Adultos recordam traumas do trabalho infantil e explicam impactos no dia a dia

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Aos 8 anos de idade, a infância de Jose Augusto Lima, morador de Recife, foi sacrificada. No caso de Joel Carneiro da Silva foi aos 11 anos. Quando a fome bateu à porta, a infância deixou de existir, e brincar se tornou uma utopia. Ajudar no sustento de casa se tornou uma responsabilidade para ambos, e trabalhar era o único meio de sobreviver. Hoje eles são adultos. Jose tem 25 e Joel, 51. Ambos relataram, com tristeza, a infância interrompida. 

Jose recordou quando vestia uma regata com desenho de carros, bermuda tactel e sandália nos pés, quando, aos 8 anos, ia bem cedinho em direção à praia de Boa Viagem, na zona sul do Recife, todos os finais de semana. Mas não era para tomar banho no mar, fazer castelinhos de areia ou caçar conchas, como as crianças da idade dele fazem, ou deveriam fazer. Ele ia à praia para trabalhar. Durante 11 horas seguidas, o garoto vendia caldinhos na praia para conseguir um dinheiro para ajudar sua família em casa. 

“O que me levou a trabalhar quando eu era criança foi a necessidade. Sempre tivemos uma renda muito baixa, então eu percebi que eu precisava fazer algo para ajudar com a renda lá de casa e ter dinheiro para mim mesmo”, disse à reportagem do Esquina.

Área rural

Joel, aos 11 anos, trabalhava durante 12 horas em plantações de milho, trigo, cana e soja, em Niquelândia, no Goiás. Ele passava o dia inteiro capinando, plantando sementes, arando o solo, colhendo plantações e limpando a fazenda para ganhar um litro de feijão. E os empregadores pagavam com  um litro de óleo e um requeijão. Ao chegar em casa, ele estava exausto. 

“Ficava muito cansado, chegava a noite e eu só queria dormir. Na realidade eu não tive infância nenhuma, brincar era coisa de outro mundo, eu não tinha isso. Eu via algumas crianças brincando e dava vontade, mas não podia”

Créditos: Bureau de criação do UniCEUB

Trabalho

O trabalho infantil não foi nem é uma realidade apenas de Jose e Joel, mas de milhares de crianças e adolescentes que precisam exercer alguma função diariamente para que não lhe falte alimento em casa. No Brasil, em 2023, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia cerca de 1,6 milhão de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil. 

Segundo a pesquisa, a jornada de trabalho semanal de 20% dessas crianças e adolescentes era de 40 horas ou mais, superando a jornada média de trabalho dos adultos, que, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, é de 39 horas semanais. Para 39% das crianças e adolescentes, a jornada média de trabalho era de até 14 horas semanais. 

São crianças e adolescentes que deveriam estar estudando ou brincando, mas na hora de brincar estão ocupados e na hora de estudar já estão cansados. Quando o trabalho termina, eles só querem dormir. 

Fonte: Instituto Brasieleiro de Geografia e Estatística

Definição

De acordo com procurador do Ministério Público do Trabalho, coordenador regional da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, Paulo Neto, “trabalho infantil é toda forma de atividade exercida por crianças e adolescentes que estão abaixo da idade mínima (no caso do Brasil, 16 anos) para a entrada no mercado de trabalho”.

O Artigo 7°, da Constituição Federal de 1988 proíbe o  trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos.

Segundo o procurador, as atividades exercidas por crianças e adolescentes que estão sofrendo trabalho infantil pode ser uma atividade econômica ou não, ou seja, ela pode ou não ter finalidade de lucro. “Até uma atividade de sobrevivência também caracteriza Trabalho Infantil”, explica. 

A única exceção para a idade mínima de 16 anos é aprendizagem profissional, que seria a função de jovem aprendiz, que, inclusive, é um direito da criança e adolescente.  “A aprendizagem profissional tem por objetivo dar uma qualificação profissional para aqueles adolescentes que necessitam trabalhar, mas garante que o trabalho deles seja realizado de uma forma protegida por lei”, explica Paulo Neto. 

