertava para a necessidade de aumentar o número de quartos no local a fim de acomodar um número menor de pacientes por quarto. A exigência para que fosse ampliado o número de banheiros evidencia outra carência da instituição no que se refere à situação dos pacientes do SUS. A necessidade de criação de áreas para lazer e oficinas para terapia ocupacional também foi registrada.
O prédio em que ficava a Clínica de Repouso do Planalto foi demolido. Hoje, parte do terreno é ocupado pelo Centro de Internação de Adolescentes de Planaltina (Ciap). Nos fundos da unidade de internação, os escombros da clínica são como um parque arqueológico do manicômio no planalto.
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O ambiente de trabalho hoje se confunde com a própria casa. Aparelhos de trabalho e objetos pessoais se misturam no espaço. Na parte superior, duas bicicletas e um quadro solto (parte central da estrutura do meio de transporte) dividem o espaço com um varal. Duas toalhas, camisa social, duas camisetas e bermuda secam. As paredes mais parecem uma agenda de contatos, com nomes e telefones gravados com tinta ou riscados com parafuso; entre os mais legíveis, Rodrigo, Ronaldo, “Pekeno”, Goiano, Wanessa. A parte que divide fisicamente o espaço da oficina e o de casa leva uma imagem da Bênção do Lar e, ao lado, Santa Luzia, a santa protetora dos olhos.
“A gente se sentia animal. Se sentia animal porque não tinha visita de um parente. Nós, lá dentro, não tínhamos parentes. Lá dentro nós não tínhamos médico. Lá dentro, nós não tínhamos ninguém”. A expressão “ser tratado como animal” não se aplica mais a José Alves, o ex-interno da Clínica Planalto entrevistado pela reportagem. Hoje, aos 53 anos, José faz bicos em sua oficina, tem casa própria e vive com dois gatos e dois cachorros que, ao contrário dos pacientes da clínica fechada em 2003, têm nome, sobrenome e tratamento digno. “Dou meu sobrenome aos meus animais, porque eles fazem parte da família”.
Segundo José, o gato Mustafar Alves tem 25 anos de idade e, há dois, não sai da laje de casa. Outro gato, Nano Ribeiro, caminha pela oficina, desconfiado com a presença de estranhos no território.
Na parte de trás da casa está um dos cachorros, Max Ribeiro, um labrador preto com coleira vermelha que recebe os intrusos com grossos latidos. O xodó de José Alves é o menor, Zeca Alves, filhote de cachorro sem raça definida e com uma fita vermelha no pescoço – quase uma gravata borboleta – que chegou há pouco tempo. Ao contrário dos outros, o mais novo integrante da família se alegra com os visitantes.
A história de José com os animais vem de longa data, quando, aos sete anos, foi picado por uma jararaca. Na época, no interior do Ceará, não havia tratamento. Ele conta que os responsáveis pela cura em casos como esse eram os curandeiros. “Eu me lembro que tinha um senhor lá que ele falou para o meu pai: ‘olha, ele tem que passar um mês num lugar escuro, que ele não possa ver ninguém’. E todo dia aquele velho mascava mel de fumo e cuspia na minha boca. Eu tinha que engolir aquele mel”. Depois da mordida da cobra, José teve seu primeiro surto de epilepsia, ainda aos sete anos. Na mesma época, teve sarampo e ficou cego por um mês.
Depois do sarampo, já enxergando normalmente, as crises epilépticas continuaram. Quando desmaiava, as pessoas em volta pensavam que o garoto havia morrido e colocavam uma vela acesa em sua mão. “Eles tinham essa ciência lá, de que era para não morrer no escuro”. José esboça um sorriso no canto da boca quando se lembra do alívio do povo ao vê-lo retornar depois da crise, mas se recorda das queimaduras da vela em sua mão.
Nessa época, José Alves teve uma das crises mais fortes. “Eu corri muito no meio do mato que, quando eles foram me achar, foi com três dias depois”, conta. Desde esse surto, comenta, sente a presença dos bichos que o perseguiam. “Até hoje, tenho um problema seríssimo que eu fico ouvindo animal rugindo aqui em cima da casa”. O choque dessa crise foi derradeiro na vida do garoto, que começou a morder as pessoas que se aproximavam dele. A vida de internação estava cada vez mais próxima.
“Quem me deu a minha primeira prisão de manicômio foram os meus pais”, afirma José, esclarecendo que eles não têm culpa. Na época e local em que estavam, prenderam o filho apenas para protegê-lo da rua e dos perigos que ela oferecia.
“É claro que naquele tempo as pessoas não entendiam que eu tava com problema de saúde então. Eles iam me matar”, diz.
O pai de José construiu um pequeno quarto escuro, de chão de areia batida e todo fechado, para que não saísse por cima. Na parte de baixo da porta, um espaço de dez centímetros para que pudessem passar comida e água e, ao mesmo tempo, impossibilitar a saída rasteira. As necessidades fisiológicas eram feitas ali mesmo. Nesse quarto, viveu por cerca de três anos e afirma que, apesar das sequelas, não carrega sentimentos negativos sobre os pais. “É claro que foi uma coisa muito pesada para mim, que isso me remete surto até hoje por isso, mas naquele momento eu não transmito nenhuma culpa pra eles, que eles estavam querendo me proteger da rua”.
Aos 12 anos, José foi morar com a avó em São Paulo. Ficou até os 16 e veio viver com um irmão em Brasília. A mudança de cidade tinha como objetivo o tratamento. Foi informado que o controle da doença seria à base de um remédio. “Falaram que eu tinha que tomar gardenal. Naquele tempo, todo mundo sabia que quem tomava gardenal era chamado como doido”. Recusou o tratamento. Andando pelas ruas da capital, teve alguns surtos. Foi em um desses dias que, não sabe por quem, foi pego. “E aí eu fui levado para essa clínica, e lá eu fui mais uma vez levado pra prisão, com um quarto muito pequeno”.
***A reportagem não conseguiu entrar em contato com os diretores da Clínica Planalto
Reportagem de Paulo Gonçalves e Lucas Santin, da Revista Esquina
Colaboração de Karina Berardo
Com supervisão de Carolina Assunção (Esquina on-line), Isa Stacciarini (TV), Katrine Boaventura (rádio) e Luiz Claudio Ferreira (Revista Esquina)
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