No Brasil, conforme o Decreto nº 6.481 de 12 de junho de 2008, podemos dizer que existem permissõs e proibições em relação ao trabalho infantil em três faixas etárias: até 13 anos o trabalho é totalmente proibido; com 14 e 15 anos, é permitido que o adolescente exerça uma função, mas somente na posição de aprendiz; com 16 e 17 anos, é permitido o trabalho desde que ele não seja noturno, perigoso, insalubre, não conste na lista das piores formas de trabalho infantil, não seja prejudicial ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social ou que não interfira na sua escolarização.

Legenda: Permissões e proibições sobre o trabalho de crianças e adolescentes no Brasil.

Créditos: Bureau do UniCEUB

Piores formas

Dentro do trabalho infantil, uma classificação define as atividades mais nocivas, insalubres e perigosas para a saúde e desenvolvoimento das crianças e dos adolescentes. No Brasil, em 2023, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estástistica, 586 mil crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos de idade realizando as piores formas de trabalho infantil. 

As atividades foram determinadas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, e proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Convenção 182. No Brasil, a convenção foi adotada por meio do Decreto 6.481 de 12 de junho de 2008.

Segundo a Constituição, integram as piores formas de trabalho infantil aquelas ligadas à  escravidão ou práticas análogas ; a “utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas”; a “utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades ilícitas”; e o “ recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado em conflitos armados”. 

A lista elenca 93 piores formas de trabalho infantil. Estão incluídos 89 trabalhos prejudiciais à saúde e à segurança e 4 trabalhos prejudiciais à moralidade. Entre as as piores formas estão: na direção e operação de tratores; no manuseio de agrotóxicos; na coleta de lixo; em cemitérios; em câmaras frigoríficas; em escavações; na industrialização do fumo; na industrialização da cana e açúcar; em matadouros ou abatedouros em geral; em serralherias. 

Precisão

Jose Augusto Lima morava na periferia de Recife (PE), o pai era pedreiro e a mãe dedicava seu tempo para cuidar do lar e dos quatro filhos. “A família era grande e a renda era pequena”. Ele recorda que começar a trabalhar tão cedo foi natural para ele. Jose Augusto sentiu necessidade de ajudar com o sustento da família ainda aos 8 anos. 

Durante a semana, o garoto acordava às 5 horas da manhã e acompanhava o pai em direção ao serviço. Ele cumpria a função de ajudante de pedreiro: carregava tijolos, ajudava preparar a massa do cimento, levantava carrinhos e manuseava outras ferramentas. O serviço era cansativo e muito pesado para um garoto ainda em processo de formação. 

Créditos: Bureau de criação do UniCEUB

Jose não recebia dinheiro por ajudar o pai. Então a necessidade de complementar a renda de casa continuou. A solução que ele achou foi vender caldinho na praia de Boa Viagem. O caldo ou caldinho, é uma comida típica da cultura nordestina e é muito comum encontrar ambulantes vendendo a iguaria na praia. Infelizmente, é comum ver crianças e adolescentes vendendo também. 

“Eu trabalhava com uma bolsa cheia de caldinhos, às vezes, de seis da manhã até cinco da tarde. Eu passava o dia andando de um lado para o outro vendendo até atingir a meta de vender tudo ou o máximo que eu pudesse”, relatou.  

Pobreza

O trabalho infantil é um fenômeno social complexo, motivado por diversas causas. A mais comum delas, de acordo com a auditora-fiscal do trabalho, Paula Neves, é a pobreza, como foi no caso de Jose Augusto. “Trabalho infantil e pobreza andam juntos”, afirma. A pobreza é o estado de não ter, de insegurança, de não saber o quê ou quando irá comer. É um problema decorrente da falta de atendimento adequado das necessidades vitais básicas de uma pessoa ou de uma família a exemplo de moradia, alimentação, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte. 

No Brasil, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023, havia quase 60 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. Dessas, 9,5 milhões de pessoas estavam em situação de extrema pobreza. 

A pesquisa levanta questões como a desigualdade social e disparidade de renda, em que o grupo dos 1% mais ricos do Brasil tem um rendimento médio mensal 39,2 vezes maior que os 40% com os menores rendimentos, mostrando que o capital é concentrado nas mãos de poucas pessoas no Brasil.

“Muitas dessas crianças e adolescentes buscam trabalho pela privação que eles vivenciam dentro de casa, buscam trabalho para ajudar a família”, explica Neves.

Rendimento escolar

Aos 13 anos, ele deixou de vender caldinho e começou a trabalhar atendendo mesas, ainda na praia no Recife. Funcionava como um garçom, de sexta a domingo. Nesse período, a sua rotina se tornou mais puxada porque ele precisava acordar mais cedo e voltar mais tarde. O seu trabalho começava antes de amanhecer o dia, às 5h manhã, e só terminava às 18 horas da noite. 

Jose não deixou de estudar enquanto trabalhava. Ele estudava à tarde em uma escola pública que ele não se sentia atraído por estar ali. “A criminalidade dentro do colégio era muito alta. Eles vendiam droga lá dentro, a gravidez na adolescência também era comum. Além disso, o ensino era defasado, a gente tinha duas aulas por dia, três no máximo, e às vezes nem tinha aula, a gente só ia e voltava porque não tinha professor”, relembra Jose.

Apesar de não ter largado os estudos, o seu rendimento escolar era ruim. Isso porque ele acordava às 5h para ajudar o pai na construção civil, às 12h voltava para casa, às 13h30 ia para escola e chegava em casa só às 18h.  Ele me contou que, por conta da rotina pesada, não tinha ânimo para ir para o colégio e quando ia, o seu desempenho era deficiente. 

“Trabalhar na construção civil é muito puxado, o corpo sente o cansaço. Eu não tinha ânimo de estudar, eu ia pra escola pensando em voltar pra casa ou dormia na aula”, lembrou.

Jose via os estudos como uma solução para sair da pobreza em que ele vivia. Por isso que, mesmo com todos os empecilhos, ele persistiu em estudar. “Eu morava na periferia, então era muito comum presenciar troca de tiros, lá tinha muita criminalidade e tráfico de drogas. Eu via aquilo e pensava: não é isso que eu quero, eu quero sair daqui.”

Ciclo da pobreza

De acordo com a auditora-fiscal, Paula Neves, por conta do trabalho precoce, é comum que crianças e adolescentes deixem de lado os estudos, causando a diminuição da frequência e do rendimento, ou até mesmo o abandono  da escola. Infelizmente, como consequência da deficiência do estudo, não conseguem ter uma qualificação profissional melhor e, por sua vez, alcançam empregos com baixa remuneração.  

Neves explica que o cenário de necessidade contribui para a perpetuação do trabalho entre crianças. “Essas crianças e adolescentes têm a formação escolar prejudicada e, quando adulto, e sem qualificação, acabam por exercer trabalhos precários e com baixa remuneração, insuficiente pro atendimento das necessidades básicas da sua família, fazendo com que os filhos dessas pessoas passem pela mesma situação dos pais e ingressam  no trabalho precocemente.”

Virada de chave

Aos 14 anos, Jose teve oportunidade de ingressar como jovem aprendiz na área administrativa em uma escola da sua cidade. Foi só então, depois de 6 anos trabalhando na praia de Boa Viagem, no Recife, que ele pode ter uma relação saudável com o trabalho.

Lá ele trabalhava por 4 horas durante 4 dias,  e em um dia da semana o programa que ele fazia parte oferecia aulas de português, matemática, administração, informática e outras disciplinas ou cursos. 

Aos 15 anos, Jose conseguiu uma bolsa de estudos em um colégio particular na cidade em que morava, onde ele pode usufruir de um ensino de boa qualidade. Estudar então virou prioridade para ele, e assim que saiu do ensino médio, ingressou em um curso de ciências contábeis. O gosto pela contabilidade veio da sua experiência com a área administrativa ainda quando era jovem aprendiz. 

Ele pagava a sua faculdade com o dinheiro que ganhava em um emprego como estoquista. Quando terminou a faculdade, conseguiu um emprego na sua área e hoje, aos 25 anos, abriu a sua própria empresa de consultoria fiscal no Recife. Ele é casado, tem duas filhas e conseguiu quebrar o ciclo da pobreza que começou ainda com seus avós. “Tenho meu carro, e levo uma vida mais tranquila do que naquela época. Hoje eu consigo proporcionar para minhas filhas tudo que eu não tive.”

Jose Augusto ao lado de sua esposa Camila Carolina e de suas filhas, Maria Alice e Maria Eduarda. Créditos: Arquivo pessoal

Trabalho

O trabalho infantil sempre foi, para Joel Carneiro da Silva, apenas trabalho. Desde que se entende por gente, ele percebeu que para sobreviver, era necessário trabalhar. Começou na chácara em que morava com seus pais e seus irmãos, ele ajudava o pai na plantação que tinha no quintal. Joel nasceu e foi criado em uma roça no interior de Niquelândia, no Goiás. Morava em uma casa de barro  e dormia em uma cama de madeira. 

Aos 12 anos, seu pai morreu de bronquite e deixou um barraco com quatro filhos e uma mulher para cuidar. A sua mãe e a sua irmã mais velha precisaram tomar de conta da casa. Joel ficou desorientado, mas nem pode sofrer com o luto, pois a necessidade bateu na porta. “Ficou minha mãe e minha irmã mais velha para tomar conta da gente. Mas elas sozinhas não conseguiam sustentar todo mundo, a gente tinha que fazer alguma coisa pra sobreviver.” 

Então o trabalho, que já era um velho conhecido, entrou na sua vida novamente. Com apenas 12 anos, ele começou a trabalhar em plantações de terceiros, por horas incansáveis, sem horário de descanso, debaixo do sol, para ganhar no final do dia, não dinheiro, mas alimentos. “A gente ia lá trabalhar o dia todinho capinando milho pra poder receber um requeijão e um litro de óleo que era pra levar pra casa e  poder estar sustentando outros irmãos também”, relembra. 

Durante esse período, sustentar a família já era uma preocupação de Joel. Ele alternava seu tempo entre cuidar da pequena plantação da família e trabalhar em fazendas de outras pessoas. Descanso e brincadeiras eram quase desconhecidos, mais uma infância ceifada pelo trabalho.

Créditos: Bureau de criação do UniCEUB

Saúde mental

O trabalho infantil gera  prejuízos psicológicos que acompanharão essas crianças em toda a vida. De acordo com a psicóloga infantil Amanda Medeiros, uma criança ou adolecente que precisa se preocupar com o sustento da família ainda tão cedo, lidará com uma pressão que poderá causar um adoecimento psicológico. 

Os prejuízos são “imensos”, entre eles a psicóloga cita a baixa autoestima, insegurança, sentimento de desvalorização, propensão à ansiedade, depressão e burnout. “São pessoas que são muito inseguras, que precisam sempre validar as próprias ideias; que têm dificuldade de ter momentos de ociosidade; dificuldades em estabelecer vínculos sociais afetivos positivos, dificuldade pra criatividade porque a criança não teve espaço para desenvolver a ludicidade”, acrescenta.

Os prejuízos são ainda piores para a criança que começa a trabalhar ainda na primeira infância, período que abrange desde o seu nascimento até os seus primeiros seis anos de vida. Durante a primeira infância, ocorre o amadurecimento do cérebro, a construção de identidade, desenvolvimento da capacidade de aprendizado. É um momento importante para o desenvolvimento físico e psicológico da criança e para a socialização, que não deve ser interrompido. 

De acordo com a psicóloga, uma criança que começa a trabalhar, sofre um processo chamado de “adultização infantil”, em que o seu desenvolvimento é acelerado de forma forçada para que ela smo estava com fome, me dava uma fraqueza ali na hora”, lamenta.e torne um “mini adulto”. “A criança cresce com essa ideia de que ela é responsável pela subsistência daquele núcleo e isso acarreta numa pressão emocional e numa sobrecarga mental para o sujeito é enorme”, explica. 

Instabilidade

Aos 14 anos, alguns conhecidos convidaram Joel para morar na capital do Brasil e prometeram uma outra forma de ganhar dinheiro que ele julgou ser melhor do que trabalhar na roça. O trabalho era como catador de lixo, na Cidade Estrutural. Joel deixou sua família em Goiás e veio para Brasília morar em um barraco sustentado por algumas madeiras e coberto por uma lona. Um lugar instável, que não era abrigo de chuva, que não amenizava o frio no inverno, e aumentava o calor no verão.

No Distrito Federal, Joel, que era um adolescente ainda, foi apresentado para o trabalho que o acompanhou  a vida inteira. Catar lixo foi a nova forma que ele encontrou para sobreviver. A sua rotina começava às 7 horas da manhã e só terminava ao anoitecer. “A gente catava latinha e a garrafa, a gente separava em um canto, quando era de tarde a gente descia com elas e vendia para o pessoal que comprava, e aquele dinheiro a gente ia guardando para almoçar ou comprar alguma coisa para comer”, conta. 

Ainda garoto, Joel trabalhava sem equipamento algum e, muitas vezes, descalço. No meio de caminhões, adultos com ganchos para catar lixo e animais mortos. “Lá tinha todo tipo de animal, do cavalo até o urubu. Tudo junto com a gente, ficavam encostados na gente.” Mas o que mais incomodava Joel era o fedor que saiu dos rejeitos. “O cheiro era muito forte, era horrível, aquilo adoece a pessoa”, relembra.

Por conta das circunstâncias, Joel se sentia mal constantemente. “Eu passava muito mal, chegava a desmaiar por conta do calor e do gás que subia, e como estava com fome, me dava uma fraqueza ali na hora”, lamenta.

Necessidade

Joel mudou a sua fonte de renda, mas continuou passando necessidades. Ele conta que por ser novo, ele não era ágil e não conseguia catar quantidades de lixo significativas, apenas as sobras dos adultos.“Tinha muita gente no lixão e como a gente era muito pequeno e sem força a gente não pegava quase nada”, recordou. A lógica é simples: se catava pouco lixo, recebia menos dinheiro e comia quase nada. 

E se faltava dinheiro para comida, ter dinheiro para as outras necessidades básicas era impensável. As roupas que ele vestia e os sapatos que ele calçava eram retirados do próprio lixão. “Eu não tinha condição de comprar. Então o que a gente achava lá a gente levava, lavava e usava”, conta. 

Joel fala “a gente” porque catar lixo não era uma realidade só dele, mas de dezenas de outras crianças que trabalhavam no lixão. O catador relembra que convivia com crianças bem menores que ele: “Ali de sete anos para cima tinha crianças trabalhando.” E o motivo de ter tantas crianças trabalhando de novo era a necessidade. “Não era nem culpa do pai ou da mãe, não, aquilo ali era uma necessidade, porque não tinha nada para comer em casa” contou. 

Vergonha

Diferente de Augusto, Joel não conseguiu terminar os estudos. Quando morava na roça, estudou com sua cunhada, que era professora, durante dois anos. Quando ele veio morar em Brasília, aos 14 anos, chegou a dar continuidade nos estudos, mas por conta do trabalho ele precisou sair. Ele estudou só até a quinta série. Atualmente ele tem dificuldade de ler e escrever. “Quando as pessoas me mandam mensagem pelo whatsapp, eu levo um tempo para conseguir ler. Eu cheguei a ser a alfabetizado, mas tenho muita dificuldade para ler e escrever, principalmente para escrever”, contou. 

Joel ainda tem a esperança de poder dar continuidade nos estudos. “Eu sinto falta disso [estudos], demais da conta. Hoje a minha vontade é voltar para escola, e eu estou caçando um jeito de voltar”, disse. Não ter concluído o ensino fundamental, nem o ensino médio impede que ele acesse cursos que o interessa. “As vezes tem um curso que a gente acaba não indo por falta dos estudos, e por vergonha também, porque às vezes você precisa escrever algo ou ler alguma coisa no curso e não da conta.”

Sobre a pele

Joel Carneiro trabalhou desde sempre, e hoje aos 51 anos leva consigo as marcas do trabalho infantil sobre a pele. O catador acredita que trabalhar desde a infância o fez envelhecer mais rápido. Ao conversar com ele, pude perceber que a pele do seu pescoço estava ressecada e descamando. As mãos estavam cheias de calos. E nos braços haviam queimaduras de sol, que estavam escondidas por uma camisa com mangas longas, mas ele fez questão de mostrar os danos que sofreu. 

“Olha, dá para ver, eu tenho 51 anos, mas muita gente fala que eu tenho cara de 60. Eu estou cheio de manchas na pele, então não é brincadeira. Eu sempre falo que lixão não é lugar para gente trabalhar não”. 

Apesar de todas as dificuldades e os problemas causados por trabalhar como catador tão cedo, Joel tem muito orgulho da profissão. Hoje ele é vice-presidente de uma cooperativa de lixo na Cidade Estrutural e luta por melhores condições de vida para os catadores de lixo. Ele criou seus 4 filhos,  insistiu em que eles estudassem e excluiu a possibilidade de que suas crianças, hoje adultas, trabalhassem precocemente como ele. “Eu tenho muito orgulho de ser catador, com a catação eu consegui dar para meus filhos o que meus pais não tiveram condições de me dar”. 

Naturalização e reprodução de mitos

Além de Jose Augusto, havia várias outras crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Ele contou que o trabalho infantil era normalizado. “Era uma coisa comum, ninguém estranhava ver uma criança trabalhando na praia”, disse. 

A cultura de naturalização do trabalho precoce, de acordo com a auditora-fiscal do trabalho, Paula Neves, é mais um das causas que colaboram para a perpetuação do trabalho infantil. “Existe o pensamento na sociedade de que o trabalho é positivo para as crianças”, afirma. 

Ela identifica que essa cultura é reforçada por mitos que pesquisadores sobre o tema e ativistas chamam de “mitos do trabalho infantil”, falsas percepções da realidade. São crenças ou expressões popularmente usadas que subestimam os danos físicos, morais, psicológicos  e sociais causados, e que  favorecem a inserção de crianças e adolescentes no trabalho precoce.

A expressão: ‘é melhor trabalhar do que roubar e do que usar droga’, por exemplo, é uma delas, como se o trabalho infantil fosse a única alternativa à criminalidade. “ A ideia de que trabalhar é melhor do que roubar, ignora uma série de direitos das crianças e dos adolescentes previstos na Constituição Federal”.  

De acordo com Paula Neves, o trabalho infantil não afasta uma criança ou adolescente da criminalidade, mas sim “do acesso à educação, à cultura, à convivência familiar e a realização de atividades próprias para idade daquela criança ou adolescente”. A expressão é preconceituosa e, geralmente, direcionada a crianças pobres. 

Outro mito muito repetido: ‘trabalhar desde cedo garante um futuro melhor’, quando na verdade trabalhar precocemente traz uma série de danos que afetará o futuro da criança ou adolescente. “O  trabalho prejudica o desenvolvimento da criança desde a educação básica até a formação profissional”, afirma Paula Neves. 

Outro mito: ‘Não faz mal uma criança trabalhar para ajudar a família’. Crianças e adolescentes não podem ser submetidas a situações de trabalho infantil sobre a justificativa do sustento da família. “Responsabilizar essa criança e adolescente pelo sustento é inverter os papeis que estão constitucionalmente estabelecidos”, explica.

De acordo com a auditora, quando a família não tem condições de prover o próprio sustento, cumpre ao Estado apoiar essa família e não a criança e o adolescente, uma vez que atribuir a responsabilidade de sustentar a família a uma criança se trata de uma violação de direito.

Exploração

Além da pobreza e da naturalização, Paula Neves cita outras causas que levam crianças e adolescentes a serem vítimas da exploração no trabalho precoce. A “demanda” pelo trabalho infantil é uma delas. A mão de obra de crianças e adolescentes é mais barata e exige pouca ou nenhuma qualificação profissional, e os exploradores utilizam da exploração de crianças e adolescentes para reduzir os custos com a mão de obra. “Muitas vezes essas crianças e adolescentes são admitidas sobre a desculpa que estão sendo ajudadas, recebendo salários inferiores ao que seria devido a trabalhadores adultos”. 

Outro ponto citado pela auditora é que uma criança ou adolescente tem uma facilidade maior de ser manipulada e dominada. Em decorrência da imaturidade, vulnerabilidade e falta de conhecimento  e instrução, eles se sujeitam ao controle e não reivindicam seus direitos, até porque eles nem conhecem seus direitos. “Eles aceitam as condições de emprego e salário com facilidade. Eles não reclamam de peso, da sobrejornada, da sobrecarga, da exploração, dos perigos, eles não reivindicam direitos”, explica Neves.

Políticas públicas

O Brasil se comprometeu a erradicar todas as formas de trabalho infantil até 2025, de acordo com a Meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que fazem parte da Agenda 2030 da Organização de Nações Unidas (ONU). 

Para o procurador do trabalho, Paulo Neto, a ausência de políticas públicas efetivas é o maior desafio para combater o trabalho precoce no Brasil. “Muitas vezes não temos uma política pública criada e quando tem não é uma política efetiva, é insuficiente, ou então ela só existe formalmente mas não é cumprida”, afirma.           

Paulo Neto defende que a principal política que deveria ser efetivada é a de proporcionar educação de qualidade e de forma integral para crianças e jovens. “A criança e o adolescente ficando o dia inteiro na escola estaria livre do trabalho infantil”, disse. 

Para aquelas escolas que não são integrais, ele defende a necessidade de que os municípios e estados ofereçam atividades de contraturno escolar que sejam de interesse de crianças e adolescentes, como serviços de convivência e fortalecimento de vínculo ou cursos de músicas, idiomas, artes marciais. 

Além disso, Paulo Neto acredita que é necessário fornecer assistência para pais e responsáveis que vivem em condições financeiras precárias, para que seus filhos não precisem ajudar com a renda da família. “Se a família não tem condições de se manter, não cabe a criança ou a um adolescente se responsabilizar por isso, é o Estado que tem que assumir isso”, afirma. Para assistir os pais, o promotor cita como alternativa a inclusão em programas de assistência social e transferência de renda, além da oferta de cursos de profissionalização. Para Paulo Neto, essas seriam algumas soluções para evitar que infâncias sejam ceifadas pelo trabalho infantil.

Enfrentamento

O procurador Paulo Neto ressalta que é dever de toda a sociedade denunciar casos de Trabalho Infantil, e que realizar denúncias facilita o trabalho de fiscalizção e afastamento dos órgãos do Governo. “Não havendo denúncias, os órgãos de fiscalização ficam impedidos de trabalhar”, explica. 

Há várias formas de denunciar casos de crianças e adolescentes em trabalho infantil. O cidadão pode fazer uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho; ouvidorias dos tribunais da Justiça do Trabalho; Conselho Tutelar de sua cidade; Delegacia Regional do Trabalho mais próxima; Secretarias de Assistência Social.

Pelo Ministério Público do Trabalho é possível fazer a denúncia online por meio  da página de denúncias disponibilizada no site do Ministério. Também é possível realizar uma denúncia pelo Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que também funciona no WhatsApp e no Telegram.

Por terem vivido na pele o trabalho infantil e conhecer os danos que essa violência causa à uma criança ou adolescentes, tanto Jose Augusto quanto Joel alertam as pessoas sobre a importância de salvar crianças e adolescentes de trabalho infantil. Conscientizar sobre a importância de denunciar é apenas uma das ações que eles fazem para combater o trabalho infantil. 

A partir daqui, colocar as informações em um box

Megaoperação em 2024

A situação que Joel e Jose passaram não se alterou. Em agosto de 2024, o Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho Infantil do Ministério do Trabalho em agosto deste ano, no Agreste de Pernambuco onde foram resgatados 301 crianças e adolescentes do trabalho ilegal. 

Na operação foram identificadas 41 crianças com idade até 11 anos de idade; 62 adolescentes com idade entre 12 e 13 anos; e 198 com idade entre 14 e 17  anos. Durante a operação, foram fiscalizadas e identificadas mais de 70  estabelecimentos e dez feiras livres, nos municípios de Caruaru, Toritama, São Caetano, Taquaritinga do Norte, Brejo da Madre de Deus, Gravatá, Santa Cruz do Capibaribe e Cupira.

A auditora-fiscal Paula Neves, foi a coordenadora da operação. Ela descreveu as diversas situações em que as crianças foram encontradas trabalhando. Segundo ela, havia crianças trabalhando com prensas quentes; com facas e facões em açougues; carregavam mercadorias muito acima de suas capacidades físicas; além de enfrentar jornadas de trabalho exaustivas. 

De acordo com a auditora-fiscal do trabalho, os maiores riscos encontrados foram “fiação elétrica desprotegida nas facções com risco de incêndio; exposição a ruídos acima dos limites de tolerância; utilização de produtos químicos tóxicos; utilização de máquinas com risco de ferimentos; utilização de instrumentos perfurocortantes; e  exposição ao fogo”.

Violência

Entre as crianças afastadas do trabalho infantil nesta megaopração, Paula Neves lembra de um garoto que estava na porta de um açougue, vestido com um uniforme vermelho, sem nenhum equipamento de proteção. O garoto inseria cortes bovinos em um moedor de carne. Para quem não conhece, um moedor de carne é uma máquina que tritura cortes de animais. Se, por descuido, você insere dedos, mãos, braços ou antebraços,você perde a mão, ou, em casos extremos, a vida. 

Segundo a auditora, ele era magro, esguio e baixinho. O uniforme estava bem folgado nele, mas ele era ágil. Para uma criança de nove anos então, nem se fala. Quando inseria  a carne, os dedos curtos e pequenos quase, mas quase, eram engolidos pela máquina. Sorte a dele que o pai estava do lado e orientava: ‘Coloca a carne e tira a mão rápido’. Ufa, ainda bem que o pai estava ali. Ciente do perigo ele com certeza estava. Além do garoto que trabalhava ao lado do pai, várias outras crianças exerciam a mesma função. 

Paula Neves encontrou, há alguns quilômetros dali, em um facção têxtil, uma indústria de confecções e vestuário que fazem seus serviços exclusivamente para outras empresas, no meio de restos de tecidos, rolos de linhas coloridas, caixas amontoadas e cestos com retalhos, estavam dois adolescentes. Uma garota de cabelo preto e cacheado que vestia um short com a logo do colégio e uma camiseta simples; ao lado de um garoto pardo de cabelos pretos também, que vestia uma bermuda preta e camiseta roxa. Ambos sentados em banquinhos, trabalhando com o que eles chamam de “queima de ponta de linha”. O trabalho consiste basicamente em cortar as linhas que sobram dos tecidos confeccionados e queimarem a ponta da linha para fazer acabamento.  

Para queimar a linha, eles passam a ponta na chama de uma lamparina, aquelas antigas, feitas de aço, com um pavio de barbante na ponta. As lamparinas são alimentadas por querosene, e produzem uma chama, que pode ser ajustada do jeito que a pessoa preferir. Ao passar a linha no fogo, o risco de se queimar é enorme, e eles faziam isso sem proteção alguma, nem adultos por perto tinham. Eles relataram que ficavam ali cerca de nove horas por dia realizando o trabalho repetidamente.  

Defasagem escolar

Das 301 crianças e adolescentes encontrados em situação de trabalho, 19 não estavam matriculados em uma escola e 21 se recusaram a informar. Paula Neves acredita que essas crianças também não estudavam. Além da evasão escolar, foi identificado também a defasagem na escolaridade, crianças que frequentavam uma instituição de ensino, mas tinham deficiência no aprendizado. “Nós encontramos inclusive um adolescente de doze anos, que estava no sexto ano, mas  a mãe dele disse que ele não sabia ler”, contou. 

De acordo com a auditora-fiscal, a defasagem é resultado do desgaste e cansaço causado pelo trabalho. “Se para um adulto é difícil conciliar trabalho e estudo, imagine para uma criança”. A maioria dos adolescentes abordados trabalhavam de dia e iam para a escola à noite. “Como eles trabalham em torno de nove horas por dia acaba ficando muito desgastante para eles frequentarem a escola.” Neves explica que o rendimento escolar das crianças e adolescentes era muito inferior do que deveria ser. 

Por Luana Nogueira

Com supervisão de Luiz Claudio e Gilberto Costa

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